quinta-feira, 26 de maio de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 12.05.2022

Processo n.º 6378/20.2T8STB-E.E1

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Sumário:

O fundamento da resolução em benefício da massa insolvente não é um vício intrínseco do acto, mas sim o facto de o mesmo ser prejudicial a essa massa. Visa-se, não reagir contra a invalidade de um acto jurídico, mas sim, através da resolução deste, recuperar um bem em benefício da massa insolvente e, por essa via, do colectivo dos credores.

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Beatriz propôs, contra a massa insolvente de Joana, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, visando a impugnação da resolução, a favor da ré, da doação da contitularidade, na proporção de metade, da nua propriedade sobre duas fracções autónomas, identificadas na petição inicial, da qual foi beneficiária.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Foi proferido saneador-sentença, julgando a acção improcedente.

A autora interpôs recurso de apelação do saneador-sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

I – A autora vem junto deste tribunal requerer a procedência da sua apelação relativa à douta sentença que declarou a improcedência da acção de impugnação de resolução de doação efectuada em 08.05.2020 pela insolvente Joana a favor da autora, relativa aos imóveis já descritos no articulado 4 da presente peça processual, sendo constantes dos factos provados da douta sentença agora posta em causa.

II – A autora sustenta a sua apelação no facto de não terem sido considerados pelo juiz a quo factos relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa designadamente os factos vertidos nos articulados 39, 40 e 41 da petição inicial.

III – Com efeito, o juiz a quo dentro dos poderes que lhe cabiam podia e devia averiguar o valor dos imóveis objecto da doação colocada em crise pela AI, uma vez que a própria considerou que tal doação era nula, por se enquadrar no previsto no art. 121.º do CIRE, e cujos requisitos estavam verificados independentemente da boa fé da autora ao adquirir o imóvel por doação.

IV – Como preliminar à decisão a proferir deveria o juiz de acordo com o art. 6.º do CPC providenciar pelas diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção que visassem a justa composição do litígio em prazo razoável.

V – No caso retratado e atentando à natureza urgente dos autos de insolvência solicitar junto da AI relatório pericial sobre o real valor do direito objecto da escritura de doação, com a finalidade de apurar o real valor da transmissão dos imóveis, não dando como adquirido o valor que consta na respectiva escritura, uma vez que a mesma pode não corresponder aos valores de mercado.

VI – Ainda, a nulidade de acordo com o art. 289.º número 2 do CC implica a devolução do valor, mas só na medida do seu enriquecimento, que neste caso não foi objecto de apreciação pelo juiz a quo, o que provoca uma injusta composição do litígio, prejudicando a autora.

VII – A massa insolvente só deve ser ressarcida pelo prejuízo efectivamente sofrido, o que não se provou nestes autos, não ficando assim consequentemente provado o prejuízo reclamado no valor de 29.508,50 euros.

VIII – Mesmo improcedendo o pedido da autora que pretendia a reversão do negócio de doação em dação em cumprimento por corresponder à vontade das partes, deveria oficiosamente o juiz a quo apurar o valor dos imóveis, providenciando-se assim uma justa e boa decisão, não podendo a autora ser prejudicada por se tratar de um processo especial de insolvência, ressalvando-se que um dos bens é a casa de morada de família da autora, uma vez que a mesma é usufrutuária do imóvel, conforme consta da escritura junta aos autos.

A douta sentença deve ser revogada pela violação dos arts. 5.º, 6.º número 1, 607.º número 4, e 608.º número 2 todos do CPC, e consequentemente ser devolvida à 1ª instância para serem apreciadas as questões de facto enumeradas nos arts. 39, 40 e 41 da petição inicial a fim de apurar um valor real dos imóveis objecto da escritura de doação efectuada em 08.05.2020 no cartório notarial da Dra. (…) em (…), fazendo-se assim a costumada justiça.

A recorrida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1 – A sentença recorrida contém correcta apreciação da matéria de facto, e igualmente correcta e bem fundamentada aplicação do direito.

2 – A administradora de insolvência resolveu o contrato de doação celebrado por escritura pública, através de carta registada com aviso de recepção, como se lhe impõe (resolução extrajudicial), sendo essa resolução incondicional por se tratar de doação de metade indivisa da nua propriedade de dois imóveis efetuada pela insolvente a favor da sua mãe aqui apelante.

3 - Considerando-se que o negócio em questão é enquadrável na alínea b) do artigo 121.º do CIRE, presumem-se os requisitos da prejudicialidade e da má fé, o que implica a irrelevância dos factos que a apelante pretendia que fossem apreciados.

4 - Consequentemente, outra decisão não poderia ter sido tomada pelo tribunal a quo que não a improcedência da impugnação, mantendo-se, assim, a resolução operada.

5 - Com o que, julgando o recurso interposto como integralmente improcedente e confirmando a douta decisão recorrida, farão V. Exªs sã e costumada justiça.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, a única questão a resolver consiste em saber se, em vez de julgar a acção improcedente no despacho saneador, o tribunal a quo devia tê-la feito prosseguir, a fim de ser apurado o valor do objecto da doação feita à recorrente, por ser relevante para a decisão da causa.

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No saneador-sentença recorrido, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Joana, residente em (…), foi declarada insolvente por sentença proferida em 04.12.2020 no processo n.º 6378/20.2T8STB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Comércio, J1 (fls. 21 a 25 do processo principal).

