segunda-feira, 10 de junho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 06.06.2024

Processo n.º 1812/21.7T8STR-H.E1 – Insolvência.

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Sumário:

1 – O esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto a determinada matéria ocorre com a prolação da decisão e não com o trânsito em julgado desta.

2 – A mera declaração de insolvência não determina a transferência dos direitos – mormente do direito de propriedade – do insolvente sobre os bens que constituem a massa insolvente. O insolvente continua a ser o titular desses direitos até à sua alienação.

3 – Não viola o princípio do esgotamento do poder jurisdicional o juiz que, em processo de insolvência, posteriormente à prolação de despacho a determinar o levantamento da apreensão do alvará de uma farmácia para que o mesmo, na sequência do seu arresto preventivo decretado num processo criminal, passasse a estar sob a protecção, conservação e gestão do Gabinete de Administração de Bens, nos termos do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 45/2011, de 24.06, profere novo despacho, ordenando, ao administrador da insolvência, que obtenha, no prazo de dez dias, autorização daquele gabinete para que a farmácia continue em funcionamento.

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Insolvente/recorrente:

Farmácia (…), Lda..

Despacho recorrido:

«Requerimentos de 01/09, 04/09, 15/09, 20/09:

Por decisão já transitada em julgado proferida no âmbito do Proc. n.º 685/15.3TELSB-D, a correr termos no Juízo Central Criminal de Santarém – Juiz 4, foi determinado, para além do mais, o arresto preventivo do Alvará da Farmácia (...), Lda., datado de 28.3.2003.

Na sequência do decretamento de tal arresto foi determinado nos presentes autos o levantamento da apreensão do referido alvará por não se poder prosseguir com a sua liquidação.

Consta ainda da decisão que determinou o arresto preventivo que foi determinada a protecção, conservação e gestão dos bens arrestados ao Gabinete de Administração de Bens, nos termos do disposto nos arts. 10.º/1 e 3, al. a) e 16.º, da Lei n.º 45/2011, de 24-06.

Resulta do art.10.º, n.º1 e 3, alínea a) do citado diploma que a administração dos bens apreendidos é assegurada pelo GAB, a quem compete proteger, conservar e gerir os bens à guarda do Estado.

Assim sendo, uma vez que a administração do alvará passou a ser exercida pelo GAB, para que a farmácia possa continuar a prosseguir a sua actividade, terá a Sra. AI que obter a respectiva autorização junto daquele Gabinete, para o que se concede o prazo de 10 dias, e sem a qual terá que ser determinado o encerramento da actividade.

Notifique, sendo a Sra. AI para juntar aos autos a resposta daquela entidade.»

Conclusões do recurso:

- O tribunal a quo, ao ordenar o levantamento da apreensão do alvará da massa insolvente, e tendo já transitado em julgado tal decisão, não pode ordenar mais nenhum acto sobre o referido bem – violação ao disposto no artigo 613.º, n.º 1, do CPC.

- Mais, a Lei n.º 45/2011 não confere a propriedade dos bens ao GAB, apenas confere a administração dos bens apreendidos.

Questão a decidir:

- Se o despacho recorrido violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional.

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O n.º 1 do artigo 613.º do CPC estabelece que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Esta regra é aplicável aos despachos, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo. Consagra-se, assim, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional.

A recorrente afirma que, através da prolação do despacho recorrido, o tribunal a quo violou este princípio, porquanto anteriormente decidira, por despacho já transitado em julgado, levantar a apreensão do alvará. Considera a recorrente que, a partir da prolação deste último despacho, o tribunal não pode ordenar qualquer outro acto sobre o alvará.

Argumenta-se, por outro lado, que, por efeito do levantamento da sua apreensão, «o alvará entrou na esfera da propriedade da sociedade insolvente, sujeito à apreensão judicial decorrente do respectivo arresto decretado» no processo criminal.

Esta argumentação não procede.

