Processo n.º 90/16.4T8ORQ.E1
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Sumário:
Perante
um despacho inicial em que se decidiu que a exoneração do passivo restante
seria concedida desde que os devedores, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento
do processo de insolvência, cedessem ao fiduciário a parte do rendimento por si
auferido que excedesse, por mês, três vezes o salário mínimo mensalmente
garantido, e que, durante aquele período, os devedores ficavam obrigados a
entregar imediatamente ao fiduciário tudo aquilo que auferissem na parte que
excedesse, por mês, três vezes o salário mínimo mensalmente garantido, impõe-se
a conclusão de que o tribunal fixou um critério mensal de aferição do
rendimento dos recorrentes para o efeito descrito.
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AG e DC interpuseram recurso de
apelação do despacho, proferido nos presentes autos de insolvência, mediante o
qual o tribunal a quo ordenou a
rectificação do relatório relativo ao período de Outubro de 2019 a Setembro de
2020 e que a fiduciária arrecade o rendimento excedente a três salários mínimos
nacionais que se verificou nos meses de Novembro de 2019 e Fevereiro e Junho de
2020.
As conclusões do recurso são as
seguintes:
1 – Não se conformam os
recorrentes com o despacho que incidiu sobre o relatório anual (entre Outubro
de 2018 e Setembro de 2019) entregue pela fiduciária e que, grosso modo, ordenou a sua rectificação
e que fosse arrecadado o excedente, porquanto resulta do mesmo que os
rendimentos dos devedores excederam o rendimento garantido de três salários
mínimos nacionais nos meses de Novembro de 2019 e Fevereiro e Junho de 2020.
2 – Daquele relatório pode
alcançar-se que foi fixado aos recorrentes o rendimento garantido mensal de
três salários mínimos durante o período da cessão.
3 – O mesmo é dizer que, para os
meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2018, o rendimento garantido dos
recorrentes, fixado judicialmente, foi de € 1.740, e, para o ano de 2019
(Janeiro a Setembro a que o relatório respeita), foi de € 1.800.
4 – O recorrente auferiu: em
Outubro, € 1.342,78; em Novembro, € 2.314,04; em Dezembro, € 1.357,60; em
Janeiro, € 1.430,98; em Fevereiro, € 1.233,02; em Março, € 1.295,92; em Abril,
€ 1.180,57; em Maio, € 758,68; em Junho, € 2.378,02; em Julho, € 1.390,39; em
Agosto, € 1.373,91; em Setembro, € 1.186,18 (a recorrente não trabalha fora de
casa porque tem a seu cargo três filhos menores, um deles com uma incapacidade
permanente de 85%).
5 – No período de cessão a que o
relatório respeita, os recorrentes auferiram o rendimento efectivo de €
17.242,09.
6 – Para o mesmo período, o
rendimento indisponível fixado judicialmente foi de € 21.420.
7 – Efectivamente, nos meses de
Novembro e Junho (e não também de Fevereiro, como consta do despacho recorrido,
certamente por lapso), os recorrentes tiveram rendimentos superiores aos que o
tribunal fixou.
8 – Mas, nos restantes meses do
ano de cessão, os rendimentos dos recorrentes não atingiram a quantia que o
tribunal entendeu ser necessária ao seu sustento minimamente condigno.
9 – No mês de Outubro, os
recorrentes receberam, para além do rendimento indisponível, a quantia de €
574,04.
10 – No mês de Junho, receberam,
para além da quantia que o tribunal fixou como necessária ao seu sustento
minimamente condigno, € 578,02.
11 – A soma dos montantes, nos
dois meses em que os rendimentos dos recorrentes ultrapassaram o rendimento
indisponível, foi de € 1.152,06.
12 – O rendimento efectivo dos
recorrentes, para o período de cessão a que o relatório se refere, ficou aquém
do rendimento indisponível fixado em € 4.177,91.
13 – Sendo os rendimentos
mensais dos recorrentes inferiores ao judicialmente fixado como rendimento
garantido, só através do apuramento dos rendimentos objecto de cessão, por
referência aos rendimentos anualmente auferidos, é possível garantir aos
recorrentes disporem em cada mês, de cada ano do período de cessão, e, por
recurso aos rendimentos que ao longo do ano vão auferindo, o valor mais
aproximado possível ao rendimento mensal indisponível fixado.
14 – No mesmo sentido, veja-se o
sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17.01.2019 (…);
15 – Feitas as contas, os
recorrentes nada devem à fidúcia.
16 – Pelo que o relatório não
merece qualquer reparo e, consequentemente, nenhuma quantia deve ser cedida à
fidúcia.
Não foram oferecidas
contra-alegações.
