Processo n.º 171/17.7T8STR-L.E1
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Sumário:
1 – O prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 120.º do CIRE não é de caducidade do direito de resolução em benefício da massa insolvente, antes constituindo o pressuposto temporal da existência deste direito.
2 – Consequentemente, não é admissível decidir, no despacho saneador, a pretexto de se estar a conhecer da excepção peremptória de caducidade, que as datas em que foram praticados actos resolvidos pelo administrador da insolvência estão compreendidas naquele prazo.
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AST
e AV – Unipessoal, Lda., propuseram, contra Massa Insolvente de AVA, acção
declarativa, com processo comum, de impugnação da resolução, em benefício da
ré, dos seguintes actos: 1) Contrato-promessa de arrendamento de um imóvel que
integra a massa insolvente; 2) Contrato de arrendamento do mesmo imóvel; 3)
Constituição da sociedade autora; 4) Contrato de prestação de serviços
celebrado entre a sociedade autora e o insolvente; 5) Hipoteca, incidente sobre
vários imóveis, constituída pelo insolvente e pela sua ex-cônjuge a favor da
sociedade autora.
A
ré contestou, pugnando pela improcedência da acção.
Foi
proferido despacho saneador, no qual o tribunal a quo, além do mais, decidiu o seguinte:
“Invocam as AA. a inadmissibilidade legal
da resolução, pelo Sr. AI, dos actos de celebração do contrato promessa de
arrendamento do insolvente e esposa com a A. AST, em 1-3-2016; e constituição
da A. AV – Unipessoal, Lda. em 3-11-2016, uma vez que a insolvência foi
decretada em 18-1-2019, pelo que o período dos 2 anos está decorrido.
Cumpre apreciar.
Considerando a composição do processo
principal, releva a seguinte factualidade “in casu”:
1. Os autos de insolvência que constituem
o processo principal, tiveram início em 17-1-2017.
2. Posteriormente à instauração dos
mesmos, veio o requerido comunicar que em 5-1-2017 havia sido proferido
despacho de nomeação de AJP no proc. n.º 3119/16.2T8STR onde o aqui requerido
figurava como revitalizando.
3. Consequentemente, no primeiro despacho
que se proferiu no processo principal, em 26-1-2017, foram os autos de
insolvência declarado suspensos.
4. Em 10-07-2018 foi levantada a suspensão
do p.p e ordenada a citação do requerido.
5. Em 21-1-2019 foi decretada a
insolvência do requerido.
Nos termos do art. 120º/1 do CIRE «1 -
Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à
massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do
processo de insolvência.» (sublinhado nosso).
Tendo o processo de insolvência
iniciado-se em 17-1-2017, são suscetíveis de resolução todos os atos praticados
entre 17-1-2015 e 17-1-2017.
Por conseguinte, não se verifica a
caducidade do direito de resolução relativamente aos atos de 1-3-2016 e
3-11-2016 alegada pelas AA..
Em face do exposto, julgo improcedente a
exceção de caducidade do direito de resolução invocada pelas AA., por não verificação
da mesma.
Custas pelas AA, que se fixam em 1 UC.
Notifique.”
Em seguida, o tribunal a quo procedeu à identificação do
objecto do litígio e à enunciação dos temas de prova.
A identificação do objecto do
litígio foi feita nos seguintes termos:
“A) Verificação dos requisitos para a
resolução condicional a favor da massa insolvente dos negócios de celebração do
contrato promessa de arrendamento entre o insolvente e a 1ª A. em 1-3-2016;
constituição da 2ª A. pelo insolvente em 3-11-2016; celebração do contrato de
arrendamento entre o insolvente e a 2ª A. em 29-12-2017; e celebração do
contrato de prestação de serviços entre o insolvente e a 2ª A. em 1-2-2018.
B) Verificação dos requisitos para a
resolução incondicional a favor da massa insolvente da constituição de hipoteca
pelo insolvente António Violante Afoito, a favor da 2ª A., de 2-7-2018, sobre
os prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de Santarém,
sob os nºs 596, 1247, 1246, 62, 700, 1245, 702, 341, 573, 1245, 598, 1726, 701,
579, para garantir o pagamento de dívida até ao montante de € 350.000,00.”
