Processo n.º 2936/17.0T8STR.E1
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Sumário:
Em processo
especial para acordo de pagamento, os créditos que este acordo não modifique
não conferem direito de voto.
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Horácio e Joana iniciaram o
presente processo especial para acordo de pagamento, nos termos dos artigos
1.º, n.º 3, e 222.º-A a 222.º-I do CIRE (diploma ao qual pertencem todas as
normas doravante referenciadas sem indicação da sua proveniência).
Foi proferido o despacho previsto
no n.º 4 do artigo 222.º-C.
O administrador judicial
provisório elaborou a lista provisória de créditos prevista no n.º 2 do artigo
222.º-D.
Os requerentes apresentaram um
plano de pagamentos, para efeitos de votação, nos termos do n.º 2 do artigo 222.º-F.
Votaram a favor os credores
Banco 1, S.A., e Banco 2, S.A., e contra os credores Banco 3, S.A., Banco 4, S.A.,
e Financeira, S.A..
Nenhum interessado solicitou a
não homologação do plano de pagamentos nos termos dos artigos 215.º, 216.º e
222.º-F, n.º 2.
Foi proferida a seguinte
sentença:
“Nos presentes de processo especial para acordo de pagamento em que são
devedores Horácio e Joana, foi apresentado acordo de pagamento em 9-3-2018, o
qual foi devidamente publicitado nos termos do art. 222º-F/2 do CIRE.
Posteriormente foi junto o resultado da votação de tal plano pelo Sr. AI.
Apreciando.
O acordo de pagamento teve um quórum deliberativo superior a 1/3 dos
créditos com direito de voto (92,93% da totalidade dos créditos reconhecidos) e
recolheu voto favorável de 86,94% do total dos credores que manifestaram o seu
sentido de voto, conforme documento o resultado da votação remetido pelo AJP.
Não se mostra violada qualquer regra procedimental ou relativa ao
conteúdo do plano e não se vislumbra qualquer situação de prejuízo ou
desigualdade injustificada para os credores advinda do mesmo (artigos 215.º e
216.º ex vi do artigo 222º-F/2, do CIRE).
Não foi requerida a não homologação.
Assim, nos termos do artigo 222º-F/3/5, do CIRE, deve homologar-se por
sentença o acordo de pagamentos apresentado, o qual vincula os credores, mesmo
os que não hajam participado nas negociações, nos termos do art. 222º-F/8 do
CIRE.
Pelo exposto, o tribunal homologa por sentença o acordo de pagamentos
apresentado, que vincula os credores, mesmo os que não hajam participado nas
negociações.
Custas a suportar pelos devedores – art. 222º-F/9 do CIRE.
Registe, notifique e publicite.
Valor tributário: o correspondente à soma do activo relacionado do
devedor (art. 15º, CIRE), ou o valor da alçada do Tribunal da Relação, caso
aquele seja superior – art. 301º, 1ª parte, do CIRE.
Com a vertente decisão, cessam as funções do Sr. Administrador Judicial
Provisório.
Notifique os devedores para, querendo, em 10 dias se pronunciarem quanto
ao requerimento de remuneração do Sr. AJP que antecede.”
A credora Financeira,
S.A. recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:
A. Os devedores deram início a um processo especial para
acordo de pagamento, nos termos do artigo 222.º-C do CIRE, manifestando a sua
intenção de dar início às negociações com vista à aprovação de um acordo de pagamento.
B. A ora recorrente reclamou créditos tendo o seu crédito
sido reconhecido como crédito comum e devidamente incluído na lista provisória
de créditos apresentada pelo Exmo. Senhor administrador judicial provisório,
nos termos do artigo 222.º- D, n.º3 do CIRE.
C. Na sequência das negociações entre devedores e credores
– às quais a aqui recorrente aderiu – foi apresentado acordo de pagamento, o
qual foi votado desfavoravelmente pelos credores Banco 4, S.A., Banco 3, S.A. e Financeira, S.A., os quais
representavam, respetivamente, 5,51%, 4,43% e 2.20% dos créditos.
D. Tendo contudo sido votado favoravelmente pelos credores
Banco 1, S.A. e Banco 2, S.A., cujos créditos representavam
respetivamente 25,14% e 55,65% dos votos.
