Processo
n.º 2334/18.9T8STR-F.E1
*
Sumário:
O
insolvente encontra-se obrigado a prestar toda a informação que lhe seja
solicitada pelo tribunal e pelo administrador da insolvência acerca do
paradeiro de veículos que tenha adquirido com reserva de propriedade.
*
A insolvente, EF, LDA., interpôs
recurso de apelação do despacho, proferido no apenso de liquidação em
19.10.2020, mediante o qual o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo
de Comércio de Santarém determinou a prestação, por si, de informação relativa
ao paradeiro de três veículos automóveis, sob pena de condenação em multa.
As conclusões do recurso são as
seguintes:
1. Nos presentes autos de
liquidação, a senhora administradora de insolvência solicitou informações sobre
o paradeiro das viaturas com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX.
2. A recorrente, quer por email
datado de 18/03/2019, quer por requerimentos datados de 18/04/2019, 18/12/2019
e 20/03/2020, respondeu à solicitação da senhora administradora de insolvência.
3. Não obstante, o tribunal a quo, à margem das informações
prestadas pela recorrente, ordenou, novamente, a respectiva notificação para
prestar as informações solicitadas pela senhora administradora.
4. O despacho recorrido padece,
por isso, de nulidade e, subsidiariamente, consubstancia uma errada
interpretação e aplicação da lei:
DA NULIDADE POR OMISSÃO DE
PRONÚNCIA
5. O tribunal a quo não analisou o mérito dos
requerimentos da recorrente de 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020, nos termos
do qual, veio, entre outros, responder às informações solicitadas pela senhora
administradora de insolvência.
6. De notar que, em relação à
viatura da marca Opel de 5 lugares (matrícula XX-XX-XX), a recorrente informou
que a mesma padecia de graves problemas mecânicos que a impossibilitavam de
circular, o que teria conduzido à sua entrega, em Dezembro de 2017, num centro
de abate para cancelamento da respectiva matrícula e desmantelamento.
7. A recorrente juntou aos autos
declaração nos termos da qual consta que o referido centro de abate recebeu a
referida viatura no dia 13/12/2017.
8. A recorrente informou, ainda,
que, por apresentar graves problemas mecânicos, a viatura foi entregue para
abate sem contrapartida financeira.
9. Pois bem, os requerimentos da
recorrente foram objecto de contraditório, tendo a senhora administradora de insolvência
tido a oportunidade de responder aos mesmos, o que fez por requerimentos de
07/06/2019, 30/07/2019, 25/01/2020 e 22/06/2020.
10. O tribunal a quo, ao afirmar, no despacho
recorrido, que a “apreensão de bens/liquidação não ficará indefinidamente a
aguardar a sua prossecução de uma resposta da insolvente”, demonstra não ter
verificado que essa resposta já tinha sido remetida aos autos por via dos
referidos requerimentos que, portanto, não conheceu, nem apreciou.
11. O tribunal a quo não só não analisou o mérito dos
referidos requerimentos da recorrente, como omitiu qualquer decisão
relativamente ao seu deferimento e/ou indeferimento, uma vez que a recorrente,
num deles, também tinha expressamente requerido a notificação da senhora administradora
para prosseguir com a liquidação do património da propriedade da recorrente.
12. Ora, estabelece a lei que o tribunal
deve decidir todas as questões que as partes submetam à sua apreciação (cfr.
art.º 2.º, n.º 1 e art.º 608.º, n.º 2, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE e art.º 20.º da Constituição).
13. Por conseguinte, tendo o
juiz a quo deixado de se pronunciar
sobre questões que devia ter apreciado - neste caso, os requerimentos da recorrente
de 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020 – é o despacho ora recorrido nulo, nos
termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que desde já se argui.
Subsidiariamente,
DA NULIDADE POR VIOLAÇÃO DO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
14. Ainda que este douto tribunal
entendesse não se verificar a nulidade do despacho ora recorrido por omissão de
pronúncia – o que só se admite por mero dever de patrocínio –, tal despacho não
teria ainda assim, nesse caso, indicado os fundamentos de facto e de direito
que justificam a decisão,
15. Porquanto o tribunal a quo não revela as premissas em que
assentou, nem o raciocínio lógico que seguiu para chegar à sua decisão (de
considerar que nenhuma resposta teria sido, até à data, fornecida pela recorrente).