O recurso foi admitido, com
subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
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A única questão a resolver
consiste em saber se, no período visado pelo despacho recorrido, ou seja, nos
meses de Outubro de 2019 a Setembro de 2020, o rendimento dos recorrentes
excedeu três salários mínimos nacionais e, consequentemente, deve ser
parcialmente entregue à fiduciária.
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Os factos relevantes para a
decisão do recurso, resultantes dos autos, são os seguintes:
1 – No despacho inicial,
proferido em 17.10.2016, foi decidido, nomeadamente, o seguinte:
- “Declarar que a exoneração do
passivo restante será concedida ao requerente desde que este durante os cinco
anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de
cessão), ceda ao fiduciário o rendimento disponível que venha a auferir, e que
exceda por mês três vezes o salário mínimo mensalmente garantido (…);
- Durante o período da cessão, o
devedor fica ainda obrigado a (…) c) Entregar imediatamente ao fiduciário,
quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, ou
seja, tudo o que a devedora aufira e que exceda por mês duas vezes o salário
mínimo mensalmente garantido”.
2 – Entre Outubro de 2019 e
Setembro de 2020, o recorrente, que tem a profissão de mineiro, auferiu as
seguintes remunerações: Outubro de 2019: € 1.181,03; Novembro de 2019: €
2.334,62; Dezembro de 2019: € 1.623,32; Janeiro de 2020: € 1.521,44; Fevereiro
de 2020: 2.214,81; Março de 2020: € 1.230,86; Abril de 2020: € 1.135,14; Maio
de 2020: € 1.364,07; Junho de 2020: € 2.551,82; Julho de 2020: 1.446,84; Agosto
de 2020: € 1.237,20; Setembro de 2020: € 555,55.
3 – No mesmo período, a
recorrente não auferiu qualquer rendimento e, à semelhança do recorrente, não
entregou qualquer valor à fiduciária.
4 – A fiduciária entregou o
relatório anual referente ao período referido em 2, do qual consta a informação
descrita em 2 e 3.
5 – Em 19.10.2020, na sequência
do referido em 4, o tribunal a quo
proferiu o despacho recorrido, com o seguinte teor:
“Resulta do relatório
apresentado pela fiduciária que os rendimentos mensais dos devedores excederam
o rendimento garantido (três s.m.n.) nos meses de Novembro de 2019 e nos meses
de Fevereiro e Junho de 2020.
Pelo que deverá ser rectificado
o relatório em conformidade e ser arrecadado o excedente verificado naqueles
meses, por integrar o rendimento disponível, o qual se considera cedido à fiduciária,
em conformidade com o disposto nos nº 2 e 4, al. c), do Art. 239º do CPC.
Notifique.”
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Começamos por notar que o
despacho inicial contém um lapso material num aspecto fundamental, como resulta
do ponto 1 do enunciado da matéria de facto relevante para a decisão do recurso
a que acima procedemos. Nesse despacho, fixou-se em “três vezes o salário
mínimo mensalmente garantido” o valor do rendimento dos recorrentes excluído da
cessão. Isso é confirmado numa passagem posterior do mesmo despacho. Porém, na
parte em que foram enunciadas as obrigações dos recorrentes durante o período
da cessão, escreveu-se que uma dessas obrigações consistia na entrega imediata,
à fiduciária, de todos os rendimentos por aqueles auferidos que excedessem, por
mês, “duas vezes o salário mínimo mensalmente garantido”. É evidente que o
tribunal a quo cometeu um lapso ao
escrever “duas vezes”, pois, na parte do despacho em que pretendeu fixar o
valor do rendimento dos recorrentes excluído da cessão, escreveu “três vezes”,
o que adiante repetiu. Aliás, durante o período de cessão até agora decorrido,
nunca se pôs em causa este último valor. Corrige-se, assim, o referido lapso
material, no sentido exposto.
Passando à apreciação da
pretensão dos recorrentes, notamos que estes incorrem, logo à partida, num erro.
O despacho recorrido tem em vista os rendimentos auferidos pelos recorrentes no
período compreendido entre Outubro de 2019 e Setembro de 2020, ao qual se
reporta o “Relatório Anual IV” (fls. 223). Porém, os recorrentes supõem que o
mesmo despacho, não obstante ter sido proferido em 19.10.2020, após a recepção
do “Relatório Anual IV”, tem em vista os rendimentos por eles auferidos no
período compreendido entre Outubro de 2018 e Setembro de 2019, ao qual se
reporta o “Relatório Anual III” (fls. 218). Daí a divergência entre os valores
que o tribunal a quo teve por
referência ao proferir o despacho recorrido e aqueles que os recorrentes
referem na conclusão 4, bem como a inexistência do lapso invocado na conclusão
7. Na realidade, nos meses referidos no despacho recorrido, o rendimento dos
recorrentes excedeu três salários mínimos nacionais.
