Processo n.º 482/12.8TBACN.E1
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Sumário:
A falta de entrega ao fiduciário, pelo
devedor, da parte dos seus rendimentos que constitui objecto da cessão, não
determina, automaticamente, a recusa da exoneração do passivo restante.
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MS, insolvente nos presentes
autos, recorreu do despacho que, no final do período da cessão, lhe recusou a
exoneração do passivo restante, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. O
despacho de que se recorre violou a disposição constante da alínea a) do n.º 1 do
artigo 243.º do CIRE, conjugada com a plasmada no n.º 2 do artigo 18.º da CRP.
II.
Conforme dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, para que se materialize
a circunstância que permita a recusa da exoneração do passivo restante por
violação das obrigações impostas pelo artigo 239.º do CIRE, é condição verificarem-se
dois pressupostos cumulativos:
a) Que
o devedor tenha actuado com dolo ou negligência grave;
b) Que
a sua actuação cause um prejuízo para os credores.
III.
Resulta do relatório final, apresentado pelo fiduciário em 13 de Abril de 2018,
nos termos previstos no n.º 2 do artigo 240.º do CIRE, que, não obstante a ora
a recorrente não ter cumprido com a obrigação de entregar imediatamente ao fiduciário,
quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão prevista
no disposto na alínea c) do n.º 4 do art.º 239º do CIRE, a recorrente cumpriu
com todas as restantes obrigações previstas no n.º 4 da citada norma.
IV. É
o próprio fiduciário que refere, no seu relatório, que teve conhecimento das várias
vicissitudes que decorreram no decurso da cessão de rendimentos, que têm a ver
com a instabilidade da sua vida profissional.
V. É o
próprio fiduciário que alerta para as sérias dificuldades financeiras pelas quais
a ora recorrente passou, o que nada tem que ver com actuações dolosas ou com
negligência grave.
VI. O
prejuízo para os credores deve, em nosso entendimento e salvo melhor opinião,
ser um prejuízo relevante, por equiparação ao referido no artigo 246.º do CIRE,
pois, quer a cessação antecipada, quer a revogação da exoneração, geram a mesma
consequência na esfera jurídica da ora recorrente.
VII. A
actuação da recorrente não causou um prejuízo relevante, que coloque em causa a
satisfação dos créditos sobre a insolvência, tendo em conta o valor diminuto do
rendimento disponível não entregue ao fiduciário, em comparação com o valor
total do seu passivo.
VIII.
A decisão de recusa da exoneração, proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo, constitui consequência altamente
gravosa para a ora recorrente, comparada com o escasso prejuízo causado aos
credores, violando, desta forma o princípio constitucionalmente consagrado da
proporcionalidade, previsto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da
República Portuguesa.
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A
única questão a resolver consiste em saber se se verificam os pressupostos da recusa
da exoneração do passivo restante.
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Os
factos relevantes para a decisão do recurso, resultantes do processo, são os
seguintes:
1 – MS, solteira, nascida em
28.08.1975, residente em Chousos, Serra de Santo António, apresentou-se à
insolvência e requereu a exoneração do passivo restante em 03.12.2012.
2 – Por sentença proferida em
05.12.2012, MS foi declarada insolvente.
3 – O agregado familiar da
insolvente é constituído por si e por sua filha MJ, nascida em 13.03.2009, que
sustenta.
4 – Desde data anterior ao
relatório do administrador da insolvência previsto no artigo 155.º do CIRE,
junto aos autos em 14.01.2013, a insolvente é funcionária do Município de Porto
de Mós, com a categoria de assistente operacional; trabalha ainda, a tempo parcial,
como operadora no Modelo Continente Hipermercado, S.A., sito em Leiria.
5 – Na data referida em 4, os
rendimentos da insolvente eram os seguintes:
- Como funcionária do Município
de Porto de Mós: salário-base de € 487,46, acrescido de subsídio de refeição;
após os descontos a que estava sujeita, salário líquido de € 511,93;
- Como empregada de
hipermercado: salário-base de € 223, acrescido de subsídios de refeição e por
trabalho nocturno e ao domingo; após os descontos a que estava sujeita, salário
líquido variável entre € 356,03 e € 384,50.
6 – Na data referida em 4, a
insolvente residia em casa pertença de seus pais, assumindo as despesas fixas
com água, electricidade e gás.
