quinta-feira, 22 de julho de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 17.06.2021

Processo n.º 1545/12.5TBCTX-T.E1

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Sumário:

Não é admitida a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada em processo de insolvência.

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Nos autos de liquidação que correm por apenso aos de insolvência de E., S.A., vieram, em petições autónomas, FE e LL deduzir, contra a massa insolvente, oposição mediante embargos de terceiro a título preventivo, ao abrigo do disposto nos artigos 342.º e 350.º do Código de Processo Civil e 1285.º do Código Civil.

A FE alegou, em síntese, que é proprietária de 9/10 e promitente compradora de 1/10 da fracção autónoma identificada pela letra B do prédio sito na Rua (…), n.º 15, 1.º andar, em Lisboa, que tem a posse total dessa fracção e que essa posse poderá vir a ser ofendida pela eventual resolução a favor da massa insolvente e entrega da fracção. Concluiu pedindo que seja suspensa a resolução em benefício da massa insolvente e, até lá, seja reconhecido, a seu favor, o direito de retenção sobre a mesma fracção, conforme consignado na cláusula 4.ª do contrato-promessa.

LL alegou, em síntese, que é promitente compradora da fracção autónoma identificada pela letra C do prédio sito na Rua (…), n.ºs 9 a 9F, correspondente ao 1.º andar direito com parqueamento e arrecadação na 3.ª cave, em Lisboa, freguesia do Lumiar, na qual habita, sendo promitente-vendedora a sociedade insolvente; a celebração do contrato-promessa de compra e venda foi precedida da de um contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais com opção de compra; ao contrário daquilo a que se encontrava vinculada, a sociedade insolvente nunca procedeu ao agendamento da escritura de compra e venda; em face disso, a embargante marcou, ela própria, essa escritura, à qual a promitente vendedora, apesar de notificada, não compareceu; as partes atribuíram eficácia real ao contrato-promessa e estipularam a possibilidade de execução específica; a eventual resolução a favor da massa insolvente ofenderia gravemente os direitos da embargante; caso se concretize a entrega da fracção, isso frustraria irremediavelmente a função preventiva dos embargos de terceiro. Concluiu pedindo que seja suspensa a resolução em benefício da massa insolvente e, até lá, seja reconhecido, a seu favor, o direito de retenção sobre a fracção em causa.

Foi proferido despacho de indeferimento liminar de ambas as petições de embargos de terceiro com fundamento na inadmissibilidade legal destes devido ao disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.

Ambas as embargantes interpuseram recurso de apelação deste despacho.

As conclusões de ambas as recorrentes são as seguintes:

A – Por sentença datada de 04/12/2020, mas só patente na plataforma CITIUS em 10/10/2020, a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo indeferiu liminarmente os embargos de terceiro, com função preventiva, apresentados pela Recorrente.

B – Não pode a Recorrente conformar-se com esta sentença, por o Tribunal a quo continua a pactuar com toda a ilegalidade desta insolvência, obtida por métodos pouco claros, pois por uma dívida de tostões foi arrebanhado um património de milhões, sendo a Recorrente uma das prejudicadas pelo todo este processo.

C – Ao evocar o Art.º 342.º, n.º 2, do CPC, para indeferir a petição, o Tribunal recorrido está, com todo o respeito, a errar, pois este preceito só se refere à declaração da própria insolvência.

D – Todo o articulado do CIRE oferece, a quem se sentir prejudicado pela insolvência, a possibilidade de sindicar a mesma.

E – Assim, Art.º 106, n.º 1, idem CIRE: “…no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador…”.

F – Bem como Art. n.º 102º, nº 1, que “…em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento…”.

G - Acresce, que o Art.º 830.º, n.º 1, do CC, configura “… se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso…”.

H – Pelo que Meritíssima Juíza a quo deveria ter apreciado o mérito da petição e não o seu indeferimento liminar, metendo dois embargantes, com objectos diferentes, no mesmo saco, com evidente denegação de justiça.

Nestes Termos e nos mais de Direito que doutamente serão supridos, deve a sentença do Tribunal a quo que considerou improcedente o embargo de terceiro com função preventiva, ser revogada por contrária aos princípios legais e não estar devidamente fundamentada.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Os recursos foram admitidos, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

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Como anteriormente referimos, ambas as recorrentes deduziram, contra a massa insolvente, embargos de terceiro com função preventiva, ao abrigo do disposto nos artigos 342.º e 350.º do Código de Processo Civil e 1285.º do Código Civil.

O artigo 342.º, n.º 2, do CPC, estabelece que não é admitida a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada no processo de insolvência.