As autoras interpuseram recurso de apelação do
segmento do despacho saneador que acima transcrevemos, tendo formulado as
seguintes conclusões:
1 – A
Meritíssima Juíza a quo fez, no despacho
saneador por si proferido, uma interpretação meramente literal do disposto no artigo
120.º, n.º 1, do CIRE: 1 – “Podem ser
resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa
praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de
insolvência”, numa evidente abstração da sua ligação à realidade factual e
processual.
2 – Tendo
dado entrada em 05/12/2016 um processo especial de revitalização (PER) de AVA
e, só em 17/01/2017, a insolvência de que estes autos constituem apenso, não se
poderá deixar de considerar um paralelismo com a figura da litispendência.
3 – O
anterior PER determinou a suspensão imediata da insolvência, logo numa fase
inicial sem que tenha sequer havido qualquer análise do mérito dessa mesma
ação, ou sequer a citação do requerido, só ocorrida em 10/07/2018.
4 – O
PER foi encerrado por despacho proferido em 13/07/2018, tendo sido decidido que
o “(…) encerramento do processo foi
determinada por conclusão do processo negocial sem aprovação de plano de
recuperação e parecer de solvência - art.º 17º-G, 1 e 2 do CIRE.”.
5 – Foi
nesta convicção, de uma correta adequação de condutas ao direito, que os demais
agentes económicos atuaram também em relação ao então solvente AVA e com este
contrataram, imbuídos de uma boa fé a toda a prova e, como tal, digna de
proteção legal.
6 – Esta
realidade processual, conhecida da Meritíssima Juíza a quo, não lhe permitia assim fazer uma aplicação literal do
disposto no artigo 120.º, n.º 1, do CIRE.
7 – A decisão
recorrida violou o elementar princípio da confiança, intrinsecamente ligado aos
princípios da segurança jurídica e do Estado de Direito, que visa proteger,
prioritariamente, as expectativas legítimas que nascem no cidadão, que confiou
na postura e no vínculo criado através das normas prescritas no ordenamento
jurídico.
8 – Não
poderá uma decisão judicial proferida em 13/07/2018 no âmbito do PER (Proc.
3119/16.2T8STR), devidamente fundamentada, ponderada e transitada em julgado,
na qual se considerou solvente AVA ser ignorada só porque deu entrada em
17/01/2017 uma ação de insolvência que logo ficou suspensa.
9 – É
abusivo e contrário ao direito, o entendimento que se possa “atacar” atos
praticados pelo insolvente desde 17/01/2015, quando este o não era seguramente
em 13/07/2018, uma vez que foi confirmada a sua solvência por sentença.
10 – Na
verdade, a interpretação do disposto no artigo 120.º, n.º 1, do CIRE deveria
ter conduzido, em limite, a um recuo no tempo até à sentença preferida no PER e
que o considerou solvente, servindo essa data como um verdadeiro tampão,
impeditivo de gerar contradição de apreciações sobre a situação económica de
António Violante Afoito num mesmo espaço temporal.
11 – O
objecto de interpretação não é o texto da lei em si mesmo, mas a norma, que o
texto pretende manifestar enquanto critério de decisão de conflitos.
12 – O
julgador podia e devia, assim, ter julgado verificada a excepção da caducidade
do direito.
Não
foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido, com
subida em separado e efeito meramente devolutivo.
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Coloca-se a questão prévia da
admissibilidade legal da prolação do saneador- sentença recorrido, tendo em
conta o seu objecto.
O n.º 1 do artigo 595.º do CPC
estabelece que o despacho saneador se
destina a: a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que
hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos
autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da
causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais
provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de
alguma excepção peremptória.
O tribunal a quo considerou que, através do segmento do despacho saneador que
constitui objecto do presente recurso, conheceu da excepção peremptória de
caducidade do direito de resolução dos dois actos nele referidos.
Vejamos se é assim.
O n.º 2 do artigo 298.º do Código Civil
estabelece que quando,
por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro
de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se
refira expressamente à prescrição. Portanto, na caducidade, está em causa um
prazo para o exercício de um direito. Esta ideia é corroborada pelo regime da
caducidade, constante dos artigos 328.º a 333.º do Código Civil.