7 – Na data referida em 4, as
dívidas da insolvente tinham o montante global de € 34.993, sendo seus credores
a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Porto de Mós, CRL, a Cofidis, o Estado
Português, o Barklays Bank PCL, o Banco BPI, S.A. e a Cetelem; o património da
insolvente era constituído por um conjunto de bens móveis domésticos impenhoráveis.
8 – A insolvente não tem
antecedentes criminais.
9 – Por despacho proferido na
assembleia de credores, realizada em 21.01.2013, foi declarado encerrado o
processo, por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas processuais
e as restantes dívidas da massa insolvente.
10 – Ainda na assembleia de
credores, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante;
o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3,
al. b), ponto i), do CIRE, foi de € 700 por mês, valor esse actualizável de
acordo com a taxa de inflação anualmente divulgada pelo INE.
11 – Findo o período da cessão,
o fiduciário apresentou relatório em que referiu, nomeadamente, o seguinte:
- No decurso da cessão de rendimentos, a devedora preservou a sua actividade
profissional por conta de outrem no Município de Porto de Mós, auferindo o
ordenado mínimo nacional, e manteve o seu contrato em regime de part-time no
Modelo Continente Hiperm. S.A., com o vencimento base actual de € 220,34, a fim
de complementar os seus rendimentos e fazer face às despesas correntes e
extraordinárias do seu agregado familiar;
- Os rendimentos disponíveis e entregues ao fiduciário resultam da
actividade profissional desenvolvida pela devedora;
- No período da cessão de rendimentos, de Fevereiro de 2013 a Fevereiro
de 2018, foi calculado o rendimento total disponível de € 5.453,75, tendo por
base a informação que foi disponibilizada pela devedora;
- Desse valor, a devedora depositou, na conta da massa insolvente, o montante
total de € 2.647,98, verificando-se um incumprimento no valor de € 2.805,77;
- A devedora cumpriu todas as restantes obrigações previstas no n.º 4 do
artigo 239.º do CIRE, tendo o fiduciário conhecimento de que ocorreram diversas
vicissitudes no decurso do período da cessão, como a penhora do vencimento da
devedora pela Autoridade Tributária, que impossibilitou o cumprimento da
obrigação de cessão atempadamente;
- O agregado familiar da devedora é constituído por si e por sua filha
menor de idade, sendo que, anualmente, tem de suportar despesas extraordinárias
com a educação desta.
12 – No seu parecer final, o
fiduciário declarou “que reconhece o
esforço efectuado pela devedora em determinados momentos, aquando da entrega dos
valores ao fiduciário, em prejuízo para o seu sustento condigno, a fim de
cumprir com o regime que lhe foi imposto e beneficiar do presente instituto”,
e pronunciou-se favoravelmente à concessão da exoneração do
passivo restante.
13 –
Em 11.07.2019, o tribunal a quo
proferiu o despacho recorrido, que transcrevemos:
“Em 13-4-2018 foi junto aos autos o
relatório final do Sr. Fiduciário, do qual consta que durante o período da
cessão de rendimentos a insolvente cedeu € 2.647,98, tendo ficado por entregar
à fidúcia o valor de € 2.805,77, relativo a rendimento disponível retido pela
insolvente.
A insolvente veio concordar com os valores
indicados pelo Sr. Fiduciário, tendo justificado o incumprimento nos seguintes
termos «as despesas mínimas do seu agregado, que a insolvente indicou aquando
da sua Petição de Insolvência serviram de parâmetro para calculo do valor a
disponibilizar ao agregado na douta decisão proferida, de 1,5 salários mínimos
nacionais. 8. As despesas mínimas indicadas na P. I. não previam nem acautelavam
despesas extraordinárias que naturalmente ocorreram ao longo dos anos, bem como
o aumento do custo de vida, nomeadamente com água, eletricidade, gás,
alimentação e o gasóleo para se fazer transportar para os seus empregos.».
Não obstante, a verdade é que não consta
dos autos qualquer pedido da insolvente de alteração do seu rendimento
indisponível, que tenha merecido indeferimento pelo Tribunal.
Alega ainda a insolvente que tem a seu
cargo uma filha maior, cujos custos com educação e sustento são exclusivamente
suportados pela insolvente, mas tal enquadramento já havia sido considerado
pelo Tribunal, aquando do despacho inicial de exoneração do passivo restante,
tendo o valor de rendimento indisponível fixado, transitado em julgado sem
qualquer objeção da insolvente.
