Processo n.º 1257/19.9T8OLH.E1
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Sumário:
1
– Em processo especial de revitalização, o plano de recuperação que estabeleça que
os créditos de que são titulares a Autoridade Tributária e
Aduaneira e o Instituto da Segurança Social, IP serão pagos em 150 prestações
mensais opera uma modificação desses créditos. Consequentemente, não é
aplicável o disposto no artigo 212.º, n.º 2, al. a), do CIRE, tendo aquelas
entidades direito de voto.
2 – Não viola o princípio da igualdade dos credores, consagrado no artigo
194.º do CIRE, aplicável ao processo especial de revitalização por via da
remissão operada pelo artigo 17.º-F, n.º 7, do mesmo código, o plano de
recuperação que estabeleça que os créditos comuns de
que são titulares a Autoridade Tributária e
Aduaneira e o Instituto da Segurança Social, IP serão pagos integralmente,
embora em 150 prestações mensais, e os restantes créditos comuns serão pagos
apenas em 50%, com perdão total de juros de mora vencidos e vincendos, em 150
prestações mensais e com uma moratória de 2 anos.
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Neste processo especial de
revitalização, foi proferida sentença homologatória do plano de recuperação de (…),
SAD.
O credor CF interpôs recurso de
apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:
a) O recurso ora interposto pelo
recorrente versa sobre a sentença datada de 3 de Agosto 2020, na medida em que
aprova homologa o plano de recuperação da (…), SAD.
b) A homologação do plano viola
o disposto na lei, nomeadamente os artigos 212.º, n.º 2, al. a) (aplicável ex vi artigo 17.º- F, n.º 7), artigo 17.º
- F, n.º 5, e 194.º, n.º 1, do CIRE.
c) Num primeiro momento viola o princípio
de igualdade dos credores – artigo 194.º, n.º 1, do CIRE.
d) Uma vez que os créditos
comuns reclamados pela Autoridade Tributária e Aduaneira e Instituto de Gestão Financeira
e Segurança Social serão pagos na totalidade, com os devidos juros e sem
qualquer período de carência, nos termos do previsto no plano.
e) Enquanto os restantes
créditos comuns são reduzidos a 50% e são pagos em 150 prestações, com um
período de carência de 2 (dois) anos.
f) Não há dúvida que ambos os
créditos têm natureza comum, nada os distingue uns dos outros a não ser os seus
titulares.
g) Verifica-se aqui um
tratamento desigual entre créditos que são qualificados da mesma forma.
h) A violação prevista no plano,
sem que haja o consentimento expresso ou tácito por parte dos credores lesados,
é considerado um facto determinante para a recusa da homologação do plano por
parte do tribunal a quo.
i) Nesse sentido, tal ofensa,
pelo plano, do princípio da igualdade dos credores, constitui uma violação não negligenciável
e, consequentemente, causa fundada de recusa da sua homologação.
j) Analisado o plano colocado à
votação, facilmente se conclui que a revitalização não prevê qualquer
modificação dos créditos reconhecidos à Autoridade Tributária e ao Instituto da
Segurança Social.
k) Pelo que, num segundo
momento, viola o artigo 212.º, n.º 2, al. a), do CIRE (aplicável ex vi artigo 17.º-F, n.º 7, também do
CIRE), na medida em que aqueles créditos, porque não modificados pela parte
dispositiva do plano de revitalização, não conferem direito de voto.
l) Retirando-se os créditos
reclamados pela Autoridade Tributária e pelo Instituto de Segurança Social,
constata-se que os créditos que votaram favoravelmente ascendem ao montante de
999.512,00 Euros.
m) Desses créditos, 780.000,00
Euros são créditos subordinados.
n) Nos termos do artigo 17.º-F,
n.º 5, do CIRE, o plano considera-se aprovado desde que mais de metade dos
votos emitidos não correspondam a créditos não subordinados.
o) O valor dos créditos que
votaram favoravelmente e que não são subordinados corresponde a 21,96%.
p) Pelo que o tribunal a quo não poderia homologar o plano
apresentado.
Também a credora C., Lda.,
interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes
conclusões:
1. A devedora veio instaurar o presente
processo especial de revitalização.
