terça-feira, 28 de junho de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 09.06.2022

Processo n.º 171/17.7T8STR-L.E1

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Sumário:

1 – O prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 120.º do CIRE não é de caducidade do direito de resolução em benefício da massa insolvente, antes constituindo o pressuposto temporal da existência deste direito.

2 – Consequentemente, não é admissível decidir, no despacho saneador, a pretexto de se estar a conhecer da excepção peremptória de caducidade, que as datas em que foram praticados actos resolvidos pelo administrador da insolvência estão compreendidas naquele prazo.

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AST e AV – Unipessoal, Lda., propuseram, contra Massa Insolvente de AVA, acção declarativa, com processo comum, de impugnação da resolução, em benefício da ré, dos seguintes actos: 1) Contrato-promessa de arrendamento de um imóvel que integra a massa insolvente; 2) Contrato de arrendamento do mesmo imóvel; 3) Constituição da sociedade autora; 4) Contrato de prestação de serviços celebrado entre a sociedade autora e o insolvente; 5) Hipoteca, incidente sobre vários imóveis, constituída pelo insolvente e pela sua ex-cônjuge a favor da sociedade autora.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador, no qual o tribunal a quo, além do mais, decidiu o seguinte:

“Invocam as AA. a inadmissibilidade legal da resolução, pelo Sr. AI, dos actos de celebração do contrato promessa de arrendamento do insolvente e esposa com a A. AST, em 1-3-2016; e constituição da A. AV – Unipessoal, Lda. em 3-11-2016, uma vez que a insolvência foi decretada em 18-1-2019, pelo que o período dos 2 anos está decorrido.

Cumpre apreciar.

Considerando a composição do processo principal, releva a seguinte factualidade “in casu”:

1. Os autos de insolvência que constituem o processo principal, tiveram início em 17-1-2017.

2. Posteriormente à instauração dos mesmos, veio o requerido comunicar que em 5-1-2017 havia sido proferido despacho de nomeação de AJP no proc. n.º 3119/16.2T8STR onde o aqui requerido figurava como revitalizando.

3. Consequentemente, no primeiro despacho que se proferiu no processo principal, em 26-1-2017, foram os autos de insolvência declarado suspensos.

4. Em 10-07-2018 foi levantada a suspensão do p.p e ordenada a citação do requerido.

5. Em 21-1-2019 foi decretada a insolvência do requerido.

Nos termos do art. 120º/1 do CIRE «1 - Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.» (sublinhado nosso).

Tendo o processo de insolvência iniciado-se em 17-1-2017, são suscetíveis de resolução todos os atos praticados entre 17-1-2015 e 17-1-2017.

Por conseguinte, não se verifica a caducidade do direito de resolução relativamente aos atos de 1-3-2016 e 3-11-2016 alegada pelas AA..

Em face do exposto, julgo improcedente a exceção de caducidade do direito de resolução invocada pelas AA., por não verificação da mesma.

Custas pelas AA, que se fixam em 1 UC.

Notifique.”

Em seguida, o tribunal a quo procedeu à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas de prova.

A identificação do objecto do litígio foi feita nos seguintes termos:

“A) Verificação dos requisitos para a resolução condicional a favor da massa insolvente dos negócios de celebração do contrato promessa de arrendamento entre o insolvente e a 1ª A. em 1-3-2016; constituição da 2ª A. pelo insolvente em 3-11-2016; celebração do contrato de arrendamento entre o insolvente e a 2ª A. em 29-12-2017; e celebração do contrato de prestação de serviços entre o insolvente e a 2ª A. em 1-2-2018.

B) Verificação dos requisitos para a resolução incondicional a favor da massa insolvente da constituição de hipoteca pelo insolvente António Violante Afoito, a favor da 2ª A., de 2-7-2018, sobre os prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de Santarém, sob os nºs 596, 1247, 1246, 62, 700, 1245, 702, 341, 573, 1245, 598, 1726, 701, 579, para garantir o pagamento de dívida até ao montante de € 350.000,00.”