E. Salvo o devido respeito, não poderá a credora Financeira, S.A. concordar com o teor
da douta sentença proferida.
F. Na verdade, o plano de pagamentos não deveria ter sido
homologado, porquanto é apenas favorável aos credores hipotecários.
G. O acordo de pagamento apresentado pelos devedores no
que respeita aos credores hipotecários – Banco 1, S.A. e Banco 2, S.A. – prevê, respetivamente:
- Propõe-se o pagamento dos créditos em 100% do montante
reclamado, em 331 prestações mensais, iguais e sucessivas, com a taxa de juros calculados
a taxa nominal de 1,359 %, com base na média aritmética das taxas de Euribor a
2 Meses, atualmente em -0,341 %, acrescidas do Spread de 1,700%, não sendo
afetadas as garantias que possuem e com início de pagamentos 30 dias após a
douta sentença que aprove a Proposta de Plano de Pagamentos.
E,
- Propõe-se o pagamento dos créditos em 100% do montante
reclamado, em 324 prestações mensais, iguais e sucessivas, com a taxa de juros calculados
a taxa nominal de 0,653 %, com base na média aritmética das taxas de Euribor a
2 Meses, atualmente em -0,341 %, acrescidas do Spread de 0,994%, não sendo
afetadas as garantias que possuem e com início de pagamentos 30 dias após a
douta sentença que aprove a proposta de plano de pagamentos.
H. Nos termos do artigo 212.º, n.º 2, alínea a) do CIRE,
aplicável por força do disposto no artigo 222.º-F nº 5 do CIRE, não conferem
direito de voto os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do
plano.
I. No caso em apreço e no que respeita aos créditos do Banco 1, S.A., e Banco 2, S.A., credores hipotecários,
não houve qualquer alteração ao contrato inicial previsto no acordo de
pagamento.
J. A aprovação do plano pelos credores Banco 1, S.A. e Banco 2, S.A., não comporta para
aquelas entidades qualquer redução dos seus créditos ou constrangimento à sua
cobrança, razão pela qual o voto de tais entidades não pode entrar no cômputo
do quórum deliberativo, pela singela razão que nem sequer tinham direito de
voto.
K. Pelo que, e salvo o devido respeito, não poderiam o Banco 1, S.A. e Banco 2, S.A., ter tido expressão no
mapa de votação do plano – cfr. artigo 212.º, n.º2, alínea a) do CIRE.
L. O que, considerando que o plano de pagamento dos devedores
foi unicamente aprovado com o voto dos credores Banco 1, S.A. e Banco 2,
S.A., implicaria que o mesmo tivesse sido recusado, por não se verificar
existência de quórum necessário à sua aprovação.
M. Não obstante, e caso assim não se entenda, o que apenas
por salvaguarda do patrocínio se admite, sempre se dirá que o plano de
pagamentos não deveria igualmente ter sido homologado porquanto a ora recorrente,
ao abrigo do acordo de pagamento proposto, fica numa situação, previsivelmente,
menos favorável do que aquela que resultaria na ausência de qualquer plano.
N. A ora recorrente é titular da reserva de propriedade
que incide sobre o veículo automóvel marca Chysler, modelo Voyager Diesel, com
a matrícula xx-xx-xx.
O. O acordo de pagamento apresentado pelos devedores no
que respeita ao crédito garantido mobiliário prevê:
- Propõe-se o pagamento dos créditos em 30% do montante
reclamado, em 120 prestações mensais totais, com um período de carência de capital
de 24 meses e 96 prestações mensais, iguais e sucessivas, com juros calculados
de 1,5% ao ano, não sendo afetadas as garantias que possuem e com início de
pagamentos 30 dias após a douta sentença que aprove a proposta do plano.
P. Veículo esse que é referenciado no “Processo Especial
Acordo Pagamentos – P.E.A.P.” e avaliado em € 3.500,00.
Q. Desde logo, no plano é proposto o pagamento do valor de
€ 983,28 em 8 anos, após decorrido um período de carência de 2 anos quando, com
a entrega do bem, lograria a credora proceder à sua venda por valor superior -
de EUR 3.500,00 conforme avaliação referida no acordo.