2. Sucede que do plano
apresentado não consta o crédito no valor de € 11.818,69 devidos à ora recorrente.
3. Nessa senda, a credora, ora recorrente,
apresentou por apenso aos presentes autos de processo especial de revitalização
acção de verificação ulterior de créditos, pese embora no processo especial de
revitalização (processo n.º 38/16.6T8OLH), que correu termos no Juízo de
Comércio de Olhão – Juiz 2, tenha sido indicada como credora e o seu crédito
reconhecido aquando da apresentação dos presentes autos de revitalização, não
foi o mesmo indicado na lista de credores, sendo certo que nunca foi convocada
para participar nas negociações.
4. Por sentença datada de 15.05.2020,
o tribunal indeferiu liminarmente a presente acção, por inadmissibilidade legal,
e condenou a autora nas custas, tendo a sido apresentado recurso de apelação, o
qual se encontra pendente.
5. Contudo a ora recorrente
sempre manifestou a sua adesão aos requerimentos apresentados pelos restantes
credores devido ao tratamento desigual que estava a ser dado, nomeadamente aos
diversos créditos comuns, pugnando pela não aprovação e homologação do plano de
recuperação da devedora.
6. Por sentença datada de 03.08.2020,
o tribunal a quo decidiu homologar o
plano de recuperação da (…), SAD nos seus precisos termos.
7. A credora ora recorrente não
se conforma com a sentença recorrida desde logo porquanto a mesma viola o
princípio da igualdade de tratamento dos credores, previsto no artigo 194.º,
n.º 1 do CIRE.
8. Desde logo porquanto os
credores Autoridade Tributária e Aduaneira e Instituto de Gestão Financeira e
Segurança Social serão pagos na totalidade enquanto os restantes créditos
comuns serão pagos a 50% e são pagos em 150 prestações, com um período de
carência de dois anos.
9. O que consubstancia um
tratamento desigual entre créditos que são qualificados da mesma forma.
10. Ao que acresce que os
créditos, porque não modificados pela parte dispositiva do plano de
revitalização não conferem direito de voto.
11. Estabelece o artigo 17.º-F,
n.º 5, do CIRE, que o plano se considera aprovado desde que mais de metade dos
votos emitidos não correspondam a créditos não subordinados.
12. Sendo certo que os credores
que votaram favoravelmente e que não são subordinados corresponde a 21,96%.
13. Andou mal o tribunal “a quo”
ao homologar o plano de recuperação apresentado.
14. A sentença recorrida viola
os artigos 212.º, n.º 2, al. a) (aplicável ex
vi artigo 17.º- F, n.º 7), artigo 17.º- F, n.º 5, e 194.º, n.º 1, do CIRE.
15. Termos em que, e face ao
supra exposto, deverá a sentença recorrida que homologou o plano de recuperação
da (…), SAD nos seus precisos termos ser revogada.
A devedora, (…), SAD,
contra-alegou, pugnando pela improcedência dos recursos.
Os recursos foram admitidos, com
subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
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As questões a resolver são as seguintes:
1 – Se os credores Autoridade Tributária e Aduaneira e
Instituto da Segurança Social, IP tinham direito de voto;
2 – Se o plano de
recuperação viola o
princípio de igualdade dos credores.
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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:
1 – O plano de recuperação apresentado, cujo teor se dá aqui por
integralmente reproduzido (ref. Citius 8033939), prevê um total de créditos com
direito de voto no valor de € 2.964.985,26.
2 – Participaram na votação credores titulares de créditos com o valor
total de € 2.641.503,18, correspondente a 89,09% da totalidade dos créditos.
3 – Votaram em favor da aprovação do plano credores titulares de créditos
com o valor total de € 2.248.527,03, correspondente a 85,12% da totalidade dos
votos emitidos.
4 – Votaram em favor da aprovação do plano credores titulares de créditos
não subordinados com o valor total de € 1.468.527,03, correspondente a 55,59%
da totalidade dos votos emitidos.
5 – Votaram contra a aprovação do plano credores titulares de créditos
com o valor total de € 392.976,15, correspondente a 14,88% da totalidade dos
votos emitidos.
