sábado, 20 de março de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 25.02.2021

Processo n.º 90/16.4T8ORQ.E1

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Sumário:

Perante um despacho inicial em que se decidiu que a exoneração do passivo restante seria concedida desde que os devedores, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, cedessem ao fiduciário a parte do rendimento por si auferido que excedesse, por mês, três vezes o salário mínimo mensalmente garantido, e que, durante aquele período, os devedores ficavam obrigados a entregar imediatamente ao fiduciário tudo aquilo que auferissem na parte que excedesse, por mês, três vezes o salário mínimo mensalmente garantido, impõe-se a conclusão de que o tribunal fixou um critério mensal de aferição do rendimento dos recorrentes para o efeito descrito.

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AG e DC interpuseram recurso de apelação do despacho, proferido nos presentes autos de insolvência, mediante o qual o tribunal a quo ordenou a rectificação do relatório relativo ao período de Outubro de 2019 a Setembro de 2020 e que a fiduciária arrecade o rendimento excedente a três salários mínimos nacionais que se verificou nos meses de Novembro de 2019 e Fevereiro e Junho de 2020.

As conclusões do recurso são as seguintes:

1 – Não se conformam os recorrentes com o despacho que incidiu sobre o relatório anual (entre Outubro de 2018 e Setembro de 2019) entregue pela fiduciária e que, grosso modo, ordenou a sua rectificação e que fosse arrecadado o excedente, porquanto resulta do mesmo que os rendimentos dos devedores excederam o rendimento garantido de três salários mínimos nacionais nos meses de Novembro de 2019 e Fevereiro e Junho de 2020.

2 – Daquele relatório pode alcançar-se que foi fixado aos recorrentes o rendimento garantido mensal de três salários mínimos durante o período da cessão.

3 – O mesmo é dizer que, para os meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2018, o rendimento garantido dos recorrentes, fixado judicialmente, foi de € 1.740, e, para o ano de 2019 (Janeiro a Setembro a que o relatório respeita), foi de € 1.800.

4 – O recorrente auferiu: em Outubro, € 1.342,78; em Novembro, € 2.314,04; em Dezembro, € 1.357,60; em Janeiro, € 1.430,98; em Fevereiro, € 1.233,02; em Março, € 1.295,92; em Abril, € 1.180,57; em Maio, € 758,68; em Junho, € 2.378,02; em Julho, € 1.390,39; em Agosto, € 1.373,91; em Setembro, € 1.186,18 (a recorrente não trabalha fora de casa porque tem a seu cargo três filhos menores, um deles com uma incapacidade permanente de 85%).

5 – No período de cessão a que o relatório respeita, os recorrentes auferiram o rendimento efectivo de € 17.242,09.

6 – Para o mesmo período, o rendimento indisponível fixado judicialmente foi de € 21.420.

7 – Efectivamente, nos meses de Novembro e Junho (e não também de Fevereiro, como consta do despacho recorrido, certamente por lapso), os recorrentes tiveram rendimentos superiores aos que o tribunal fixou.

8 – Mas, nos restantes meses do ano de cessão, os rendimentos dos recorrentes não atingiram a quantia que o tribunal entendeu ser necessária ao seu sustento minimamente condigno.

9 – No mês de Outubro, os recorrentes receberam, para além do rendimento indisponível, a quantia de € 574,04.

10 – No mês de Junho, receberam, para além da quantia que o tribunal fixou como necessária ao seu sustento minimamente condigno, € 578,02.

11 – A soma dos montantes, nos dois meses em que os rendimentos dos recorrentes ultrapassaram o rendimento indisponível, foi de € 1.152,06.

12 – O rendimento efectivo dos recorrentes, para o período de cessão a que o relatório se refere, ficou aquém do rendimento indisponível fixado em € 4.177,91.

13 – Sendo os rendimentos mensais dos recorrentes inferiores ao judicialmente fixado como rendimento garantido, só através do apuramento dos rendimentos objecto de cessão, por referência aos rendimentos anualmente auferidos, é possível garantir aos recorrentes disporem em cada mês, de cada ano do período de cessão, e, por recurso aos rendimentos que ao longo do ano vão auferindo, o valor mais aproximado possível ao rendimento mensal indisponível fixado.

14 – No mesmo sentido, veja-se o sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17.01.2019 (…);

15 – Feitas as contas, os recorrentes nada devem à fidúcia.

16 – Pelo que o relatório não merece qualquer reparo e, consequentemente, nenhuma quantia deve ser cedida à fidúcia.