R. Pelo exposto – e porque o acordo de pagamento
apresentado pelos devedores não deveria ter sido alvo de homologação pelo douto
tribunal a quo – deverá tal decisão
ser revogada.
Os requerentes contra-alegaram, tendo formulado as
seguintes conclusões:
1. Da douta sentença, veio a credora Financeira, S.A., requerer com base
nos seus fundamentos, que a decisão de homologação a quo viesse a ser revogada.
2. O recorrente alega, em síntese, que não houve qualquer
alteração às condições inicialmente contratadas relativamente ao crédito do Banco
1, S.A. e do crédito do Banco 2, S.A.,
credores hipotecários, razão pela qual não podia este ter expressão quanto ao
seu voto no quórum deliberativo.
3. Tal fundamento, desde logo, no caso sub judice, não tem a sua razão de ser,
dado que no plano apresentado, não só houve alteração às condições contratuais,
como tais alterações representam para o credor hipotecário uma redução quanto à
Taxa Anual Nominal aquando comparada com T.A.N. inicialmente contratada.
4. Alega ainda a credora Financeira, S.A. que o plano proposto é menos favorável do que um cenário
de ausência de qualquer plano.
5. Ora, tal entendimento é desconexo com a realidade, na
medida em que se o devedor se reconhecia em situação económica difícil, ou
lançava mão do instituto do PEAP ou em alternativa o processo de insolvência.
6. Decidida que seja a liquidação em sede de processo de insolvência,
tal atuação é manifestamente prejudicial para todos os credores, pois não
acautela de forma eficiente os seus direitos e acima de tudo, o seu
ressarcimento.
7. Acresce ainda que, em sede de insolvência, o cenário
previsível passaria pelo facto de o Sr. administrador de insolvência entender
da nulidade da cláusula de reserva de propriedade. (…)
8. Dando prosseguimento ao processo de liquidação do
património, e tendo em conta que os créditos da Financeira, S.A. representam, 6,36% do total de créditos, este
credor teria a receber do valor previsível de venda da viatura de 3.500,00 €, depois
de deduzidas as despesas da massa insolvente, a quantia de 178,00 €, considerando
o seguinte:
- Valor previsível venda viatura e outros activos - €
3.500;
- Despesas massa insolvente (20%) - € 700;
- Valor distribuir credores - € 2.800;
- Financeira, S.A.
(6,36%) – € 178,10.
9. Assim, a ora recorrente receberia bem menos que os
983,28€ que está previsto receber através do plano cuja aprovação e homologação
se conseguiu em 1ª instância.
10. Ao invés, a mesma credora, ora recorrente, receberia
um valor a mais na ordem dos 805,18 € do que num possível cenário de
liquidação, em sede de processo de insolvência.
11. Destarte, o valor que a credora Financeira, S.A. receberia a mais,
através do PEAP, afigura-se altamente mais vantajoso do que resultaria num
processo de insolvência.
12. Face ao supra exposto requer-se, nesta consonância,
que V/ Excias, se dignem indeferir o presente recurso apresentado pela credora Financeira, S.A., mantendo-se,
integralmente, a douta decisão revisitada.
O
recurso foi admitido.
Tendo
em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e
delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das
questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as questões a resolver seriam,
em princípio, as seguintes:
1 – Se
os credores Banco
1, S.A. e Banco 2, S.A. tinham direito de voto;
2 – Se o plano de pagamentos não deveria ter sido
homologado porquanto, com o acordo de pagamento proposto, a recorrente fica
numa situação previsivelmente menos favorável do que aquela que resultaria na
ausência de qualquer plano.