Através da dedução dos presentes embargos de terceiro, as recorrentes visam fazer valer direitos alegadamente incidentes sobre bens que foram apreendidos no processo de insolvência da sociedade E., S.A.. É, pois, evidente que, devido ao disposto no citado artigo 342.º, n.º 2, do CPC, a dedução dos referidos embargos de terceiro é inadmissível, tal como decidiu o tribunal a quo.

Contra este entendimento, os recorrentes argumentam que o artigo 342.º, n.º 2, do CPC, “só se refere à declaração de insolvência, e não aos actos subsequentes a esta”. Este argumento não faz sentido. A norma em causa refere-se expressamente à apreensão de bens realizada no processo de insolvência, apreensão essa que constitui um efeito da declaração de insolvência e é, logicamente, um acto a esta subsequente (artigo 149.º, n.º 1, do CIRE).

Portanto, o meio processual utilizado pelos recorrentes para reagirem contra a apreensão de bens no processo de insolvência é expressamente proibido por lei. Todos os argumentos de natureza substantiva invocados pelos recorrentes ficam, assim, prejudicados, pois a sua discussão pressuporia a admissibilidade da dedução de embargos de terceiro.

Concluindo, improcedem os recursos interpostos.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar os recursos improcedentes, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.

Notifique.

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Évora, 17.06.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto


quarta-feira, 7 de julho de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 17.06.2021

Processo n.º 2334/18.9T8STR-F.E1

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Sumário:

O insolvente encontra-se obrigado a prestar toda a informação que lhe seja solicitada pelo tribunal e pelo administrador da insolvência acerca do paradeiro de veículos que tenha adquirido com reserva de propriedade.

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A insolvente, EF, LDA., interpôs recurso de apelação do despacho, proferido no apenso de liquidação em 19.10.2020, mediante o qual o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Comércio de Santarém determinou a prestação, por si, de informação relativa ao paradeiro de três veículos automóveis, sob pena de condenação em multa.

As conclusões do recurso são as seguintes:

1. Nos presentes autos de liquidação, a senhora administradora de insolvência solicitou informações sobre o paradeiro das viaturas com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX.

2. A recorrente, quer por email datado de 18/03/2019, quer por requerimentos datados de 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020, respondeu à solicitação da senhora administradora de insolvência.

3. Não obstante, o tribunal a quo, à margem das informações prestadas pela recorrente, ordenou, novamente, a respectiva notificação para prestar as informações solicitadas pela senhora administradora.

4. O despacho recorrido padece, por isso, de nulidade e, subsidiariamente, consubstancia uma errada interpretação e aplicação da lei:

DA NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA

5. O tribunal a quo não analisou o mérito dos requerimentos da recorrente de 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020, nos termos do qual, veio, entre outros, responder às informações solicitadas pela senhora administradora de insolvência.

6. De notar que, em relação à viatura da marca Opel de 5 lugares (matrícula XX-XX-XX), a recorrente informou que a mesma padecia de graves problemas mecânicos que a impossibilitavam de circular, o que teria conduzido à sua entrega, em Dezembro de 2017, num centro de abate para cancelamento da respectiva matrícula e desmantelamento.

7. A recorrente juntou aos autos declaração nos termos da qual consta que o referido centro de abate recebeu a referida viatura no dia 13/12/2017.

8. A recorrente informou, ainda, que, por apresentar graves problemas mecânicos, a viatura foi entregue para abate sem contrapartida financeira.

9. Pois bem, os requerimentos da recorrente foram objecto de contraditório, tendo a senhora administradora de insolvência tido a oportunidade de responder aos mesmos, o que fez por requerimentos de 07/06/2019, 30/07/2019, 25/01/2020 e 22/06/2020.

10. O tribunal a quo, ao afirmar, no despacho recorrido, que a “apreensão de bens/liquidação não ficará indefinidamente a aguardar a sua prossecução de uma resposta da insolvente”, demonstra não ter verificado que essa resposta já tinha sido remetida aos autos por via dos referidos requerimentos que, portanto, não conheceu, nem apreciou.

11. O tribunal a quo não só não analisou o mérito dos referidos requerimentos da recorrente, como omitiu qualquer decisão relativamente ao seu deferimento e/ou indeferimento, uma vez que a recorrente, num deles, também tinha expressamente requerido a notificação da senhora administradora para prosseguir com a liquidação do património da propriedade da recorrente.

12. Ora, estabelece a lei que o tribunal deve decidir todas as questões que as partes submetam à sua apreciação (cfr. art.º 2.º, n.º 1 e art.º 608.º, n.º 2, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE e art.º 20.º da Constituição).

13. Por conseguinte, tendo o juiz a quo deixado de se pronunciar sobre questões que devia ter apreciado - neste caso, os requerimentos da recorrente de 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020 – é o despacho ora recorrido nulo, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que desde já se argui.