 As autoras interpuseram recurso de apelação do segmento do despacho saneador que acima transcrevemos, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – A Meritíssima Juíza a quo fez, no despacho saneador por si proferido, uma interpretação meramente literal do disposto no artigo 120.º, n.º 1, do CIRE: 1 – “Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência”, numa evidente abstração da sua ligação à realidade factual e processual.

2 – Tendo dado entrada em 05/12/2016 um processo especial de revitalização (PER) de AVA e, só em 17/01/2017, a insolvência de que estes autos constituem apenso, não se poderá deixar de considerar um paralelismo com a figura da litispendência.

3 – O anterior PER determinou a suspensão imediata da insolvência, logo numa fase inicial sem que tenha sequer havido qualquer análise do mérito dessa mesma ação, ou sequer a citação do requerido, só ocorrida em 10/07/2018.

4 – O PER foi encerrado por despacho proferido em 13/07/2018, tendo sido decidido que o “(…) encerramento do processo foi determinada por conclusão do processo negocial sem aprovação de plano de recuperação e parecer de solvência - art.º 17º-G, 1 e 2 do CIRE.”.

5 – Foi nesta convicção, de uma correta adequação de condutas ao direito, que os demais agentes económicos atuaram também em relação ao então solvente AVA e com este contrataram, imbuídos de uma boa fé a toda a prova e, como tal, digna de proteção legal.

6 – Esta realidade processual, conhecida da Meritíssima Juíza a quo, não lhe permitia assim fazer uma aplicação literal do disposto no artigo 120.º, n.º 1, do CIRE.

7 – A decisão recorrida violou o elementar princípio da confiança, intrinsecamente ligado aos princípios da segurança jurídica e do Estado de Direito, que visa proteger, prioritariamente, as expectativas legítimas que nascem no cidadão, que confiou na postura e no vínculo criado através das normas prescritas no ordenamento jurídico.

8 – Não poderá uma decisão judicial proferida em 13/07/2018 no âmbito do PER (Proc. 3119/16.2T8STR), devidamente fundamentada, ponderada e transitada em julgado, na qual se considerou solvente AVA ser ignorada só porque deu entrada em 17/01/2017 uma ação de insolvência que logo ficou suspensa.

9 – É abusivo e contrário ao direito, o entendimento que se possa “atacar” atos praticados pelo insolvente desde 17/01/2015, quando este o não era seguramente em 13/07/2018, uma vez que foi confirmada a sua solvência por sentença.

10 – Na verdade, a interpretação do disposto no artigo 120.º, n.º 1, do CIRE deveria ter conduzido, em limite, a um recuo no tempo até à sentença preferida no PER e que o considerou solvente, servindo essa data como um verdadeiro tampão, impeditivo de gerar contradição de apreciações sobre a situação económica de António Violante Afoito num mesmo espaço temporal.

11 – O objecto de interpretação não é o texto da lei em si mesmo, mas a norma, que o texto pretende manifestar enquanto critério de decisão de conflitos.

12 – O julgador podia e devia, assim, ter julgado verificada a excepção da caducidade do direito.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

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Coloca-se a questão prévia da admissibilidade legal da prolação do saneador- sentença recorrido, tendo em conta o seu objecto.

O n.º 1 do artigo 595.º do CPC estabelece que o despacho saneador se destina a: a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.

O tribunal a quo considerou que, através do segmento do despacho saneador que constitui objecto do presente recurso, conheceu da excepção peremptória de caducidade do direito de resolução dos dois actos nele referidos.

Vejamos se é assim.

O n.º 2 do artigo 298.º do Código Civil estabelece que quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição. Portanto, na caducidade, está em causa um prazo para o exercício de um direito. Esta ideia é corroborada pelo regime da caducidade, constante dos artigos 328.º a 333.º do Código Civil.

Passemos ao CIRE, mais precisamente ao regime da resolução de actos em benefício da massa insolvente, constante dos artigos 120.º a 127.º. Estabelecem-se, aí, prazos, quer para o exercício do direito de resolução por parte do administrador da insolvência (artigo 123.º, n.º 1), quer para a impugnação dessa resolução através da propositura de acção a tanto destinada (artigo 125.º). Em ambos os casos, estão em causa prazos para o exercício de direitos, pelo que não há dúvida de que se trata de prazos de caducidade[1].

O prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 120.º do CIRE não se reporta ao exercício do direito de resolução pelo administrador da insolvência, como se entendeu na decisão recorrida. Esse prazo constitui um dos pressupostos da existência do direito de resolução de determinado acto, à semelhança da prejudicialidade deste à massa insolvente e da má-fé do terceiro com quem o acto tenha sido praticado. Logo, a sua ultrapassagem não gera a caducidade do direito de resolução. Se a data da prática de um acto for anterior ao início do referido prazo (o qual se conta de forma retrospectiva), o que acontece é que não se verifica o pressuposto temporal do direito de resolução e, consequentemente, este não chega a nascer. Por outras palavras, a data do acto encontrar-se abrangida pelo prazo constitui um facto constitutivo do direito de resolução. A anterioridade do acto relativamente ao início do prazo não constitui um facto extintivo do direito de resolução, pela simples razão de que, nessa hipótese, este não terá, sequer, chegado a nascer. O facto extintivo pressupõe que o direito nasceu e é logicamente posterior ao facto constitutivo do mesmo direito, como é óbvio.

Decorre do exposto que o segmento do despacho saneador que constitui objecto do presente recurso não decidiu qualquer excepção peremptória. Na realidade, conheceu de uma questão inidónea para ser objecto de uma decisão autónoma neste processo, como é a verificação de um dos pressupostos do direito de resolução cujo exercício foi impugnado pelas recorrentes. Tal questão deverá ser analisada na fase de discussão e julgamento da causa, a par da verificação dos restantes pressupostos do direito de resolução. O artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, não permite a prolação de despacho saneador destinado a decidir se determinado pressuposto do direito de resolução se verifica sem ser com a finalidade de conhecer imediatamente do pedido. Se não for para este efeito, não se justifica a antecipação do conhecimento de um pressuposto do direito de resolução no despacho saneador. Esse conhecimento deverá ter lugar, tal como o dos restantes pressupostos do direito de resolução, no momento processual próprio, que é a fase de discussão e julgamento da causa.

Significa isto que o segmento do despacho saneador que constitui objecto deste recurso não podia ter sido proferido, por violação do disposto no artigo 595.º, n.º 1, do CPC. Não obstante esta questão não ter sido suscitada pelas recorrentes, o tribunal ad quem deve conhecê-la oficiosamente, pois não pode ser colocado perante a opção da eventual confirmação, por improcedência da argumentação com base na qual o recurso foi configurado, de uma decisão extemporânea no sentido da verificação de um dos pressupostos de um direito cuja existência estará em discussão na fase de discussão e julgamento da causa, proferida no erróneo pressuposto de que se estava a decidir uma excepção peremptória. Repetimos, a eventual verificação daquele pressuposto da existência do direito de resolução em benefício da massa insolvente isoladamente da dos restantes não constitui objecto idóneo de uma decisão autónoma neste processo, não passando de um dos elementos da fundamentação da sentença, a proferir, mediante a qual o tribunal a quo decidirá se aquele direito existia efectivamente.

Concluindo, o segmento do despacho saneador que constitui objecto do recurso terá de ser revogado, devendo, assim, a discussão sobre a verificação da totalidade dos pressupostos da resolução efectuada pelo administrador da insolvência ter lugar na sede própria, que é a fase de discussão e julgamento da causa.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, revogar o segmento do despacho saneador que constitui objecto da apelação.

Não são devidas custas.

Notifique.

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Évora, 09.06.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)



[1] Não obstante a epígrafe do artigo 123.º do CIRE falar, erroneamente, de prescrição. Trata-se, porém, de questão irrelevante para a decisão do presente recurso.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 26.05.2022

Processo n.º 188/21.7T8RDD-B.E1

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Sumário:

1 – Ainda que o rendimento auferido pelo devedor no momento da prolação do despacho inicial coincida com o valor do salário mínimo nacional, deverá o tribunal indagar todos os factos relevantes para o cálculo do montante a excluir do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, o qual poderá ser superior àquele valor.

2 – O cálculo a efectuar nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, deve basear-se nas necessidades do devedor e do seu agregado familiar e não no montante do rendimento que o devedor aufira no momento da prolação do despacho inicial.