Porém, esta última questão não foi suscitada no tribunal
recorrido. O n.º 2 do artigo 222.º-F, na sua parte final, estabelece que,
no decurso do prazo de votação do acordo de pagamento, qualquer interessado
pode solicitar a não homologação deste último, nos termos e para os efeitos
previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações. Ora, como
anteriormente referimos, nenhum interessado, nomeadamente a ora recorrente,
solicitou tal não homologação. Daí a falta de pronúncia da sentença recorrida sobre
essa matéria. Não pode, pois, a recorrente vir suscitar esta questão apenas em
sede de recurso. Como é sabido e resulta
dos artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º do CPC, os recursos
ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do
tribunal a quo e não o conhecimento
de questões novas. Isto, naturalmente, sem prejuízo do conhecimento, pelo
tribunal ad quem, das questões que o
devam ser oficiosamente. “Os recursos são
meios de obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício
substancial ou de erro de julgamento. (…) pretende-se um novo exame da causa,
por parte de órgão jurisdicional hierarquicamente superior.”[1] Esta é uma regra básica em matéria de
recursos, que define a própria natureza destes. Consequentemente, não se
conhecerá da segunda questão acima enunciada, estando, assim, em causa, neste
recurso, apenas saber se os credores Banco 1, S.A. e Banco 2, S.A. tinham
direito de voto.
O n.º 5 do artigo 222.º-F estabelece que o juiz decide se
deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, nos 10 dias
seguintes à recepção da documentação mencionada nos números anteriores,
aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de
aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em
especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º. Uma das normas abrangidas por
esta remissão é a contida na alínea a) do n.º 2 do artigo 212.º, segundo a qual
não conferem direito de voto os créditos que não sejam modificados pela parte
dispositiva do plano. A recorrente sustenta que é isso que se verifica
relativamente aos credores Banco 1,
S.A. e Banco 2, S.A.,
pois, da parte dispositiva do plano, não decorre qualquer redução dos seus
créditos ou constrangimento à sua cobrança. Os recorridos/ requerentes
contrapõem que “no plano apresentado, não
só houve alteração às condições contratuais, como tais alterações representam
para o credor hipotecário uma redução quanto à Taxa Anual Nominal aquando
comparada com T.A.N. inicialmente contratada.”
No acordo de pagamento, está previsto, relativamente aos
credores Banco 1, S.A. e Banco 2, S.A., o seguinte:
“Credor Banco 2, S.A.
Propõe-se o pagamento
dos créditos em 100% do montante reclamado, em 324 prestações mensais, iguais e
sucessivas, com taxa de juros calculados a taxa nominal de 0,653% com base na
média aritmética das taxas de Euribor a 2 meses, actualmente em -0,341%,
acrescidas do spread de 0,994%, não sendo afectadas as garantias que possuem e
com início de pagamentos 30 dias após a douta sentença que aprove a proposta de
plano de pagamentos.
Credor Banco 1, S.A.
Propõe-se o pagamento
dos créditos em 100% do montante reclamado, em 331 prestações mensais, iguais e
sucessivas, com taxa de juros calculados a taxa nominal de 1,359% com base na
média aritmética das taxas de Euribor a 2 meses, actualmente em -0,341%, acrescidas
do spread de 1,700%, não sendo afectadas as garantias que possuem e com início
de pagamentos 30 dias após a douta sentença que aprove a proposta de plano de
pagamentos.”
Não resulta, pois, do acordo de pagamento, qualquer
modificação dos créditos de que são titulares o Banco 1, S.A. e o Banco 2,
S.A., estando, nomeadamente, previsto o seu pagamento integral, ao
contrário do que acontece com os restantes créditos. A alteração alegada pelos recorridos/requerentes
não está demonstrada nos autos. Em face disso, é forçoso concluir que, por
efeito do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 212.º, os credores Banco 1, S.A. e Banco 2, S.A. não tinham direito de
voto e que, consequentemente, o acordo de pagamento não podia ter sido
homologado considerando os votos expressos por esses dois credores. Deverá,
pois, a sentença recorrida ser revogada, para que o tribunal recorrido aprecie novamente
a questão da homologação do acordo de pagamento, mas não considerando os votos
expressos pelos credores Banco 1, S.A.
e Banco 2, S.A..
Decisão:
Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação
de Évora em julgar o recurso procedente, revogando a sentença recorrida e
ordenando que o tribunal recorrido aprecie a questão
da homologação do acordo de pagamento sem considerar os votos expressos pelos
credores Banco 1, S.A. e Banco
2, S.A..
Custas
a cargo dos recorridos/requerentes.
Notifique.
*
Évora, 12 de Julho de 2018
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.º adjunto
[1] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume
V (reimpressão), p. 212.