Por fim, relativamente à penhora da AT que
teve lugar, ilegalmente, durante o período da cessão de rendimentos, a mesma
apenas influenciou o valor não cedido em 178,94 €, ou seja, numa dimensão assaz
diminuta, considerando os € 2.805,77 em falta.
Conclui assim o Tribunal que nenhuma das
justificações apresentadas pela insolvente para a violação da obrigação de
cessão do rendimento disponível é suficiente para arredar o dolo neste
incumprimento, pelo que estão verificados os requisitos para recusar a
exoneração do passivo restante ao abrigo das disposições conjugadas dos arts.
244º/2, 243º/1-a e 239º/4-c do CIRE.
A insolvente veio pedir, em 27-4-2018, a
possibilidade de pagar o valor em dívida em 18 prestações.
Contudo, e não obstante só agora se estar
a proferir o despacho final, não consta dos autos qualquer evidência de que a
mesma tenha iniciado esse pagamento.
Mais acresce que o prazo de 5 anos da
cessão de rendimentos «(…) é fixo, não dependendo, portanto, do prudente
arbítrio do juiz. A razão de ser deste regime reside em o prazo, sendo
manifestamente estabelecido em benefício dos credores, constituir o período que
o legislador entendeu adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos
seus créditos.» (Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2008, pág. 787).
Por conseguinte, não é legalmente possível
protelar a continuação do processo para além deste prazo de 5 anos, mesmo que
seja para pagamento de quantias não cedidas em tempo.
Em face de todo o exposto, tendo existido
violação dolosa da obrigação de cessão do rendimento disponível, e não sendo
legalmente possível o pagamento fracionado da quantia indevidamente retida pela
insolvente para além do prazo de 5 anos da cessão de rendimentos, recuso a
exoneração do passivo restante a MS.”
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Importa
tem em consideração o disposto nas seguintes normas do CIRE (diploma ao qual
pertencem as normas doravante referenciadas sem menção da sua origem):
Artigo
237.º, al. d): A concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe
que, após o período da cessão e cumpridas que sejam as condições previstas no
artigo 239.º, o juiz emita despacho decretando a exoneração definitiva,
designado despacho de exoneração.
Artigo
239.º, n.º 2: O despacho inicial determina que,
durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência,
neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o
devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo
designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista
oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do
artigo seguinte.
Artigo
239.º, n.º 3, al. b), ponto i): Integram o rendimento
disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com
exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno
daquele e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada
do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.
Artigo
239.º, n.º 4: Durante o período da cessão, o devedor
fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por
qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus
rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo
legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando
desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a
parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de
domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva
ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as
diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a
não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para
algum desses credores.
Artigo 243.º, n.º 1, al. a): Antes ainda de terminado o período da
cessão, deve o juiz recusar a exoneração (…) quando o devedor tiver dolosamente
ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas
pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre
a insolvência.
Artigo 244.º, n.º 2: A exoneração é recusada pelos mesmos
fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido
antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
No caso dos autos, é pacífico que, durante o período da cessão, a
recorrente devia ter entregue ao fiduciário € 5.453,75 e apenas entregou € 2.647,98, verificando-se, assim, um
incumprimento do dever de entrega de € 2.805,77. Importa ajuizar se tal
incumprimento constitui fundamento válido para a recusa da exoneração do
passivo restante.
O tribunal a quo respondeu afirmativamente a esta questão, não aceitando a
justificação apresentada pela recorrente para a falta de entrega da quantia de
€ 2.805,77. Argumentou que a recorrente não requereu qualquer aumento da parte
do seu rendimento excluída da cessão, que as despesas por aquela invocadas já
haviam sido consideradas no despacho inicial, transitado em julgado sem
qualquer objecção por parte daquela, e que a penhora ilegal de um dos
vencimentos da recorrente, pela Autoridade Tributária, durante o período da
cessão, apenas influenciou o valor não cedido em € 178,94,
para concluir que a referida justificação não é suficiente para arredar o dolo
no incumprimento.
Analisemos
a questão.