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A insolvente, IG, interpôs recurso de apelação do despacho inicial, mediante o qual o tribunal a quo admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por ela formulado e excluiu do rendimento disponível, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, o montante correspondente a um salário mínimo nacional.

As conclusões do recurso são as seguintes:

a) Por douto despacho inicial, foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela insolvente, aqui recorrente.

b) Porém, a recorrente não se conforma com o douto despacho proferido a fls., dos presentes autos que veio deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando como rendimento necessário para o seu sustento “minimamente” condigno, o valor equivalente a um salário mínimo nacional, actualmente cifrando-se em € 665,00 (seiscentos e sessenta e cinco euros).

c) Entende, assim, a recorrente que face aos elementos que foram trazidos ao conhecimento do tribunal a quo, quer através da prova documental, como pelos factos alegados e não contestados, deveria o tribunal a quo ter deferido o pedido de exoneração de passivo restante, atribuindo montante superior ao fixado para que a mesmo pudesse vir a sobreviver de forma condigna em, no mínimo, um salário mínimo nacional e meio.

d) Apesar do despacho recorrido determinar que o agregado familiar da recorrente é composto pela própria e pela sua filha menor com 6 anos de idade, a verdade é que tal não se veio a reflectir relativamente à determinação do valor excluído do rendimento disponível durante o período de cessão.

e) Foi considerado pelo tribunal a quo como necessário a um sustento minimamente condigno da aqui recorrente/insolvente e seu agregado familiar, fixar como limiar do rendimento disponível o valor correspondente a um salário mínimo nacional, actualmente fixado em € 665,00 (seiscentos e sessenta e cinco euros).

f) Contudo, face aos elementos probatórios junto aos autos e a própria indicação de despesas e gastos indicados e não contestados na petição inicial, deveria o tribunal a quo ter deferido o pedido de exoneração de passivo restante, excluindo um montante superior ao rendimento disponível àquele que veio a ser efetivamente fixado judicialmente.

g) A recorrente, na sua petição inicial, indicou como despesas mensais fixas o montante de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros), aproximadamente.

h) Conforme consta dos autos de insolvência, a recorrente dispõe como despesas fixas o montante de € 320,00 (trezentos e vinte euros) a título de renda de casa, o valor de € 33,00 (trinta e três euros) mensais correspondente a uma botija de gás, o valor de € 40,00 (quarenta euros) mensais de luz, o valor de € 52,00 (cinquenta e dois euros mensais) para a MEO.

i) Contudo, aos valores acima mencionados, acrescem todas as despesas efectuadas a título de alimentação da própria recorrente, bem como da sua filha menor com 6 anos de idade que, compreensivelmente, significará o dispêndio de valores bastante avultados para o seu crescimento condigno e saudável, tais como creches, alimentação específica, fraldas, vestuário constante.

j) Da análise do presente despacho que ora se recorre, resulta claramente, que não tomou o tribunal a quo em consideração para a fixação do valor excluído do rendimento disponível, todos os valores que efectivamente a recorrente tem que despender mensalmente.

k) Tal valor é manifestamente diminuto para um sustento adequado e humanamente condigno, tendo em consideração os gastos mensais da recorrente e do seu agregado familiar composto também pela sua filha menor.

l) Pois, retirando-se o valor relativo às despesas mensais da recorrente e seu agregado familiar, sobrará cerca de € 220,00 (duzentos e vinte euros), para se fazer face aos gastos decorrentes do dia-a-dia, tais como alimentação, vestuário e calçado para si e para a sua filha menor, o que, por si só, se mostra bastante insuficiente para uma pessoa conseguir sobreviver em cada mês com o mínimo de condições humanamente imprescindíveis.

m) Também não foi considerado pelo tribunal a quo o facto de a insolvente residir no Redondo e trabalhar em Évora, situação que, obviamente, comportará custos acrescidos em combustível de cerca de € 150,00 (cento e cinquenta euros) mensais, sendo esta a única forma de poder deslocar-se para o seu local de trabalho, uma vez que a rede de transportes públicos entre o Redondo e Évora ser bastante deficitária e escassa.