16. Além disso, o tribunal a quo afirma, no despacho recorrido, que
não cabe à recorrente “tecer qualquer tipo de considerações laterais sobre
matéria de direito do que deve ou não ser apreendido para a massa insolvente”,
sem, contudo, identificar as concretas “considerações” da recorrente em causa (nem
identifica a peça e/ou acto processual que comportariam tais “considerações
laterais”).
17. E mesmo que este douto tribunal
vislumbrasse algum fundamento de facto e/ou de direito no âmbito do despacho
ora recorrido – o que só se admite por mero dever de patrocínio – sempre tal
pretensa fundamentação seria terrivelmente medíocre e insuficiente, em termos
tais que inviabilizariam a possibilidade da recorrente em compreender as razões
que levaram o tribunal a quo a
decidir de uma maneira e não de outra, o que é igualmente passível de gerar
nulidade da decisão.
18. Ora, impõe a lei o dever de
fundamentação das decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou
sobre alguma dúvida suscitada no processo (dever de motivação) (cfr. art.º
154.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º,
n.º 1 do CIRE e art.º 205.º da Constituição).
19. Por conseguinte, faltando os
fundamentos de facto e de direito da decisão sempre seria o despacho ora
recorrido nulo, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b) ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que desde já, também, se argui.
Subsidiariamente,
DA NULIDADE POR EXCESSO DE
PRONÚNCIA
20. Ainda que este douto tribunal
entendesse não se verificar a nulidade do despacho ora recorrido por omissão de
pronúncia, nem por violação do dever de fundamentação da decisão – o que só se
admite por mero dever de patrocínio –, sempre o juiz a quo teria conhecido questões de que não podia ter tomado
conhecimento.
21. O tribunal a quo, no despacho recorrido, ordenou a
notificação da recorrente para informar do paradeiro dos veículos com as
matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX, e XX-XX-XX.
22. Sucede que sobre cada uma
das referidas viaturas recai uma reserva de propriedade a favor de terceiros,
23. O que afasta a integração de
tais viaturas na massa insolvente da recorrente, que apenas pode abranger o
património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e
direitos que ele adquira na pendência do processo (cfr. art.º 46.º, n.º 1 do
CIRE).
24. Logo, a apreensão de tais
viaturas extravasaria o objecto dos presentes autos de liquidação, assim como o
pedido de informação referente às mesmas.
25. Por conseguinte, tendo o
juiz a quo se pronunciado sobre
questões de que não podia ter tomado conhecimento, sempre seria o despacho ora
recorrido nulo, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que
desde já, também, se argui.
Subsidiariamente,
DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E
APLICAÇÃO DA LEI
26. Ainda que este douto tribunal
entendesse não se verificar a nulidade do despacho ora recorrido – o que só se
admite por mero dever de patrocínio –, sempre consubstanciaria uma errada
interpretação e aplicação da lei.
27. É que, em relação às
viaturas com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX, e XX-XX-XX, a recorrente informou
que as mesmas eram objecto de reserva de propriedade a favor de terceiros
(Banco Credibom e Cofidis).
28. Como as viaturas objecto de
reserva de propriedade não integram a massa insolvente da recorrente, o pedido
de informação da senhora administradora de insolvência, bem como do tribunal no
âmbito do despacho recorrido, sobre o correspondente paradeiro, extravasou o
objecto dos autos de liquidação, carecendo de base legal.
29. Tanto assim é, que o próprio
tribunal a quo chegou a indeferir o
pedido da credora Cofidis para ordenar a notificação da recorrente para vir aos
autos informar o paradeiro da uma viatura sobre a qual detinha reserva de propriedade,
precisamente por entender haver um extravasamento do objecto dos autos.
30. A lei estabelece, para os
casos de reserva de propriedade, uma excepção ao princípio geral do efeito
translativo da propriedade (cfr. art.º 409.º, n.º 1 e art.º 408.º, n.º 1, ambos
do Código Civil) (cfr. ensinamentos de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, bem como
de GALVÃO TELLES transcritos supra).