Não obstante a divergência
acabada de apontar, a questão jurídica de fundo persiste: para o efeito de se saber
se ultrapassa o limite fixado no despacho inicial como sendo o razoavelmente
necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado
familiar [artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE], com a consequente
obrigação de entrega imediata do eventual excedente ao fiduciário [al. c) do
n.º 4 do mesmo artigo], o rendimento do devedor deve ser avaliado tendo por
referência um período mensal ou anual?
A relevância prática desta
questão é evidente. Se a avaliação for mensal e a percepção do rendimento
também o for, deverá ser imediatamente entregue ao fiduciário a parte deste que
exceder o limite fixado no despacho inicial como sendo o razoavelmente
necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado
familiar. Isto será assim ainda que, noutros meses do mesmo ano do período de
cessão, o rendimento do devedor fique abaixo daquele limite ou não exista de
todo. Se a avaliação for anual, calcular-se-á a média mensal do rendimento
auferido pelo devedor durante esse período e, ainda que em um ou mais meses
exceda o apontado limite, se a média não ultrapassar este último, nenhuma parte
desse rendimento integrará o rendimento disponível e deverá ser entregue ao
fiduciário.
No seu relatório, a fiduciária
optou pelo segundo critério, concluindo que os recorrentes não tinham de lhe
entregar qualquer parte do seu rendimento. Os recorrentes secundaram a
fiduciária, sustentando a bondade do mesmo critério. Já o tribunal a quo adoptou o primeiro critério e, por
isso, ordenou, através do despacho recorrido, a rectificação do relatório da
fiduciária e a cessão, a esta última, da parte do rendimento dos recorrentes
que, nos meses de Novembro de 2019 e Fevereiro e Junho de 2020, excedeu o valor
de três salários mínimos.
No caso dos autos, a solução da
questão enunciada decorre, com clareza, do despacho inicial. Neste, o tribunal a quo determinou que a exoneração do
passivo restante será concedida desde que os requerentes, durante os cinco anos
subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão),
cedam ao fiduciário o rendimento que venham a auferir na parte que exceda, por
mês, três vezes o salário mínimo mensalmente garantido. Na parte em que
foram discriminadas as obrigações dos recorrentes, novamente se determinou que,
durante o período da cessão, aqueles ficavam obrigados a entregar imediatamente
ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de
cessão, ou seja, tudo aquilo que auferissem na parte em que excedesse, por
mês, três vezes o salário mínimo mensalmente garantido.
Portanto, o próprio despacho
inicial, que transitou em julgado, estabeleceu o critério mensal de aferição do
eventual excesso do rendimento auferido pelos recorrentes relativamente ao
limite de três salários mínimos nacionais. Verificando-se tal excesso, a parte
correspondente do rendimento dos recorridos deve ser imediatamente entregue à
fiduciária.
Temos perfeita noção de que o
critério mensal de aferição do rendimento do devedor é susceptível de gerar
situações de injustiça relativa. Num exemplo simples, um devedor que aufira um
rendimento mensal fixo que não exceda o limite do rendimento indisponível nunca
terá de ceder qualquer parte do mesmo ao fiduciário, enquanto um devedor que
aufira um rendimento mensal variável, que em alguns meses exceda o referido
limite, terá de ceder esse excesso ao fiduciário nos meses em que ele se
verificar ainda que, anualmente, o seu rendimento seja igual ou inferior ao do
primeiro devedor. A disfuncionalidade do referido critério mensal poderá ser
ainda maior na hipótese de o devedor ser trabalhador por conta de outrem em
regime sazonal, estando desempregado durante uma parte do ano, ou na de o
devedor ser trabalhador por conta própria e auferir rendimentos de forma muito irregular,
com meses em que excede o limite do rendimento indisponível seguidos de outros
em que pouco ou nenhum rendimento consegue obter.
Porventura, o legislador devia
ter acautelado situações como as descritas, nomeadamente através do
estabelecimento de regimes diferenciados. Perante a lei existente, cabe aos
tribunais fixar regimes que se adequem às particularidades de cada caso concreto
em vez de se refugiarem em fórmulas tabelares, bem como às partes e aos seus
advogados estarem atentos, pugnando pela fixação daqueles regimes e interpondo,
em devido tempo, recurso quando tal não aconteça.
No caso dos autos, como
anteriormente concluímos, é fora de dúvida que o despacho inicial, transitado
em julgado, fixou um regime mensal de aferição do rendimento dos recorrentes.
Consequentemente, o tribunal a quo
decidiu bem ao ordenar a entrega, à fiduciária, da parte do rendimento dos
recorrentes que, nos meses nele referidos, excedeu o valor de três salários
mínimos nacionais. Deverá, pois, o recurso ser julgado improcedente,
mantendo-se o despacho recorrido.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas
a cargo da massa insolvente.
Notifique.
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Évora, 25.02.2021
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.º adjunto