n) Do disposto na alínea b) do art.º 239.º do CIRE resulta que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham de qualquer título ao devedor, com excepção daqueles que razoavelmente são necessários para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, bem como os necessários para o exercício da sua atividade profissional.

o) No presente caso, não pode a atribuição do valor para a sobrevivência da recorrente e seu agregado familiar ser fixada como se fosse ela a única a fazer parte do agregado familiar ou se se tratasse de uma pessoa a viver em casa dos pais e por estes sustentada.

p) Atendendo aos valores/despesas indicados nos autos, deveria o tribunal a quo ter tido em consideração os valores alegados pela aqui recorrente, levando, necessariamente, a uma decisão diferente daquela que veio efectivamente a ser proferida.

q) A decisão que fixou a quantia mensal correspondente a um salário mínimo nacional como montante suficiente ao sustento condigno da recorrente e sua filha menor, viola o regime excepcional previsto nas subalíneas i); ii) e iii) da alínea b) do art.º 239.º do CIRE.

r) É patente e notória a ilegalidade da decisão proferida pelo tribunal a quo, ao não ter deferido a exclusão do rendimento disponível da recorrente no montante equivalente a um salário mínimo e meio.

s) Está excluído do rendimento disponível, conforme o preceituado no n.º 2 do aludido artigo 239.º do CIRE, o montante que se mostre razoável e necessário para “o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.

t) A jurisprudência constitucional (cfr. acórdão do TC nº 177/2002, com força obrigatória geral, publicado in DR, 1ª Série-A, nº 150, de 02.07.2004, p. 5158), pronuncia-se no sentido de que o salário mínimo nacional será um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado como essencial para garantir um mínimo de subsistência condigna.

u) Tais critérios não devem, todavia, ser utilizados de forma automática conforme o verificado no despacho recorrido, sem se atender aos aspectos particulares do caso concreto em apreciação, sob pena de uma interpretação restritiva do disposto no art.º 239.º, n.º 3, al. b) (i) do CIRE, o que a lei não permite.

v) Sendo certo que a exoneração do passivo restante não pode ser vista como a possibilidade de o insolvente se liberar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores durante o período de cessão, o montante a excluir deve, todavia, ser o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e respetivo agregado familiar, cabendo ao juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar este limite.

w) A prevalência da função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular sobre a sua função externa, que como é sabido, é a garantia geral dos credores, devem harmonizar-se, sacrificando-se a garantia dos credores na justa medida do que seja razoavelmente necessário para o sustento condigno do devedor e o seu agregado familiar e para o exercício condigno da sua atividade profissional e outras despesas que se integrem nesse conceito – neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 05/07/2012, - proc. nº 7373/11.8TBALM-A.L1-2, disponível in www.dgsi.pt.

x) O despacho ora posto em causa coarta a possibilidade de a devedora, aqui recorrente, se reabilitar economicamente, pondo inclusivamente em causa o seu sustento e o do seu agregado familiar, de forma condigna e humana.

y) A fixação do valor excluído do rendimento objecto de cessão nos moldes em que foi decretado, sem ter em conta a base de vida familiar e profissional da recorrente, é passível de violar o direito da mesma poder ter uma subsistência condigna, bem como a proverem à sua reabilitação económica. z) Não se pode olvidar o facto do agregado familiar da recorrente não ser composto apenas pela própria, mas sim por ela e a sua filha menor que bastantes despesas acarreta.

aa) No caso sub judice, o valor excluído do rendimento objecto de cessão é manifestamente diminuto, consubstanciando uma medida inconstitucional, por grave violação do princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da igualdade, ambos consagrados no artigo 1.º e 13.º da CRP.

bb) O princípio da dignidade humana obriga a que o ordenamento jurídico português estabeleça normas que salvaguardem a todas as pessoas o sustento mínimo para uma existência condigna.

cc) Por referência ao valor fixado no douto despacho que se recorre, na quantia de um salário mínimo nacional, sempre se dirá que, abatida a quantia paga a título de despesas mensais fixas, o valor remanescente se mostra claramente insuficiente para a sobrevivência condigna da recorrente e da sua filha menor que, obviamente, não conseguirá sustentar condignamente da melhor forma.