Não foram oferecidas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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A única questão a resolver consiste em saber se, no período visado pelo despacho recorrido, ou seja, nos meses de Outubro de 2019 a Setembro de 2020, o rendimento dos recorrentes excedeu três salários mínimos nacionais e, consequentemente, deve ser parcialmente entregue à fiduciária.

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Os factos relevantes para a decisão do recurso, resultantes dos autos, são os seguintes:

1 – No despacho inicial, proferido em 17.10.2016, foi decidido, nomeadamente, o seguinte:

- “Declarar que a exoneração do passivo restante será concedida ao requerente desde que este durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), ceda ao fiduciário o rendimento disponível que venha a auferir, e que exceda por mês três vezes o salário mínimo mensalmente garantido (…);

- Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a (…) c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, ou seja, tudo o que a devedora aufira e que exceda por mês duas vezes o salário mínimo mensalmente garantido”.

2 – Entre Outubro de 2019 e Setembro de 2020, o recorrente, que tem a profissão de mineiro, auferiu as seguintes remunerações: Outubro de 2019: € 1.181,03; Novembro de 2019: € 2.334,62; Dezembro de 2019: € 1.623,32; Janeiro de 2020: € 1.521,44; Fevereiro de 2020: 2.214,81; Março de 2020: € 1.230,86; Abril de 2020: € 1.135,14; Maio de 2020: € 1.364,07; Junho de 2020: € 2.551,82; Julho de 2020: 1.446,84; Agosto de 2020: € 1.237,20; Setembro de 2020: € 555,55.

3 – No mesmo período, a recorrente não auferiu qualquer rendimento e, à semelhança do recorrente, não entregou qualquer valor à fiduciária.

4 – A fiduciária entregou o relatório anual referente ao período referido em 2, do qual consta a informação descrita em 2 e 3.

5 – Em 19.10.2020, na sequência do referido em 4, o tribunal a quo proferiu o despacho recorrido, com o seguinte teor:

“Resulta do relatório apresentado pela fiduciária que os rendimentos mensais dos devedores excederam o rendimento garantido (três s.m.n.) nos meses de Novembro de 2019 e nos meses de Fevereiro e Junho de 2020.

Pelo que deverá ser rectificado o relatório em conformidade e ser arrecadado o excedente verificado naqueles meses, por integrar o rendimento disponível, o qual se considera cedido à fiduciária, em conformidade com o disposto nos nº 2 e 4, al. c), do Art. 239º do CPC.

Notifique.”

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Começamos por notar que o despacho inicial contém um lapso material num aspecto fundamental, como resulta do ponto 1 do enunciado da matéria de facto relevante para a decisão do recurso a que acima procedemos. Nesse despacho, fixou-se em “três vezes o salário mínimo mensalmente garantido” o valor do rendimento dos recorrentes excluído da cessão. Isso é confirmado numa passagem posterior do mesmo despacho. Porém, na parte em que foram enunciadas as obrigações dos recorrentes durante o período da cessão, escreveu-se que uma dessas obrigações consistia na entrega imediata, à fiduciária, de todos os rendimentos por aqueles auferidos que excedessem, por mês, “duas vezes o salário mínimo mensalmente garantido”. É evidente que o tribunal a quo cometeu um lapso ao escrever “duas vezes”, pois, na parte do despacho em que pretendeu fixar o valor do rendimento dos recorrentes excluído da cessão, escreveu “três vezes”, o que adiante repetiu. Aliás, durante o período de cessão até agora decorrido, nunca se pôs em causa este último valor. Corrige-se, assim, o referido lapso material, no sentido exposto.

Passando à apreciação da pretensão dos recorrentes, notamos que estes incorrem, logo à partida, num erro. O despacho recorrido tem em vista os rendimentos auferidos pelos recorrentes no período compreendido entre Outubro de 2019 e Setembro de 2020, ao qual se reporta o “Relatório Anual IV” (fls. 223). Porém, os recorrentes supõem que o mesmo despacho, não obstante ter sido proferido em 19.10.2020, após a recepção do “Relatório Anual IV”, tem em vista os rendimentos por eles auferidos no período compreendido entre Outubro de 2018 e Setembro de 2019, ao qual se reporta o “Relatório Anual III” (fls. 218). Daí a divergência entre os valores que o tribunal a quo teve por referência ao proferir o despacho recorrido e aqueles que os recorrentes referem na conclusão 4, bem como a inexistência do lapso invocado na conclusão 7. Na realidade, nos meses referidos no despacho recorrido, o rendimento dos recorrentes excedeu três salários mínimos nacionais.