É
unanimemente aceite que a exoneração do passivo restante apenas deve ser concedida
à pessoa singular insolvente que se mostre merecedora desse benefício. A ideia
de merecimento é central neste instituto. A apreciação desse merecimento deve
ser feita com base no comportamento do insolvente antes do processo de
insolvência e durante o período da cessão. O benefício da exoneração do passivo
restante deve ser concedido apenas a quem tenha pautado o seu comportamento por
padrões de rectidão, transparência e esforço no sentido de cumprir os seus
deveres.
A
referida ideia de merecimento inculca que a apreciação da conduta do insolvente
durante o período da cessão, para o efeito de lhe ser concedida ou negada a
exoneração do passivo restante, deve ser abrangente, ou seja, deve considerar a
globalidade daquela conduta, as circunstâncias que a rodearam e as suas
consequências. Nomeadamente, não pode o julgador focar-se no facto objectivo da
falta de cumprimento de determinado dever do insolvente para, desconsiderando a
globalidade da conduta deste último, as circunstâncias em que a mesma teve
lugar e as concretas consequências daí advenientes, concluir que a exoneração
do passivo restante não pode ser concedida.
É
no sentido que vimos sustentando que deve ser interpretada a exigência, feita
pelo artigo 243.º, n.º 1, al. a), de dolo ou
negligência grave do insolvente na falta de cumprimento de algum dos deveres
estabelecidos no artigo 239.º, para que a exoneração do passivo restante seja
recusada. Tratando-se, como no caso dos autos, do incumprimento do dever de
entrega imediata, ao fiduciário, da parte dos seus rendimentos objecto de
cessão, decorrente da alínea c) do n.º 4 deste último artigo, não se trata de
averiguar, simplesmente, se essa falta de entrega foi intencional ou devida a
um esquecimento particularmente reprovável (que constituiriam o dolo ou a
negligência grave), ou, em vez disso, resultante de um esquecimento não tão
reprovável (negligência não grave) ou, até, compreensível (hipótese em que nem
negligência haveria). Parece-nos que este critério de decisão, além de algo
absurdo, como supomos decorrer da ilustração, que procurámos fazer, daquilo que
poderia ser a sua aplicação prática, seria extremamente redutor e, por isso,
potenciador de soluções inaceitáveis à luz da assinalada finalidade de atribuir
o benefício da exoneração do passivo restante a quem tiver demonstrado
merecê-lo. Interessa saber, não se a omissão de entrega foi, em si mesma,
voluntária ou involuntária e, nesta última hipótese, se é merecedora do especial
juízo de censurabilidade subjacente à negligência grave, mas sim apurar as
razões que determinaram a referida omissão.
Em
conformidade com o exposto, impõe-se avaliar a actuação da recorrente ao longo
do período da cessão na sua globalidade e as circunstâncias em que a mesma teve
lugar.
Não
há dúvida de que a recorrente deixou de cumprir a obrigação de entrega da
quantia de €
2.805,77. Entregou apenas, no total, € 2.647,98. Importa saber se essa falta de
cumprimento pode ser considerada dolosa ou, quando menos, gravemente
negligente, na perspectiva que vimos sustentando.
A recorrente é, hoje, uma mulher
com 44 anos de idade. Não tem antecedentes criminais. Pelo menos desde que se
apresentou à insolvência, o seu agregado familiar é constituído por si e por
uma filha nascida em 13.03.2009, que sustenta. Desde data anterior ao relatório
do administrador da insolvência previsto no artigo 155.º do CIRE, junto aos
autos em 14.01.2013, a recorrente reside em Chousos, Serra de Santo António, é
funcionária do Município de Porto de Mós, com a categoria de assistente
operacional, trabalhando ainda, a tempo parcial, como operadora, num hipermercado
sito em Leiria, aos fins-de-semana e em período nocturno. Reside em casa
pertença de seus pais, assumindo as despesas fixas com água, electricidade e
gás. O seu património é constituído por um conjunto de bens móveis domésticos
impenhoráveis. O valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo
239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, foi de € 700 por mês, actualizável de
acordo com a taxa de inflação anualmente divulgada pelo INE. Em determinado
momento, teve parte de um dos seus salários ilegalmente penhorado pela
Autoridade Tributária.