31. Por sua vez, a lei
estabelece também que a massa insolvente abrange todo o património do devedor à
data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira
na pendência do processo (cfr. art.º 46.º, n.º 1 do CIRE).
32. Ora, tendo em conta que a
reserva de propriedade existente sobre os referidos três veículos, por parte de
terceiros, afasta a propriedade da recorrente sobre os mesmos, uma vez que, por
força da cláusula de reserva de propriedade, a propriedade dos veículos
automóveis apenas se transferiria para a recorrente (compradora) mediante o
cumprimento de todas as suas obrigações,
33. Nunca poderiam tais veículos
tornar-se objecto de apreensão para a massa insolvente (cfr. transcrição supra
de excertos do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/04/2017).
34. Caso contrário, a apreensão
dos veículos da propriedade dos credores Banco Credibom e Cofidis para a massa
insolvente da recorrente conduziria ao esvaziamento do correspondente direito
de propriedade daqueles credores pois impedi-los-ia de fruir plenamente do seu
direito de propriedade.
35. Por isso, a lei concede aos
credores, titulares da reserva de propriedade, o direito à separação da coisa
da massa insolvente e consequente entrega da mesma (art.º 102.º, n.º 3 do
CIRE),
36. Sendo certo que, no âmbito
dos seus diversos requerimentos apresentados, a senhora administradora de insolvência
nunca indicou ter optado pelo cumprimento do contrato.
37. Além disso, resulta da lei
que os poderes de administração e de disposição que passam a competir ao
administrador de insolvência na sequência da declaração de insolvência do
devedor estão limitados, única e exclusivamente, aos bens integrantes da massa
insolvente (cfr. art.º 81.º, n.º 1 do CIRE).
38. Donde decorre que o pedido
de informação, por parte da senhora administradora de insolvência, sobre o
paradeiro das referidas viaturas, que não integram a massa insolvente,
extravasa as suas próprias competências atribuídas por lei.
39. Pois, a administração e
disposição dos bens que não integram a massa insolvente encontra-se subtraída
aos poderes do administrador de insolvência (cfr. ensinamento de LUÍS M.
MARTINS transcrito supra).
Em suma,
40. Ao ordenar a notificação da recorrente
para informar sobre o paradeiro das viaturas objecto de reserva de propriedade
a favor de terceiro, o tribunal a quo
violou as disposições conjugadas dos art.º 409.º, n.º 1 do Código Civil, do
art.º 46.º, n.º 1, do art.º 102.º, n.º 3 e do art.º 81.º, n.º 1, todos do CIRE,
41. Porquanto deveriam as normas
jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas
pelo tribunal a quo no sentido de
julgar prestadas as devidas informações por parte da recorrente, ordenando, consequentemente,
a prossecução da liquidação do património da recorrente,
42. Razão pela qual deverá o
despacho, objecto do presente recurso, ser substituído por outro que assim
decida, conforme à correcta interpretação das acima referidas normas.
Nestes termos, deve conceder-se
provimento ao presente recurso e, em consequência, ser o despacho recorrido,
revogado, sendo substituído por outro que ordene a notificação da senhora administradora
de insolvência para prosseguir com a liquidação do património.
Não foram apresentadas
contra-alegações.
Na sequência de reclamação
dirigida a esta relação, o recurso foi admitido, com subida em separado e
efeito meramente devolutivo.
*
As questões a resolver são as
seguintes:
1 – Nulidade do despacho
recorrido por omissão de pronúncia;
2 – Nulidade do despacho
recorrido por falta de fundamentação;
3 – Nulidade do despacho
recorrido por excesso de pronúncia;
4 – Pertinência da questão da
existência de reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre os veículos.
*
Os factos relevantes para a
decisão do recurso, evidenciados pelos autos de liquidação, são os seguintes:
1 – Desde, pelo menos, o mês de
Março de 2019, a administradora da insolvência vem solicitando, à recorrente,
informação sobre o paradeiro dos veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX
e XX-XX-XX.
2 – A recorrente nunca informou
a administradora da insolvência sobre o paradeiro dos veículos identificados em
1.