Subsidiariamente,

DA NULIDADE POR VIOLAÇÃO DO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO

14. Ainda que este douto tribunal entendesse não se verificar a nulidade do despacho ora recorrido por omissão de pronúncia – o que só se admite por mero dever de patrocínio –, tal despacho não teria ainda assim, nesse caso, indicado os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão,

15. Porquanto o tribunal a quo não revela as premissas em que assentou, nem o raciocínio lógico que seguiu para chegar à sua decisão (de considerar que nenhuma resposta teria sido, até à data, fornecida pela recorrente).

16. Além disso, o tribunal a quo afirma, no despacho recorrido, que não cabe à recorrente “tecer qualquer tipo de considerações laterais sobre matéria de direito do que deve ou não ser apreendido para a massa insolvente”, sem, contudo, identificar as concretas “considerações” da recorrente em causa (nem identifica a peça e/ou acto processual que comportariam tais “considerações laterais”).

17. E mesmo que este douto tribunal vislumbrasse algum fundamento de facto e/ou de direito no âmbito do despacho ora recorrido – o que só se admite por mero dever de patrocínio – sempre tal pretensa fundamentação seria terrivelmente medíocre e insuficiente, em termos tais que inviabilizariam a possibilidade da recorrente em compreender as razões que levaram o tribunal a quo a decidir de uma maneira e não de outra, o que é igualmente passível de gerar nulidade da decisão.

18. Ora, impõe a lei o dever de fundamentação das decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo (dever de motivação) (cfr. art.º 154.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE e art.º 205.º da Constituição).

19. Por conseguinte, faltando os fundamentos de facto e de direito da decisão sempre seria o despacho ora recorrido nulo, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b) ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que desde já, também, se argui.

Subsidiariamente,

DA NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA

20. Ainda que este douto tribunal entendesse não se verificar a nulidade do despacho ora recorrido por omissão de pronúncia, nem por violação do dever de fundamentação da decisão – o que só se admite por mero dever de patrocínio –, sempre o juiz a quo teria conhecido questões de que não podia ter tomado conhecimento.

21. O tribunal a quo, no despacho recorrido, ordenou a notificação da recorrente para informar do paradeiro dos veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX, e XX-XX-XX.

22. Sucede que sobre cada uma das referidas viaturas recai uma reserva de propriedade a favor de terceiros,

23. O que afasta a integração de tais viaturas na massa insolvente da recorrente, que apenas pode abranger o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (cfr. art.º 46.º, n.º 1 do CIRE).

24. Logo, a apreensão de tais viaturas extravasaria o objecto dos presentes autos de liquidação, assim como o pedido de informação referente às mesmas.

25. Por conseguinte, tendo o juiz a quo se pronunciado sobre questões de que não podia ter tomado conhecimento, sempre seria o despacho ora recorrido nulo, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que desde já, também, se argui.

Subsidiariamente,

DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI

26. Ainda que este douto tribunal entendesse não se verificar a nulidade do despacho ora recorrido – o que só se admite por mero dever de patrocínio –, sempre consubstanciaria uma errada interpretação e aplicação da lei.

27. É que, em relação às viaturas com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX, e XX-XX-XX, a recorrente informou que as mesmas eram objecto de reserva de propriedade a favor de terceiros (Banco Credibom e Cofidis).

28. Como as viaturas objecto de reserva de propriedade não integram a massa insolvente da recorrente, o pedido de informação da senhora administradora de insolvência, bem como do tribunal no âmbito do despacho recorrido, sobre o correspondente paradeiro, extravasou o objecto dos autos de liquidação, carecendo de base legal.

29. Tanto assim é, que o próprio tribunal a quo chegou a indeferir o pedido da credora Cofidis para ordenar a notificação da recorrente para vir aos autos informar o paradeiro da uma viatura sobre a qual detinha reserva de propriedade, precisamente por entender haver um extravasamento do objecto dos autos.

30. A lei estabelece, para os casos de reserva de propriedade, uma excepção ao princípio geral do efeito translativo da propriedade (cfr. art.º 409.º, n.º 1 e art.º 408.º, n.º 1, ambos do Código Civil) (cfr. ensinamentos de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, bem como de GALVÃO TELLES transcritos supra).

31. Por sua vez, a lei estabelece também que a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (cfr. art.º 46.º, n.º 1 do CIRE).

32. Ora, tendo em conta que a reserva de propriedade existente sobre os referidos três veículos, por parte de terceiros, afasta a propriedade da recorrente sobre os mesmos, uma vez que, por força da cláusula de reserva de propriedade, a propriedade dos veículos automóveis apenas se transferiria para a recorrente (compradora) mediante o cumprimento de todas as suas obrigações,

33. Nunca poderiam tais veículos tornar-se objecto de apreensão para a massa insolvente (cfr. transcrição supra de excertos do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/04/2017).