Foram, pois, muito penosas as
circunstâncias em que a recorrente viveu durante os cinco anos do período da
cessão. Trabalhando a tempo inteiro como assistente operacional no Município de
Porto de Mós e aos fins-de-semana e em períodos nocturnos num hipermercado em
Leiria, apesar de ser mãe de uma criança nascida em 2009, da qual, pelo que se
depreende dos autos, é a única cuidadora, à recorrente não pode ser imputada
falta de esforço. Muito pelo contrário, a recorrente sobressai pela positiva
neste domínio, tendo feito tudo aquilo que era humanamente possível no sentido
de obter rendimentos.
O referido valor de € 700 por
mês, actualizável anualmente em função da inflação, é baixo, considerando o
custo de vida em geral e as particulares circunstâncias da vida da recorrente, maxime a necessidade de assegurar as
despesas com o sustento e a educação da sua filha e as suas próprias
deslocações entre a sua residência e as duas localidades onde trabalha. É certo
que a decisão que fixou aquele valor transitou em julgado e a recorrente nunca
requereu o seu aumento ao tribunal a quo.
Contudo, nada disso impede que, no momento da prolação da decisão final da
exoneração, se pondere a exiguidade do mesmo valor e a extrema dificuldade ou,
mesmo, incapacidade que qualquer pessoa nas circunstâncias da recorrente sentiria
para, com ele, assegurar as despesas quotidianas, mesmo num período em que é
suposto diminuir-se estas últimas àquilo que seja indispensável para o
“sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” referido no
artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i). Tal ponderação não visa, obviamente,
fixar um novo valor, mas sim ajuizar sobre a exigibilidade de uma actuação
diferente daquela que a recorrente teve no decurso do período da cessão no que
toca à falta de entrega, ao fiduciário, de parte das quantias a que se
encontrava obrigada, pelo que não está em causa a força de caso julgado do
despacho inicial. Não ponderar o valor em causa com o argumento de que a
decisão que o fixou transitou em julgado seria errado pela razão que acabamos
de referir e conduziria a um pior julgamento da situação porquanto ignoraria um
facto para o efeito relevante.
Tudo leva, pois, a concluir que
a recorrente não entregou ao fiduciário a totalidade do rendimento objecto de
cessão porque não pôde, sob pena de colocar em causa a satisfação de
necessidades básicas do seu agregado familiar, o que não lhe era exigível,
tanto mais que também estavam em causa o sustento e a educação de uma criança. Reforça
esta convicção o parecer final do fiduciário, acima descrito sob o n.º 12, no
qual este afirma “que reconhece o esforço efectuado pela devedora em
determinados momentos, aquando da entrega dos valores ao fiduciário, em
prejuízo para o seu sustento condigno, a fim de cumprir com o regime que lhe
foi imposto e beneficiar do presente instituto”, pronunciando-se favoravelmente
à concessão da exoneração do passivo restante.
Sendo
assim, não pode concluir-se que a recorrente deixou de cumprir o dever de entrega
estabelecido no artigo 239.º, n.º 4, al. c), dolosamente ou com negligência
grave. As circunstâncias concretas em que essa falta de entrega ocorreu levam a
concluir que nem sequer à luz do critério de aferição da culpa estabelecido no
artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, mais amplo que o do artigo 243.º, n.º 1,
al. a), é possível formular um juízo de censurabilidade relativamente à conduta
da recorrente.
Falta,
pois, o primeiro pressuposto estabelecido pelo artigo 243.º, n.º 1, al. a),
para a recusa da exoneração do passivo restante. Sendo cumulativos os
pressupostos ali estabelecidos, fica demonstrada a falta de fundamento desta
recusa.
Concluindo, a recorrente é
merecedora da exoneração do passivo restante, considerando a globalidade da sua
conduta e as circunstâncias que ela teve de enfrentar ao longo do período da
cessão. Não conseguiu cumprir a totalidade daquilo a que inicialmente estava
obrigada, mas seguramente cumpriu, em toda a medida, aquilo que, mesmo à luz do
critério estabelecido no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, lhe era exigível em
função das circunstâncias. Ou seja, nem negligência houve, muito menos
negligência grosseira ou dolo. Daí que o recurso deva ser julgado procedente,
revogando-se a decisão recorrida e concedendo-se a exoneração do passivo
restante à recorrente.
*
Decisão:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e
concedendo-se, à recorrente, a exoneração do passivo restante.
Custas
a cargo da massa insolvente.
Notifique.
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Évora, 13 de Fevereiro de 2020
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.º
adjunto