Esclareça-se, em primeiro lugar, que o esgotamento do poder jurisdicional decorrente da prolação de decisão sobre determinada matéria não depende do trânsito em julgado desta. Tal esgotamento ocorre com a simples prolação da decisão, como decorre do n.º 1 do artigo 613.º do CPC. A partir desse momento, o tribunal que proferiu a decisão não pode proferir outra sobre a mesma matéria, seja em que sentido for. Portanto, a questão do trânsito em julgado da decisão anterior não tem qualquer relevo para a decisão do recurso.

A questão da titularidade do alvará também não releva. Essa titularidade não se alterou, mantendo-se na recorrente.

A mera declaração de insolvência não determina a transferência dos direitos – mormente do direito de propriedade – do insolvente sobre os bens que constituem a massa insolvente. Nos termos do artigo 81.º, n.º 1, do CIRE, aquela declaração priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência. Nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. Não obstante, o insolvente continua a ser o titular dos bens que constituem a massa insolvente até que os mesmos sejam alienados[1]. Logo, a recorrente continuou a ser a titular do alvará.

Por efeito do levantamento da apreensão decretada nos presentes autos, com vista à execução do arresto preventivo decretado no processo criminal, o que ocorreu foi a colocação do alvará sob a administração do Gabinete de Administração de Bens (GAB), nos termos do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 45/2011, de 24.06. A recorrente continua a ser a titular do alvará, apenas limitada pelos efeitos, não já da apreensão decretada nestes autos, mas do arresto decretado no processo criminal.

Portanto, como anteriormente afirmámos, a questão da titularidade do alvará é irrelevante para a análise da questão que temos em mãos. Tal titularidade continua a caber à recorrente e os poderes de administração sobre o alvará continuam a caber a terceiros. Apenas se alterou o processo judicial à ordem do qual o alvará se encontra apreendido, o título da apreensão e a entidade a quem cabe a sua administração.

Analisemos, finalmente, se, ao proferir o despacho recorrido, o tribunal a quo se pronunciou sobre a mesma matéria que no despacho que proferira anteriormente.

No primeiro dos dois despachos em análise, o tribunal a quo determinou o levantamento da apreensão do alvará. Fê-lo porque, num processo de natureza criminal, fora decretado o arresto preventivo do alvará. A partir desse momento, o alvará passou a estar sob a protecção, conservação e gestão do GAB, nos termos do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 45/2011, de 24.06.

No despacho recorrido, o tribunal a quo, considerando que a administração do alvará passara a ser exercida pelo GAB e tendo em vista possibilitar que a farmácia continuasse em funcionamento, determinou que a administradora da insolvência obtivesse, no prazo de dez dias, a necessária autorização daquele gabinete.

Com isso, o tribunal a quo não tomou uma segunda decisão sobre o levantamento da apreensão do alvará. Não decretou novamente o levantamento da apreensão, nem se recusou a proceder a esse levantamento apesar da prolação da decisão, no processo criminal, de arresto preventivo do alvará. Aquilo que o tribunal a quo fez foi, na sequência do levantamento da apreensão decretada neste processo e precisamente por causa dela, ordenar, à administradora da insolvência, que solicitasse, ao GAB, enquanto administrador do alvará, autorização para a manutenção da farmácia em funcionamento.

Ou seja, o despacho recorrido não versa sobre a mesma matéria do anterior, antes tendo este último como pressuposto. Se o levantamento da apreensão do alvará à ordem destes autos não tivesse sido levantada, o despacho recorrido não teria razão de ser.

Concluímos, assim, que, ao proferir o despacho recorrido, o tribunal a quo não violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, consagrado nos n.ºs 1 e 3 do artigo 613.º do CPC. Consequentemente, o recurso terá de ser julgado improcedente.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

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Évora, 06.06.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.ª adjunta)



[1] Cfr. os acórdãos da Relação de Évora de 10.09.2020 (Rui Machado e Moura) e da Relação do Porto de 10.02.2020 (Joaquim Moura).


Acórdão da Relação de Évora de 06.06.2024

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