34. Caso contrário, a apreensão dos veículos da propriedade dos credores Banco Credibom e Cofidis para a massa insolvente da recorrente conduziria ao esvaziamento do correspondente direito de propriedade daqueles credores pois impedi-los-ia de fruir plenamente do seu direito de propriedade.

35. Por isso, a lei concede aos credores, titulares da reserva de propriedade, o direito à separação da coisa da massa insolvente e consequente entrega da mesma (art.º 102.º, n.º 3 do CIRE),

36. Sendo certo que, no âmbito dos seus diversos requerimentos apresentados, a senhora administradora de insolvência nunca indicou ter optado pelo cumprimento do contrato.

37. Além disso, resulta da lei que os poderes de administração e de disposição que passam a competir ao administrador de insolvência na sequência da declaração de insolvência do devedor estão limitados, única e exclusivamente, aos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art.º 81.º, n.º 1 do CIRE).

38. Donde decorre que o pedido de informação, por parte da senhora administradora de insolvência, sobre o paradeiro das referidas viaturas, que não integram a massa insolvente, extravasa as suas próprias competências atribuídas por lei.

39. Pois, a administração e disposição dos bens que não integram a massa insolvente encontra-se subtraída aos poderes do administrador de insolvência (cfr. ensinamento de LUÍS M. MARTINS transcrito supra).

Em suma,

40. Ao ordenar a notificação da recorrente para informar sobre o paradeiro das viaturas objecto de reserva de propriedade a favor de terceiro, o tribunal a quo violou as disposições conjugadas dos art.º 409.º, n.º 1 do Código Civil, do art.º 46.º, n.º 1, do art.º 102.º, n.º 3 e do art.º 81.º, n.º 1, todos do CIRE,

41. Porquanto deveriam as normas jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas pelo tribunal a quo no sentido de julgar prestadas as devidas informações por parte da recorrente, ordenando, consequentemente, a prossecução da liquidação do património da recorrente,

42. Razão pela qual deverá o despacho, objecto do presente recurso, ser substituído por outro que assim decida, conforme à correcta interpretação das acima referidas normas.

Nestes termos, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser o despacho recorrido, revogado, sendo substituído por outro que ordene a notificação da senhora administradora de insolvência para prosseguir com a liquidação do património.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Na sequência de reclamação dirigida a esta relação, o recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia;

2 – Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação;

3 – Nulidade do despacho recorrido por excesso de pronúncia;

4 – Pertinência da questão da existência de reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre os veículos.

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Os factos relevantes para a decisão do recurso, evidenciados pelos autos de liquidação, são os seguintes:

1 – Desde, pelo menos, o mês de Março de 2019, a administradora da insolvência vem solicitando, à recorrente, informação sobre o paradeiro dos veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX.

2 – A recorrente nunca informou a administradora da insolvência sobre o paradeiro dos veículos identificados em 1.

3 – Em face disso, o tribunal a quo ordenou, através de despachos proferidos em 05.04.2019, 09.12.2019 e 09.03.2020, a notificação da recorrente para informar sobre o paradeiro dos veículos identificados em 1.

4 – Na sequência de cada uma das notificações ordenadas através dos despachos referidos em 3, a recorrente apresentou uma peça processual na qual nunca especificou o local em que se encontravam os veículos identificados em 1 e, em vez disso, invocou, em síntese, que, estando estes últimos sujeitos a reserva de propriedade a favor de terceiros, não integram a massa insolvente.

5 – Por fim, em 19.10.2020, o tribunal a quo proferiu o despacho recorrido, cujo teor é o seguinte:

“A apreensão de bens/liquidação não ficará indefinidamente a aguardar a sua prossecução de uma resposta da Insolvente, pelo que deve esta ser notificada para informar de todos os dados que possua sobre o paradeiro dos veículos, não lhe cabendo tecer qualquer tipo de considerações laterais sobre matéria de direito do que deve ou não ser apreendido para a massa insolvente.

Assim, o Tribunal pretende que a Insolvente responda ao seguinte:

1) Sabe do paradeiro dos veículos?

2) Caso a resposta seja negativa, esclarecer por que razão desconhece?

3) Em qualquer circunstância, explicar qual a última vez que soube do paradeiro dos veículos e onde estavam, aduzindo tudo quanto saiba a respeito?

Fica, de imediato, advertida que a falta de resposta ou resposta insuficiente poderá importa a sua condenação em multa por falta de colaboração com o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 417.º, do Código de Processo Civil, e sem prejuízo da aplicação dos institutos vigentes no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, designadamente o incidente de qualificação da insolvência.

Prazo: 10 dias.

Alarme o processo em conformidade e dê conhecimento ao Ministério Público.”