Passemos ao CIRE, mais
precisamente ao regime da resolução de actos em benefício da massa insolvente,
constante dos artigos 120.º a 127.º. Estabelecem-se, aí, prazos, quer para o
exercício do direito de resolução por parte do administrador da insolvência
(artigo 123.º, n.º 1), quer para a impugnação dessa resolução através da
propositura de acção a tanto destinada (artigo 125.º). Em ambos os casos, estão
em causa prazos para o exercício de direitos, pelo que não há dúvida de que se
trata de prazos de caducidade[1].
O prazo estabelecido no n.º
1 do artigo 120.º do CIRE não se reporta ao exercício do direito de resolução
pelo administrador da insolvência, como se entendeu na decisão recorrida. Esse
prazo constitui um dos pressupostos da existência do direito de resolução de
determinado acto, à semelhança da prejudicialidade deste à massa insolvente e
da má-fé do terceiro com quem o acto tenha sido praticado. Logo, a sua ultrapassagem
não gera a caducidade do direito de resolução. Se a data da prática de um acto
for anterior ao início do referido prazo (o qual se conta de forma
retrospectiva), o que acontece é que não se verifica o pressuposto temporal do
direito de resolução e, consequentemente, este não chega a nascer. Por outras
palavras, a data do acto encontrar-se abrangida pelo prazo constitui um facto
constitutivo do direito de resolução. A anterioridade do acto relativamente ao
início do prazo não constitui um facto extintivo do direito de resolução, pela
simples razão de que, nessa hipótese, este não terá, sequer, chegado a nascer.
O facto extintivo pressupõe que o direito nasceu e é logicamente posterior ao
facto constitutivo do mesmo direito, como é óbvio.
Decorre do exposto que o
segmento do despacho saneador que constitui objecto do presente recurso não
decidiu qualquer excepção peremptória. Na realidade, conheceu de uma questão
inidónea para ser objecto de uma decisão autónoma neste processo, como é a
verificação de um dos pressupostos do direito de resolução cujo exercício foi
impugnado pelas recorrentes. Tal questão deverá ser analisada na fase de
discussão e julgamento da causa, a par da verificação dos restantes
pressupostos do direito de resolução. O artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC,
não permite a prolação de despacho saneador destinado a decidir se determinado
pressuposto do direito de resolução se verifica sem ser com a finalidade de conhecer
imediatamente do pedido. Se não for para este efeito, não se justifica a
antecipação do conhecimento de um pressuposto do direito de resolução no
despacho saneador. Esse conhecimento deverá ter lugar, tal como o dos restantes
pressupostos do direito de resolução, no momento processual próprio, que é a fase
de discussão e julgamento da causa.
Significa isto que o
segmento do despacho saneador que constitui objecto deste recurso não podia ter
sido proferido, por violação do disposto no artigo 595.º, n.º 1, do CPC. Não
obstante esta questão não ter sido suscitada pelas recorrentes, o tribunal ad quem deve conhecê-la oficiosamente,
pois não pode ser colocado perante a opção da eventual confirmação, por
improcedência da argumentação com base na qual o recurso foi configurado, de uma
decisão extemporânea no sentido da verificação de um dos pressupostos de um
direito cuja existência estará em discussão na fase de discussão e julgamento da
causa, proferida no erróneo pressuposto de que se estava a decidir uma excepção
peremptória. Repetimos, a eventual verificação daquele pressuposto da
existência do direito de resolução em benefício da massa insolvente
isoladamente da dos restantes não constitui objecto idóneo de uma decisão autónoma
neste processo, não passando de um dos elementos da fundamentação da sentença,
a proferir, mediante a qual o tribunal a
quo decidirá se aquele direito existia efectivamente.
Concluindo, o segmento do
despacho saneador que constitui objecto do recurso terá de ser revogado, devendo,
assim, a discussão sobre a verificação da totalidade dos pressupostos da
resolução efectuada pelo administrador da insolvência ter lugar na sede
própria, que é a fase de discussão e julgamento da causa.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, revogar o segmento do despacho saneador que constitui objecto da apelação.
Não
são devidas custas.
Notifique.
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Évora, 09.06.2022
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.º
adjunto)
(2.ª adjunta)
[1] Não
obstante a epígrafe do artigo 123.º do CIRE falar, erroneamente, de prescrição.
Trata-se, porém, de questão irrelevante para a decisão do presente recurso.