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1 – Se os credores Autoridade Tributária e Aduaneira e
Instituto da Segurança Social, IP tinham direito de voto:
Os recorrentes sustentam, sucintamente, que o plano de revitalização não opera
qualquer modificação dos créditos de que são titulares a Autoridade Tributária
e Aduaneira (ATA) e o Instituto da Segurança Social (ISS), pelo que, atento o
disposto no artigo 212.º, n.º 2, al. a), do CIRE, aplicável ex vi artigo 17.º-F, n.º 7, do mesmo código
(ao qual pertencem todas as normas doravante referenciadas sem menção da sua
origem), aquelas entidades não tinham direito de voto. Ao admitir a ATA e o ISS
a votarem e ao contabilizar os seus votos, o administrador judicial provisório
violou aquela norma legal. Sem a contabilização dos votos emitidos pela ATA e
pelo ISS, o plano de recuperação não teria sido aprovado. Perante tal
circunstância, o tribunal a quo não
podia ter procedido à homologação deste último.
Entendeu-se, na sentença recorrida, também em síntese, que, mesmo
considerando que se encontra abrangido pela remissão operada pelo artigo
17.º-F, n.º 7, o artigo 212.º, n.º 2, al. a), não tem aplicação no caso dos
autos, porquanto os créditos de que são titulares a ATA e o ISS, ao serem fraccionados
em 150 prestações mensais, foram modificados pela parte dispositiva do plano de
recuperação.
O plano de recuperação estabelece que os créditos de que são titulares a
ATA e o ISS serão pagos em 150 prestações mensais. Portanto, é fora de dúvida que
os referidos créditos foram modificados. Os seus montantes mantiveram-se, mas o
prazo do seu pagamento sofreu uma alteração muito significativa. De créditos
vencidos, passaram a créditos vincendos, pagáveis em prestações mensais ao
longo de 12 anos e 6 meses.
Em abono da sua tese, os recorrentes sustentam que a descrita modificação
dos créditos de que são titulares a ATA e o ISS resulta, não da parte
dispositiva do plano de recuperação, mas sim do regime jurídico do pagamento em
prestações das dívidas fiscais e à segurança social, constante dos artigos
196.º, n.º 6, do Código de Procedimento e Processo Tributário e 190.º do Código
dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
Os recorrentes não têm razão. As normas legais por eles invocadas
limitam-se a estabelecer os pressupostos da autorização, pelo órgão competente
da entidade credora, do pagamento dos créditos a que se referem em regime
prestacional. Por si sós, tais normas não produzem qualquer efeito sobre os mesmos
créditos. Mais, nem sequer a concreta autorização administrativa de pagamento
de determinado(s) crédito(s) em regime prestacional no âmbito de um processo
especial de revitalização altera os mesmos créditos, antes constituindo mero
pressuposto da legalidade do estabelecimento daquele regime prestacional no
plano de recuperação. É este último que altera os créditos cujo pagamento em
regime prestacional é autorizado pelo credor público.
Decorre do exposto que o plano de recuperação modificou os créditos de
que são titulares a ATA e o ISS, pelo que, não se aplicando o disposto no
artigo 212.º, n.º 2, al. a), estas entidades tinham direito de voto. Uma vez
que os votos da ATA e do ISS foram favoráveis, o plano de recuperação foi
aprovado pelos titulares de créditos cujos montantes eram, para o efeito,
suficientes.
2 – Se o plano de recuperação viola o principio de
igualdade dos credores:
O plano de recuperação estabelece que os créditos comuns de
que são titulares a ATA e o ISS serão pagos
integralmente, em 150 prestações mensais, ao passo que os restantes créditos
comuns serão pagos apenas em 50%, com perdão total de juros de mora vencidos e
vincendos, em 150 prestações mensais e com uma moratória de 2 anos. Verifica-se,
pois, uma evidente diferença de tratamento entre os créditos comuns de
que são titulares a ATA e o ISS, por um lado, e os
restantes créditos comuns, por outro.