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1 – Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia:

A recorrente sustenta, em síntese, que o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, porquanto não apreciou o mérito dos requerimentos por si apresentados em 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020, mediante os quais, no seu entendimento, prestou as informações solicitadas pela administradora de insolvência. Segundo a recorrente, o tribunal a quo, ao afirmar, no despacho recorrido, que a “apreensão de bens/liquidação não ficará indefinidamente a aguardar a sua prossecução de uma resposta da insolvente”, demonstra não ter verificado que essa resposta já tinha sido remetida aos autos por via dos referidos requerimentos que, portanto, não conheceu, nem apreciou.

A recorrente não tem razão.

O artigo 83.º, n.º 1, do CIRE, estabelece que o devedor insolvente fica obrigado a: a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal; (…) c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.

Importa ter ainda em consideração a norma geral constante do artigo 417.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 17.º, n.º 1, do CIRE, segundo a qual todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados. Trata-se do dever de cooperação para a descoberta da verdade, que recai, nomeadamente, sobre o devedor insolvente.

O tribunal a quo solicitou à recorrente, por três vezes (não contando com o despacho recorrido), a prestação de uma singela informação: o paradeiro dos veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX. Não é passível de dúvida aquilo que o tribunal a quo pretendia: saber em que local se encontrava cada um dos referidos veículos.

A recorrente nunca prestou tal informação, não obstante ter o dever processual de o fazer, nos termos dos citados artigos 83.º, n.º 1, als. a) e c), do CIRE, e 417.º, n.º 1, do CPC. Daí o despacho recorrido ter plena justificação para insistir pela prestação da informação três vezes já solicitada e nunca prestada.

O despacho recorrido não tinha que se pronunciar sobre a questão jurídica invocada pela recorrente como pretexto para não prestar a informação repetidamente solicitada pelo tribunal a quo. Perante o reiterado e ostensivo incumprimento, pela recorrente, dos seus deveres processuais de colaboração e de prestação de informação, o tribunal a quo só tinha de fazer aquilo que fez: insistir pela prestação da informação solicitada sob pena de condenação em multa.  

A questão jurídica que a recorrente suscitou nas respostas às notificações do tribunal a quo que incumpriu poderá vir a ser discutida em função daquilo que vier a acontecer no processo após se conhecer, neste, onde os veículos se encontram. Porém, no momento em que o despacho recorrido foi proferido, não estava em causa. Tratava-se então, simplesmente, de o tribunal a quo e a administradora da insolvência saberem onde os veículos em questão se encontravam. O tribunal a quo decidiu em conformidade e a recorrente só tinha de cumprir o que aquele lhe ordenou.

Concluindo, o tribunal a quo, através do despacho recorrido, apreciou o conteúdo das respostas dadas pela recorrente aos pedidos de informação que lhe dirigiu na parte que interessava: a sistemática recusa de prestação dessa informação. Não omitiu pronúncia sobre esta questão, que era a única que, no momento, relevava. Pelo que o despacho recorrido não padece da nulidade em questão.

2 – Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação:

A recorrente sustenta que o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, por falta de indicação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Segundo a recorrente, o despacho recorrido não revela as premissas em que assenta, nem o raciocínio lógico que conduziu à decisão de considerar que ela não forneceu a informação solicitada. Mais, o despacho recorrido não identifica as concretas considerações da recorrente sobre matéria de direito que qualifica como laterais, nem identifica a peça e/ou acto processual de que as mesmas constam. Queixa-se a recorrente de que tudo isto inviabiliza a possibilidade de ela compreender as razões da decisão.

O despacho recorrido não enferma dos vícios que a recorrente lhe aponta.

As premissas em que o despacho recorrido assenta e o raciocínio lógico que conduziu à decisão de considerar que a recorrente não forneceu a informação solicitada são evidentes. Por três vezes, o tribunal a quo ordenou à recorrente que informasse qual era o paradeiro dos veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX e outras tantas a recorrente não prestou tal informação. Na sequência de cada uma das notificações que nesse sentido lhe foram dirigidas pelo tribunal a quo, a recorrente, em vez de cumprir o que lhe fora ordenado, suscitou a questão da existência de reserva de propriedade sobre estes últimos e escusou-se a especificar o local onde se encontrava cada um dos referidos veículos. É elementar e evidente o raciocínio lógico que determinou o despacho recorrido: a recorrente foi repetidamente notificada para indicar o paradeiro dos veículos, nunca o fez e vai ter de o fazer porque a lei lhe impõe esse dever. Não há dúvida possível acerca disto.