dd) A atribuição de um montante inferior ao que a insolvente/recorrente aufere mensalmente, levará inevitavelmente a que a situação económica da mesma se torne insustentável, colocando o insolvente/recorrente, abaixo de um padrão mínimo de dignidade social podendo, inclusivamente, levar a uma séria dificuldade em prover ao sustento digno da sua filha menor.

ee) Considerando-se que o montante que a recorrente pretende ver retido em seu proveito não extravasa o conceito do “razoavelmente necessário” e acautela o sustento minimamente digno da insolvente - Nesse sentido, ac. RL de 02.05.2013, relatado pela desembargadora Magda Geraldes, in www.dgsi.pt e ac. RG, de 18.06.2013, relatado pelo desembargador Paulo Duarte Barreto, in dge.mj.pt.

ff) O critério do salário mínimo nacional não foi erigido pelo legislador do CIRE como decisivo para a fixação do sustento mínimo do devedor e agregado familiar, mas sim, um juízo de ponderação equitativa em face das circunstâncias singulares e concretas do caso aferido pelo conhecimento da “lei” da vida e, sobretudo, pelo respeito da dignidade humana.

gg) In casu, a decisão em crise não procedeu a uma correcta interpretação e aplicação do direito, como lhe competia revelando, desse modo, iniquidade e desconhecimento dos custos reais mínimos indispensáveis às necessidades básicas e elementares da dignidade humana, quer da própria recorrente como da sua filha menor.

hh) Pelo que, e em face do quadro de vida e de despesas da insolvente/ recorrente, claramente demonstradas e provadas nos presentes autos, entende-se que é adequado e proporcional que à mesma lhe seja fixado um valor de sustento minimamente digno, e equivalente a um salário mínimo nacional e meio.

ii) Entende, assim, a recorrente que o douto despacho recorrido, violou, por deficiente interpretação, o art.º 239.º, n.º 3, al. b), pontos i); ii) e iii) do CIRE, bem como os preceitos constitucionais consagrados através dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, conforme preceituado nos artigos 1.º e 13.º da CRP.

jj) Uma vez que tal quantia fixada à insolvente, face às considerações supra expostas, fará com que a economia da recorrente se torne insustentável, e abaixo de um padrão mínimo de dignidade social, manifestamente insuficiente para garantir uma vida condigna.

kk) Para além do despacho recorrido ter acabado por considerar a presente situação igual a tantas outras situações em que o agregado familiar do insolvente é apenas composto pelo próprio.

ll) Na presente situação, a devedora tem a seu cargo uma filha menor, o que, naturalmente, deverá levar a uma decisão diferente daquela que veio a ser decretada, relativamente ao montante excluído do rendimento disponível por forma a garantir a sobrevivência digna e humana desse agregado.

mm) No respeito ao art.º 13.º da CRP – princípio da igualdade – deve dar-se tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente, ou seja, se o agregado familiar da insolvente fosse apenas composto pela própria, legalmente ter-se-ia sempre que excluir do seu rendimento disponível o valor correspondente a um salário mínimo nacional, sendo este o valor considerado como o limite mínimo para a salvaguarda do sustento digno da pessoa humana.

nn) Contudo, no caso concreto, o agregado familiar da insolvente não é apenas composto pela própria, mas sim também pela sua filha menor, não se podendo tratar esta situação da mesma forma que a situação de um agregado familiar composto apenas pelo insolvente.

oo) A decisão recorrida ao excluir o montante de um salário mínimo nacional do rendimento disponível da insolvente, está claramente a tratar de igual forma situações que são essencialmente diferentes, violando-se, consequentemente, o referido no art.º 13.º da CRP.

pp) Assim, tendo em conta a matéria de facto, a recorrente pugna pela alteração do montante excluído do rendimento disponível, afigurando-se razoável e adequado, para uma vivência condigna do seu agregado familiar, o montante equivalente a um salário mínimo nacional e meio.