3 – Em face disso, o tribunal a quo ordenou, através de despachos
proferidos em 05.04.2019, 09.12.2019 e 09.03.2020, a notificação da recorrente
para informar sobre o paradeiro dos veículos identificados em 1.
4 – Na sequência de cada uma das
notificações ordenadas através dos despachos referidos em 3, a recorrente apresentou
uma peça processual na qual nunca especificou o local em que se encontravam os
veículos identificados em 1 e, em vez disso, invocou, em síntese, que, estando
estes últimos sujeitos a reserva de propriedade a favor de terceiros, não
integram a massa insolvente.
5 – Por fim, em 19.10.2020, o
tribunal a quo proferiu o despacho
recorrido, cujo teor é o seguinte:
“A apreensão de bens/liquidação não ficará indefinidamente a aguardar a
sua prossecução de uma resposta da Insolvente, pelo que deve esta ser
notificada para informar de todos os dados que possua sobre o paradeiro dos
veículos, não lhe cabendo tecer qualquer tipo de considerações laterais sobre
matéria de direito do que deve ou não ser apreendido para a massa insolvente.
Assim, o Tribunal pretende que a Insolvente responda ao seguinte:
1) Sabe do paradeiro dos veículos?
2) Caso a resposta seja negativa, esclarecer por que razão desconhece?
3) Em qualquer circunstância, explicar qual a última vez que soube do
paradeiro dos veículos e onde estavam, aduzindo tudo quanto saiba a respeito?
Fica, de imediato, advertida que a falta de resposta ou resposta
insuficiente poderá importa a sua condenação em multa por falta de colaboração
com o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 417.º, do Código de
Processo Civil, e sem prejuízo da aplicação dos institutos vigentes no Código
da Insolvência e da Recuperação de Empresas, designadamente o incidente de
qualificação da insolvência.
Prazo: 10 dias.
Alarme o processo em conformidade e dê conhecimento ao Ministério
Público.”
*
1 – Nulidade do despacho recorrido
por omissão de pronúncia:
A recorrente sustenta, em
síntese, que o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1,
al. d), 1.ª parte, do CPC, porquanto não apreciou o mérito dos requerimentos
por si apresentados em 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020, mediante os quais,
no seu entendimento, prestou as informações solicitadas pela administradora de
insolvência. Segundo a recorrente, o tribunal a quo, ao afirmar, no despacho recorrido, que a “apreensão de
bens/liquidação não ficará indefinidamente a aguardar a sua prossecução de uma
resposta da insolvente”, demonstra não ter verificado que essa resposta já
tinha sido remetida aos autos por via dos referidos requerimentos que,
portanto, não conheceu, nem apreciou.
A recorrente não tem razão.
O artigo 83.º, n.º 1, do CIRE,
estabelece que o devedor insolvente fica obrigado a: a) Fornecer todas as
informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo
administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de
credores ou pelo tribunal; (…) c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida
pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.
Importa ter ainda em
consideração a norma geral constante do artigo 417.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 17.º, n.º 1, do CIRE, segundo
a qual todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a
sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for
perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for
requisitado e praticando os actos que forem determinados. Trata-se do dever de
cooperação para a descoberta da verdade, que recai, nomeadamente, sobre o
devedor insolvente.
O tribunal a quo solicitou à recorrente, por três vezes (não contando com o
despacho recorrido), a prestação de uma singela informação: o paradeiro dos
veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX. Não é passível de
dúvida aquilo que o tribunal a quo
pretendia: saber em que local se encontrava cada um dos referidos veículos.
A recorrente nunca prestou tal
informação, não obstante ter o dever processual de o fazer, nos termos dos
citados artigos 83.º, n.º 1, als. a) e c), do CIRE, e 417.º, n.º 1, do CPC. Daí
o despacho recorrido ter plena justificação para insistir pela prestação da
informação três vezes já solicitada e nunca prestada.