As concretas considerações da recorrente sobre matéria de direito a que o despacho recorrido alude são, obviamente, aquelas que constam das suas respostas às notificações que lhe foram dirigidas pelo tribunal a quo, respostas essas em que, repetimos, em vez de dizer em que local os veículos se encontravam, a recorrente invocou a existência de reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre os mesmos veículos, para concluir que os mesmos não integram a massa insolvente e, por isso, o tribunal a quo não tem que conhecer aquele local.

Tudo isto é de tal forma evidente em face do processado anterior, que o tribunal a quo, e bem, não fundamentou abundantemente o despacho recorrido a esse propósito. A fundamentação tem de existir, mas deve cingir-se àquilo que for necessário à compreensão da decisão pelos seus destinatários. É inútil e, por isso, dispensável uma fundamentação que se limite a afirmar e justificar o óbvio.

Em face da leitura do despacho recorrido e tendo em conta o contexto processual em que o mesmo foi proferido, anteriormente descrito, não há lugar para a menor dúvida sobre as razões da decisão e o alcance da sua fundamentação.

Concluindo, o despacho recorrido não é nulo por falta de fundamentação.

3 – Nulidade do despacho recorrido por excesso de pronúncia:

A recorrente sustenta que o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC, porque conheceu questões de que não podia ter tomado conhecimento. Segundo a recorrente, uma vez que recai uma reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre os veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX, estes não integram a massa insolvente, nos termos do artigo 46.º, n.º 1, do CIRE, pelo que a sua apreensão extravasaria o objecto dos presentes autos de liquidação, assim como o pedido de informação referente às mesmas.

Mais uma vez, a recorrente carece de razão, não passando a invocação desta pretensa nulidade de mais uma tentativa de introduzir a questão da reserva de propriedade sobre os veículos cuja localização o tribunal pretende com o intuito de obstar a essa mesma localização.

O despacho recorrido foi proferido na sequência de três notificações da recorrente para dizer onde os veículos se encontram e de outras tantas recusas desta em prestar tal informação. Independentemente da discussão jurídica que possa vir a ter lugar em momento processual ulterior acerca da reserva de propriedade que recai sobre os veículos e das suas consequências, era a questão da localização dos veículos que estava em causa no momento em que o despacho recorrido foi proferido e que este último tinha de decidir.

Como vimos anteriormente, a recorrente estava e está obrigada a informar o tribunal sobre o paradeiro dos veículos, nos termos dos artigos 83.º, n.º 1, als. a) e c), do CIRE, e 417.º, n.º 1, do CPC. Logo em face da primeira solicitação do tribunal nesse sentido, a recorrente tinha o dever de prestar tal informação. Perante o reiterado incumprimento desse dever por parte da recorrente, o despacho recorrido pronunciou-se precisamente sobre a questão que tinha de resolver, que era o referido incumprimento. Logo, o despacho recorrido não se pronunciou sobre questão cujo conhecimento lhe estivesse vedado.

4 – Pertinência da questão da existência de reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre os veículos:

Nas conclusões 26.ª e seguintes, a recorrente insiste que os veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX não integram a massa insolvente porquanto existe reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre eles. Daí que os pedidos de informação, quer da administradora da insolvência, quer do tribunal a quo, sobre o paradeiro dos veículos, tenham extravasado do objecto da liquidação, carecendo de base legal. Invoca, em abono desta tese, nomeadamente, o disposto nos artigos 409.º, n.º 1, do Código Civil, e 46.º, n.º 1, do CIRE.

Como repetidamente afirmámos, o despacho recorrido, à semelhança daqueles que o antecederam, tem por conteúdo um simples pedido de informação, à recorrente, sobre o paradeiro de três veículos que esta comprou com reserva de propriedade e, consequentemente, estavam em seu poder e se destinavam a ser por si utilizados na sua actividade empresarial, fazendo parte do seu activo. Também concluímos anteriormente que a recorrente tem o dever de prestar essa informação.

Insistimos: é do cumprimento do dever de prestar esta informação que se trata no despacho recorrido e, logo, no recurso dele interposto. Questões jurídicas como aquela que a recorrente vem persistentemente tentando introduzir desde que começou a ser-lhe solicitada informação sobre o paradeiro dos veículos com o claro objectivo de se eximir à prestação desta última poderão eventualmente vir a ter cabimento em momento processual ulterior. Por ora, estamos perante um simples pedido de informação dirigido à recorrente, que esta terá de satisfazer. Não pode admitir-se que a recorrente antecipe questões jurídicas que poderão eventualmente colocar-se em momento processual ulterior com o objectivo de se furtar ao cumprimento do seu dever de prestar, agora, a informação solicitada pelo tribunal a quo.

Concluindo, o recurso não merece provimento, devendo o despacho recorrido ser confirmado.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo da massa insolvente.

Notifique.