Não obstante a divergência acabada de apontar, a questão jurídica de fundo persiste: para o efeito de se saber se ultrapassa o limite fixado no despacho inicial como sendo o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar [artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE], com a consequente obrigação de entrega imediata do eventual excedente ao fiduciário [al. c) do n.º 4 do mesmo artigo], o rendimento do devedor deve ser avaliado tendo por referência um período mensal ou anual?

A relevância prática desta questão é evidente. Se a avaliação for mensal e a percepção do rendimento também o for, deverá ser imediatamente entregue ao fiduciário a parte deste que exceder o limite fixado no despacho inicial como sendo o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. Isto será assim ainda que, noutros meses do mesmo ano do período de cessão, o rendimento do devedor fique abaixo daquele limite ou não exista de todo. Se a avaliação for anual, calcular-se-á a média mensal do rendimento auferido pelo devedor durante esse período e, ainda que em um ou mais meses exceda o apontado limite, se a média não ultrapassar este último, nenhuma parte desse rendimento integrará o rendimento disponível e deverá ser entregue ao fiduciário.

No seu relatório, a fiduciária optou pelo segundo critério, concluindo que os recorrentes não tinham de lhe entregar qualquer parte do seu rendimento. Os recorrentes secundaram a fiduciária, sustentando a bondade do mesmo critério. Já o tribunal a quo adoptou o primeiro critério e, por isso, ordenou, através do despacho recorrido, a rectificação do relatório da fiduciária e a cessão, a esta última, da parte do rendimento dos recorrentes que, nos meses de Novembro de 2019 e Fevereiro e Junho de 2020, excedeu o valor de três salários mínimos.

No caso dos autos, a solução da questão enunciada decorre, com clareza, do despacho inicial. Neste, o tribunal a quo determinou que a exoneração do passivo restante será concedida desde que os requerentes, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), cedam ao fiduciário o rendimento que venham a auferir na parte que exceda, por mês, três vezes o salário mínimo mensalmente garantido. Na parte em que foram discriminadas as obrigações dos recorrentes, novamente se determinou que, durante o período da cessão, aqueles ficavam obrigados a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, ou seja, tudo aquilo que auferissem na parte em que excedesse, por mês, três vezes o salário mínimo mensalmente garantido.

Portanto, o próprio despacho inicial, que transitou em julgado, estabeleceu o critério mensal de aferição do eventual excesso do rendimento auferido pelos recorrentes relativamente ao limite de três salários mínimos nacionais. Verificando-se tal excesso, a parte correspondente do rendimento dos recorridos deve ser imediatamente entregue à fiduciária.

Temos perfeita noção de que o critério mensal de aferição do rendimento do devedor é susceptível de gerar situações de injustiça relativa. Num exemplo simples, um devedor que aufira um rendimento mensal fixo que não exceda o limite do rendimento indisponível nunca terá de ceder qualquer parte do mesmo ao fiduciário, enquanto um devedor que aufira um rendimento mensal variável, que em alguns meses exceda o referido limite, terá de ceder esse excesso ao fiduciário nos meses em que ele se verificar ainda que, anualmente, o seu rendimento seja igual ou inferior ao do primeiro devedor. A disfuncionalidade do referido critério mensal poderá ser ainda maior na hipótese de o devedor ser trabalhador por conta de outrem em regime sazonal, estando desempregado durante uma parte do ano, ou na de o devedor ser trabalhador por conta própria e auferir rendimentos de forma muito irregular, com meses em que excede o limite do rendimento indisponível seguidos de outros em que pouco ou nenhum rendimento consegue obter.

Porventura, o legislador devia ter acautelado situações como as descritas, nomeadamente através do estabelecimento de regimes diferenciados. Perante a lei existente, cabe aos tribunais fixar regimes que se adequem às particularidades de cada caso concreto em vez de se refugiarem em fórmulas tabelares, bem como às partes e aos seus advogados estarem atentos, pugnando pela fixação daqueles regimes e interpondo, em devido tempo, recurso quando tal não aconteça.

No caso dos autos, como anteriormente concluímos, é fora de dúvida que o despacho inicial, transitado em julgado, fixou um regime mensal de aferição do rendimento dos recorrentes. Consequentemente, o tribunal a quo decidiu bem ao ordenar a entrega, à fiduciária, da parte do rendimento dos recorrentes que, nos meses nele referidos, excedeu o valor de três salários mínimos nacionais. Deverá, pois, o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se o despacho recorrido.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo da massa insolvente.

Notifique.

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Évora, 25.02.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto 


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