O despacho recorrido não tinha
que se pronunciar sobre a questão jurídica invocada pela recorrente como
pretexto para não prestar a informação repetidamente solicitada pelo tribunal a quo. Perante o reiterado e ostensivo
incumprimento, pela recorrente, dos seus deveres processuais de colaboração e
de prestação de informação, o tribunal a
quo só tinha de fazer aquilo que fez: insistir pela prestação da informação
solicitada sob pena de condenação em multa.
A questão jurídica que a
recorrente suscitou nas respostas às notificações do tribunal a quo que incumpriu poderá vir a ser discutida
em função daquilo que vier a acontecer no processo após se conhecer, neste,
onde os veículos se encontram. Porém, no momento em que o despacho recorrido
foi proferido, não estava em causa. Tratava-se então, simplesmente, de o
tribunal a quo e a administradora da
insolvência saberem onde os veículos em questão se encontravam. O tribunal a quo decidiu em conformidade e a recorrente
só tinha de cumprir o que aquele lhe ordenou.
Concluindo, o tribunal a quo, através do despacho recorrido,
apreciou o conteúdo das respostas dadas pela recorrente aos pedidos de
informação que lhe dirigiu na parte que interessava: a sistemática recusa de
prestação dessa informação. Não omitiu pronúncia sobre esta questão, que era a
única que, no momento, relevava. Pelo que o despacho recorrido não padece da
nulidade em questão.
2 – Nulidade do despacho
recorrido por falta de fundamentação:
A recorrente sustenta que o
despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC,
por falta de indicação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a
decisão.
Segundo a recorrente, o despacho
recorrido não revela as premissas em que assenta, nem o raciocínio lógico que
conduziu à decisão de considerar que ela não forneceu a informação solicitada.
Mais, o despacho recorrido não identifica as concretas considerações da
recorrente sobre matéria de direito que qualifica como laterais, nem identifica
a peça e/ou acto processual de que as mesmas constam. Queixa-se a recorrente de
que tudo isto inviabiliza a possibilidade de ela compreender as razões da
decisão.
O despacho recorrido não enferma
dos vícios que a recorrente lhe aponta.
As premissas em que o despacho
recorrido assenta e o raciocínio lógico que conduziu à decisão de considerar
que a recorrente não forneceu a informação solicitada são evidentes. Por três
vezes, o tribunal a quo ordenou à
recorrente que informasse qual era o paradeiro dos veículos com as matrículas XX-XX-XX,
XX-XX-XX e XX-XX-XX e outras tantas a recorrente não prestou tal informação. Na
sequência de cada uma das notificações que nesse sentido lhe foram dirigidas pelo
tribunal a quo, a recorrente, em vez
de cumprir o que lhe fora ordenado, suscitou a questão da existência de reserva
de propriedade sobre estes últimos e escusou-se a especificar o local onde se
encontrava cada um dos referidos veículos. É elementar e evidente o raciocínio
lógico que determinou o despacho recorrido: a recorrente foi repetidamente
notificada para indicar o paradeiro dos veículos, nunca o fez e vai ter de o
fazer porque a lei lhe impõe esse dever. Não há dúvida possível acerca disto.
As concretas considerações da
recorrente sobre matéria de direito a que o despacho recorrido alude são, obviamente,
aquelas que constam das suas respostas às notificações que lhe foram dirigidas
pelo tribunal a quo, respostas essas
em que, repetimos, em vez de dizer em que local os veículos se encontravam, a
recorrente invocou a existência de reserva de propriedade, a favor de
terceiros, sobre os mesmos veículos, para concluir que os mesmos não integram a
massa insolvente e, por isso, o tribunal a
quo não tem que conhecer aquele local.
Tudo isto é de tal forma
evidente em face do processado anterior, que o tribunal a quo, e bem, não fundamentou abundantemente o despacho recorrido a
esse propósito. A fundamentação tem de existir, mas deve cingir-se àquilo que for
necessário à compreensão da decisão pelos seus destinatários. É inútil e, por
isso, dispensável uma fundamentação que se limite a afirmar e justificar o
óbvio.
Em face da leitura do despacho
recorrido e tendo em conta o contexto processual em que o mesmo foi proferido,
anteriormente descrito, não há lugar para a menor dúvida sobre as razões da
decisão e o alcance da sua fundamentação.
Concluindo, o despacho recorrido
não é nulo por falta de fundamentação.