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Évora, 17.06.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto

 

sábado, 3 de julho de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 17.06.2021

Processo n.º 1169/20.3T8STR-B.E1

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Sumário:

O valor a excluir do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, não tem de coincidir com o das despesas que o devedor suportava antes de ser declarado insolvente ou, sequer, antes do início do período da cessão, antes devendo cingir-se ao que for razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.

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AR apresentou-se à insolvência, nos termos dos artigos 18.º e seguintes do CIRE, tendo, então, requerido a exoneração do passivo restante nos termos dos artigos 235.º e seguintes do mesmo código.

Por sentença proferida em 21.05.2020, foi declarada a insolvência.

Em 21.01.2021, foi proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, no qual se decidiu, na parte que interessa para o conhecimento do recurso, que “durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo, o rendimento disponível (conforme artigo 239.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) que venha a ser auferido se considera cedido, com exclusão do razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do agregado familiar (sem exceder três vezes o salário mínimo nacional), que, neste momento, se fixa no valor equivalente a 1,50 do salário mínimo nacional.”

O insolvente não se conformou com o segmento do despacho inicial de exoneração do passivo restante a cuja transcrição procedemos, tendo interposto o presente recurso, com as seguintes conclusões:

1 – Salvo o devido respeito, o segmento do despacho recorrido que determinou a fixação do rendimento disponível em 1,5 vezes o salário mínimo nacional viola o disposto no artº 239º do CIRE, pelo que o despacho recorrido incorreu em erro de julgamento.

Senão vejamos.

2 – Considerando todas as despesas (que não as expressamente afastadas pelo despacho recorrido) indicadas pelo recorrente como “aceites” pelo tribunal a quo, um raciocínio meramente aritmético permite concluir que a soma das mesmas ascende a € 1.234,66.

3 – Não existindo qualquer outra explicação vislumbrável na fundamentação do despacho recorrido para a desconsideração de outras despesas, é manifesto que o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento, pelo que o despacho recorrido deve ser revogado neste segmento, fixando-se o rendimento disponível do recorrente em € 1.234,66.

Acresce que,

4 – Posto que não existe justificação para desconsiderar certos factos alegados e provados documentalmente pelo recorrente, e tendo o tribunal a quo indicado expressamente as despesas que não havia considerado para efeitos de fixação do rendimento disponível, só se pode concluir que, ao fixar o rendimento disponível sem atender ao somatório das despesas que não excluiu, este excedeu manifestamente a margem de discricionariedade de que dispõe, pelo que o despacho recorrido incorreu em erro de julgamento.

5 – É facto público, pacífico e notório que as habitações em Portugal padecem de uma série deficiência na conservação de energia, o que causa um problema acrescido à população quando as temperaturas descem (em particular no Inverno) (...).

6 – A título de mero exemplo num dos artigos noticiosos supra indicados, indica-se como custo médio de uma forma de aquecimento de uma casa € 8/dia, e tomando tal custo como referência, o custo médio de aquecer uma casa ascende a € 240 mensais.

7 – As despesas de aquecimento integram o universo daquelas necessárias ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, pelo que o despacho recorrido, ao não considerar as despesas indicadas pelo recorrente nessa rubrica (€ 300) incorreu em erro de julgamento.

E, em qualquer caso,

8 – Mesmo que não se considerasse o valor de € 300 mensais indicados pelo recorrente, sempre teria de se considerar o valor de € 60 mensais como o montante mínimo a acrescentar ao rendimento disponível, o que não foi feito pelo tribunal a quo.

9 – Considerando os valores indicados nas conclusões supra, o rendimento disponível a fixar ascende a € 1.534,66 (€ 1.234,66 + € 300 de despesas de aquecimento) ou, caso assim não se entenda, em € 1.294,66 (€ 1.234,66 + €60 de despesas de aquecimento), pelo que, deve ser revogado o segmento do despacho recorrido que fixou o rendimento disponível do recorrente em 1,5 vezes o salário mínimo nacional, fixando-se um dos valores acima referidos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

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A única questão a resolver consiste em saber se o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, deverá ser aumentado até ao valor de € 1.534,66 por mês.

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O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

1 – Por sentença datada de 21.05.2020, transitada em julgado, foi declarada a insolvência do recorrente, no seguimento de apresentação à insolvência;

2 – O agregado familiar é composto exclusivamente pelo recorrente;

3 – O recorrente aufere uma remuneração mensal ilíquida de € 3.172,91, enquanto professor dos 2.º e 3.º ciclos e secundário;

4 – O recorrente despende € 500,00 com a prestação da renda da habitação, possui gastos com o fornecimento de energia eléctrica, água, gás e telecomunicações, que se computam em sensivelmente € 200,00, a que acrescem as despesas com alimentação, vestuário, saúde, transporte e veterinário;

5 – O recorrente nunca beneficiou de exoneração do passivo restante;

6 – O recorrente não tem antecedentes criminais;

7 – Foram reconhecidos créditos da responsabilidade do recorrente que ascendem a € 216.123,94.