Entendeu-se, na sentença recorrida, que tal diferença de tratamento não
viola o princípio da igualdade dos credores, consagrado no artigo 194.º,
aplicável ao processo especial de revitalização por via da remissão operada pelo
artigo 17.º-F, n.º 7. Segundo a sentença recorrida, a diversidade da origem e
da finalidade dos dois referidos grupos de créditos justifica aquele tratamento
diferenciado. Os créditos da ATA e do ISS têm origem legal e visam a satisfação
do interesse colectivo, o que sustenta a sua indisponibilidade, estabelecida
pelo artigo 30.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária. Já os restantes créditos têm origem contratual
e visam assegurar interesses privados.
A esta argumentação, os recorrentes
contrapõem que nem o CIRE, nem qualquer outra legislação, diferenciam os
créditos comuns em função da sua natureza ou finalidade. A classificação legal
é feita entre créditos comuns, privilegiados e garantidos, independentemente da
sua finalidade, pelo que a diferenciação feita pelo plano de recuperação e
acolhida pela sentença recorrida não encontra fundamento na letra ou no
espírito da lei e redunda na criação, dentro da classificação legal dos
créditos, de novas sub-classificações.
O artigo 194.º, aplicável ao processo
especial de revitalização ex vi artigo 17.º-F, n.º 7,
estabelece, no seu n.º 1, que o plano de insolvência (no caso, plano de
recuperação) obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem
prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. Saliente-se a
amplitude da formulação desta ressalva. A única exigência que é feita para a
admissibilidade de diferenciações de tratamento entre credores é que as mesmas
encontrem justificação em razões objectivas, sem outra restrição. Logo, ao
contrário da tese sustentada pelos recorrentes, não é apenas a classificação
dos créditos em garantidos, privilegiados, subordinados e comuns (cfr. artigo
47.º, n.º 4) que pode justificar uma diferença de tratamento entre credores no
plano de recuperação.
Em abono deste entendimento, citamos
LUÍS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA[1]:
“A
razão objectiva porventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento
dos credores assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos em que
agora está assumida no art.º 47.º do Código.
Para
além disso, dentro da mesma categoria há motivos para destrinçar, conforme o grau
hierárquico que couber aos vários créditos.
Mas,
a ponderação das circunstâncias de cada situação pode justificar outros
alinhamentos, nomeadamente tendo em conta as fontes do crédito.
O
que está vedado é, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes
diferentes credores em circunstâncias idênticas.”
As razões com base nas quais a sentença
recorrida considerou admissível a diversidade de tratamento entre os créditos comuns
de que são titulares a ATA e o ISS, por um lado, e aqueles de que são titulares
os restantes credores, por outro, foram, como referimos, a origem legal e a
finalidade de prossecução do interesse colectivo dos primeiros, por contraponto
à origem contratual dos segundos e à natureza particular dos interesses
a cuja satisfação os mesmos se encontram adstritos. Ora, a própria lei
demonstra que tais razões justificam, para o efeito previsto no n.º 1 do artigo
194.º, a diversidade de tratamento dos referidos créditos nos termos constantes
do plano de recuperação. Com efeito, a lei estabelece um regime especial para
os créditos tributários, muito diferente do regime geral dos direitos de
crédito, tendo precisamente em consideração a essencial diferença de natureza e
função de uns e outros. Entre essas diferenças, avulta o princípio da
indisponibilidade dos créditos tributários, decorrente do artigo 30.º, n.º 2, da Lei Geral
Tributária e aplicável aos processos de insolvência e de revitalização por via
do disposto no n.º 3 do mesmo artigo. Estabelece o referido n.º 2 que o crédito tributário é indisponível, só
podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo
princípio da igualdade e da legalidade tributária.
Portanto, a sentença recorrida não deu
cobertura a uma diferenciação arbitrária entre os créditos comuns da ATA e do
ISS, por um lado, e os dos restantes credores, nomeadamente dos recorrentes,
por outro. Tal diferenciação de tratamento encontra plena justificação em
razões objectivas juridicamente atendíveis. Daí não ter sido violado o
princípio da igualdade entre os credores.
Concluindo, os recursos deverão ser
julgados improcedentes, mantendo-se a sentença recorrida.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar os recursos improcedentes, confirmando-se a sentença recorrida.
Cada
recorrente suportará as custas do recurso por si interposto.
Notifique.
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Évora, 11 de Março de 2021
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.º adjunto
[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume
II, p. 45, anotação 4 ao artigo 194.º.