qq) Considerando-se que o montante que a recorrente pretende ver retido em seu proveito não extravasa o conceito do “razoavelmente necessário” e acautela o sustento minimamente digno do insolvente - Nesse sentido, ac. RL de 02.05.2013, relatado pela desembargadora Magda Geraldes, in www.dgsi.pt e ac. RG, de 18.06.2013, relatado pelo desembargador Paulo Duarte Barreto, in dge.mj.pt.

rr) Pelos motivos acima expostos, entende a recorrente que o tribunal a quo não procedeu a uma correcta interpretação e aplicação do direito, como lhe competia, porque procedeu a uma análise redutora e ligeira, quer dos factos, quer do direito aplicável, tendo sido violados os normativos legais previstos no art.º 239.º do C.I.R.E. e do art.º 1.º e 13.º da CRP.

ss) Devendo ser revogada a decisão recorrida e, consequentemente, ser substituída por outra onde seja determinada a exclusão do rendimento disponível no montante equivalente a um salário mínimo e meio.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido.

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Suscita-se a questão da suficiência da matéria de facto apurada pelo tribunal a quo para a fixação do montante a excluir do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE.

No despacho recorrido, com relevância para a fixação daquele montante, o tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

1 – A insolvente aufere o salário mínimo nacional;

2 – O agregado familiar da insolvente é constituído por si e por sua filha.

Não consta do despacho recorrido qualquer facto não provado.

A referida matéria de facto é insuficiente para uma fixação conscienciosa do montante a excluir do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE. Importa apurar outros factos, indispensáveis para o apuramento do montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno da insolvente e do seu agregado familiar (artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE), a saber:

- Se a recorrente habita casa arrendada ou cedida a título gratuito e, na primeira hipótese, qual é o montante da renda;

- Qual é a tipologia dessa casa, pois pode acontecer que a mesma seja superior às necessidades do agregado familiar e, assim, a recorrente tenha o ónus de procurar uma casa que ainda satisfaça aquelas necessidades e envolva o dispêndio de uma parte inferior do seu rendimento;

- Que idade tem a filha da recorrente que integra o agregado familiar desta;

- Se o pai da referida filha da recorrente paga uma pensão de alimentos àquela destinada e, na hipótese afirmativa, qual é o seu montante actual;

- Em que que localidade a recorrente reside;

- Onde se situa o local de trabalho da recorrente; se se situar em localidade diversa daquela onde a recorrente reside, que meio de transporte esta utiliza para se deslocar entre aquele e a sua residência e que custo isso implica; se, tendo em conta o horário e a exacta localização do posto de trabalho da recorrente, existem alternativas mais baratas que o meio de transporte por esta utilizado (correndo este processo no Juízo de Competência Genérica do Redondo, a realidade em matéria de oferta de transportes públicos é, garantidamente, muito diferente da de uma área metropolitana como, por exemplo, a de Lisboa);

- Quais são as restantes despesas fixas da recorrente.

Apesar de, segundo foi julgado provado no despacho recorrido, a recorrente auferir actualmente o salário mínimo nacional, equivalendo, portanto, ao montante excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, o apuramento da referida matéria de facto é relevante, não redundando num exercício estéril. Basta ter presente que, durante o período da cessão, a recorrente poderá aumentar o seu rendimento, encontrando uma actividade profissional mais rentável ou acumulando mais de um emprego. Daí, certamente, a interposição do presente recurso. O cálculo a efectuar nos termos daquela norma legal deve basear-se nas necessidades do devedor e do seu agregado familiar e não no montante do rendimento que o devedor aufira no momento da prolação do despacho inicial.

Consequentemente, impõe-se, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, a anulação do despacho recorrido, para que o tribunal a quo proceda à ampliação da matéria de facto em conformidade com o exposto, conhecendo dos factos em questão, com intervenção do Senhor Juiz que proferiu aquele despacho. O tribunal a quo deverá praticar as diligências probatórias que se revelarem necessárias para o apuramento dos mesmos factos.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, anular o despacho recorrido, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, para que o tribunal a quo, com intervenção do Senhor Juiz que proferiu aquele despacho, proceda à ampliação da matéria de facto em conformidade com o exposto na fundamentação deste acórdão.

Não são devidas custas.

Notifique.

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Évora, 26.05.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta

Acórdão da Relação de Évora de 19.03.2024

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