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O recorrente insurge-se contra o despacho recorrido na parte em que este determinou que o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, coincida com o de um salário mínimo nacional e meio. Pretende o recorrente que tal valor passe a ser de € 1.534,66 ou, quando menos, de € 1.294,66 por mês.

A argumentação sintetizada nas conclusões 1.ª a 3.ª assenta numa errada interpretação do despacho recorrido. Neste, o tribunal a quo não “aceitou” as despesas que o recorrente afirma terem-no sido, no sentido de considerar que o montante excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, deverá ser suficiente para que o recorrente possa continuar a suportá-las durante o período da cessão. O tribunal a quo considerou, logo à partida, que algumas das despesas invocadas não ocorrem todos os meses e outras são supérfluas, mas não deixando de salientar, numa abordagem genérica da questão, que a cessão do rendimento disponível deve representar um verdadeiro sacrifício, não podendo resvalar para indulgentemente beneficiar o recorrente em desfavor dos credores, que não é legítimo pedir perdões de dívida do mesmo passo que se não oferecem os sacrifícios necessários e proporcionais para tanto e que se exige ao recorrente que diminua globalmente o seu padrão de vida de molde a adequar-se ao procedimento de exoneração do passivo restante.

Portanto, o raciocínio, feito pelo recorrente, segundo o qual, ao fixar em menos de € 1.234,66 o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento, carece de fundamento. Aquilo que resulta da fundamentação do despacho recorrido é que é exigível, ao recorrente, um esforço no sentido de reduzir o conjunto das suas despesas, nomeadamente eliminando algumas delas, de forma a conseguir subsistir com um valor mensal equivalente a um salário mínimo nacional e meio. Daí o tribunal a quo ter fixado este valor como sendo o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do recorrente.

Na argumentação sintetizada nas conclusões 4.ª a 9.ª, o recorrente continua a partir de um pressuposto errado: o de que, durante o período da cessão, deverá ser salvaguardado o nível de vida que o devedor tinha anteriormente, fixando-se o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, no necessário para manter esse nível de vida (ou seja, para suportar o mesmo nível de despesas) e destinando-se ao pagamento aos credores apenas a parte do rendimento do devedor eventualmente sobrante.

Importa considerar que na hipótese de, no final do período da cessão, ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 245.º do CIRE, as dívidas de que ele assim se liberta ficarão por pagar, total ou parcialmente, com o inerente prejuízo para os credores. Sendo assim, é exigível ao devedor que faça sacrifícios, com vista a minorar, na medida do possível, aqueles que são impostos aos titulares dos direitos de crédito atingidos pela exoneração do passivo restante. Os sacrifícios têm de ser feitos por ambos os lados.

É esta a razão de ser do critério estabelecido pelo artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE. O valor excluído do rendimento disponível não deverá coincidir com o das despesas que o devedor suportava antes de ser declarado insolvente ou, sequer, antes do início do período da cessão. Esse valor deverá cingir-se ao que for razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, sendo normal que tal implique um esforço, por parte do devedor, de reorganização da sua vida no sentido de reduzir as suas despesas até àquele mínimo.

A ponderação do que seja, em cada caso concreto, o montante necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar deve, pois, ter em conta, não só as necessidades do devedor e do seu agregado familiar, mas também a legítima expectativa dos credores de verem os seus direitos satisfeitos, em toda a medida do possível, durante o período da cessão. A exoneração do passivo restante não pode redundar num perdão generalizado das dívidas do insolvente sem esforço para este. O equilíbrio entre os interesses dos credores e do devedor impõe que, ao sacrifício que o processo de insolvência e a exoneração do passivo restante acarretam para os primeiros, corresponda um efectivo esforço, por parte do segundo, no sentido de reduzir as suas despesas e as do seu agregado familiar em toda a medida do possível, até atingir o limite mínimo imposto pela salvaguarda da dignidade da pessoa humana. Nomeadamente, o devedor não pode ter a expectativa de, durante o período da cessão, manter o nível de vida a que ele e o seu agregado familiar estavam habituados antes da declaração de insolvência.

No caso dos autos, tendo em conta que o agregado familiar do recorrente é constituído exclusivamente por si próprio e que, em contraponto e como justamente se salientou no despacho recorrido, há que salvaguardar as despesas inerentes à actividade profissional daquele, consideramos, secundando o tribunal a quo, que o valor de um salário mínimo nacional e meio corresponde ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do recorrente, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE. Consequentemente, o despacho recorrido deverá ser confirmado, improcedendo o recurso.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

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Évora, 17.06.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto

 

Acórdão da Relação de Évora de 19.03.2024

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