3 – Nulidade do despacho
recorrido por excesso de pronúncia:
A recorrente sustenta que o
despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª
parte, do CPC, porque conheceu questões de que não podia ter tomado
conhecimento. Segundo a recorrente, uma vez que recai uma reserva de
propriedade, a favor de terceiros, sobre os veículos com as matrículas XX-XX-XX,
XX-XX-XX e XX-XX-XX, estes não integram a massa insolvente, nos termos do
artigo 46.º, n.º 1, do CIRE, pelo que a sua apreensão extravasaria o objecto
dos presentes autos de liquidação, assim como o pedido de informação referente
às mesmas.
Mais uma vez, a recorrente
carece de razão, não passando a invocação desta pretensa nulidade de mais uma
tentativa de introduzir a questão da reserva de propriedade sobre os veículos
cuja localização o tribunal pretende com o intuito de obstar a essa mesma
localização.
O despacho recorrido foi
proferido na sequência de três notificações da recorrente para dizer onde os
veículos se encontram e de outras tantas recusas desta em prestar tal
informação. Independentemente da discussão jurídica que possa vir a ter lugar
em momento processual ulterior acerca da reserva de propriedade que recai sobre
os veículos e das suas consequências, era a questão da localização dos veículos
que estava em causa no momento em que o despacho recorrido foi proferido e que
este último tinha de decidir.
Como vimos anteriormente, a
recorrente estava e está obrigada a informar o tribunal sobre o paradeiro dos
veículos, nos termos dos artigos 83.º, n.º 1, als. a) e c), do CIRE, e 417.º,
n.º 1, do CPC. Logo em face da primeira solicitação do tribunal nesse sentido,
a recorrente tinha o dever de prestar tal informação. Perante o reiterado
incumprimento desse dever por parte da recorrente, o despacho recorrido
pronunciou-se precisamente sobre a questão que tinha de resolver, que era o referido
incumprimento. Logo, o despacho recorrido não se pronunciou sobre questão cujo
conhecimento lhe estivesse vedado.
4 – Pertinência da questão da
existência de reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre os veículos:
Nas conclusões 26.ª e seguintes,
a recorrente insiste que os veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e
XX-XX-XX não integram a massa insolvente porquanto existe reserva de
propriedade, a favor de terceiros, sobre eles. Daí que os pedidos de
informação, quer da administradora da insolvência, quer do tribunal a quo, sobre o paradeiro dos veículos,
tenham extravasado do objecto da liquidação, carecendo de base legal. Invoca,
em abono desta tese, nomeadamente, o disposto nos artigos 409.º, n.º 1, do
Código Civil, e 46.º, n.º 1, do CIRE.
Como repetidamente afirmámos, o
despacho recorrido, à semelhança daqueles que o antecederam, tem por conteúdo
um simples pedido de informação, à recorrente, sobre o paradeiro de três
veículos que esta comprou com reserva de propriedade e, consequentemente,
estavam em seu poder e se destinavam a ser por si utilizados na sua actividade
empresarial, fazendo parte do seu activo. Também concluímos anteriormente que a
recorrente tem o dever de prestar essa informação.
Insistimos: é do cumprimento do
dever de prestar esta informação que se trata no despacho recorrido e, logo, no
recurso dele interposto. Questões jurídicas como aquela que a recorrente vem persistentemente
tentando introduzir desde que começou a ser-lhe solicitada informação sobre o
paradeiro dos veículos com o claro objectivo de se eximir à prestação desta
última poderão eventualmente vir a ter cabimento em momento processual
ulterior. Por ora, estamos perante um simples pedido de informação dirigido à
recorrente, que esta terá de satisfazer. Não pode admitir-se que a recorrente
antecipe questões jurídicas que poderão eventualmente colocar-se em momento
processual ulterior com o objectivo de se furtar ao cumprimento do seu dever de
prestar, agora, a informação solicitada pelo tribunal a quo.
Concluindo, o recurso não merece
provimento, devendo o despacho recorrido ser confirmado.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas
a cargo da massa insolvente.
Notifique.
*
Évora, 17.06.2021
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.º
adjunto