2. FS, nomeada administradora da insolvência no referido processo, remeteu à insolvente, que recebeu, a carta junta a fls. 70 verso a 72, cujo teor se dá por reproduzido, datada de 02.06.2021, na qual, em síntese, declarou ter tomado conhecimento da doação feita pela insolvente à sua mãe, Beatriz (aqui autora), relativamente aos seguintes direitos:

Verba 1 - Cotitularidade na proporção de 1/2 da nua propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “O”, destinada a habitação, correspondente ao 2.° andar direito, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida (…), n.º 7, freguesia de Setúbal (S. Sebastião), concelho de Setúbal, descrita na Conservatória do Registo Predial de Setúbal com o n.º (…) da freguesia de Setúbal (S. Sebastião) e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…), sobre a qual incide usufruto vitalício a pessoa com idade superior a 65 anos e inferior a 70 anos, com o valor patrimonial tributável: € 25.746,00;

Verba 2 – Cotitularidade na proporção de 1/2 da nua propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, destinada a estacionamento coberto e fechado, correspondente à garagem – D, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida (…), n.º 7, freguesia de Setúbal (S. Sebastião), concelho de Setúbal, descrita na Conservatória do Registo Predial de Setúbal com o n.º (…) da freguesia de Setúbal (S. Sebastião) e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…), sobre a qual incide usufruto vitalício a pessoa com idade superior a 65 anos e inferior a 70 anos, com o valor patrimonial tributável de € 3.762,50.

3. Mais refere a administradora da insolvência que sendo a doação um acto prejudicial à massa insolvente, declara incondicionalmente resolvido o acto, nos termos do artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE.

4. A carta foi recebida pela insolvente em 06.06.2021.

5. A administradora da insolvência remeteu ainda à autora Beatriz, que a recebeu, a carta junta a fls. 67 verso a 69, cujo teor se dá por reproduzido, datada de 02.06.2021, na qual, em síntese, declarou ter tomado conhecimento da doação feita pela insolvente à sua mãe Beatriz, relativamente aos seguintes direitos:

Verba 1 - Cotitularidade na proporção de 1/2 da nua propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “O”, destinada a habitação, correspondente ao 2° andar direito, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida (…), n.º 7, freguesia de Setúbal (S. Sebastião), concelho de Setúbal, descrita na Conservatória do Registo Predial de Setúbal com o n.º (…) da freguesia de Setúbal (S. Sebastião) e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…), sobre a qual incide usufruto vitalício a pessoa com idade superior a 65 anos e inferior a 70 anos, com o valor patrimonial tributável: € 25.746,00;

Verba 2 – Cotitularidade na proporção de 1/2 da nua propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, destinada a estacionamento coberto e fechado, correspondente à garagem – D, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida (…), n.º 7, freguesia de Setúbal (S. Sebastião), concelho de Setúbal, descrita na Conservatória do Registo Predial de Setúbal com o n.º (…) da freguesia de Setúbal (S. Sebastião) e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…), sobre a qual incide usufruto vitalício a pessoa com idade superior a 65 anos e inferior a 70 anos, com o valor patrimonial tributável de € 3.762,50.

6. Mais refere a administradora da insolvência que sendo a doação um acto prejudicial à massa insolvente, declara incondicionalmente resolvido o acto, nos termos do artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE.

7. A carta foi recebida pela autora Beatriz em 06.06.2021.

8. Por escritura datada de 08.05.2020, denominada de “Doação”, de onde constam a insolvente, como primeira outorgante e Beatriz como segunda outorgante, a insolvente declarou doar à sua mãe, os seguintes bens:

Verba 1 – A nua propriedade de metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “O”, correspondente ao segundo andar direito, destinada a habitação, com registo de aquisição a seu favor e com o valor patrimonial tributário de € 25.746,00;

Verba 2 – A nua propriedade de metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “D”, destinada a estacionamento coberto e fechado, correspondente à garagem sub-cave, destinada a parqueamento com registo de aquisição, deste direito, a seu favor, com o valor patrimonial tributário de € 3.762,50, tudo conforme documento de fls. 64 verso a 66, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

9. Tendo a autora Beatriz aceite tal doação.

10. A fracção autónoma designada pela letra “O”, do prédio descrito na CRP de Setúbal, sob o n.º (…), encontra-se registada a favor de Beatriz (certidão junta ao apenso de apreensão de bens em 05-03-2021).

11. A fracção autónoma designada pela letra “D”, do prédio descrito na CRP de Setúbal, sob o n.º (…), encontra-se registada a favor de Beatriz (certidão junta ao apenso de apreensão de bens em 05.03.2021).

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A recorrente afirma que o tribunal a quo não podia julgar a acção improcedente no despacho saneador porquanto o apuramento do valor do objecto da doação é indispensável para a boa decisão da causa e não foi feito. Segundo a recorrente, a acção deverá prosseguir os seus termos, com vista ao apuramento daquele valor.

A argumentação que a recorrente expende tendo em vista fundamentar tal conclusão assenta num equívoco. Segundo a recorrente, a resolução da doação nos termos do artigo 121.º do CIRE (diploma ao qual pertencem as disposições legais adiante referenciadas sem menção da sua origem) equivale a uma declaração de nulidade desse contrato nos termos do artigo 280.º do Código Civil, do que resultaria a aplicabilidade do regime estabelecido no n.º 2 do artigo 289.º do mesmo código e a necessidade de apuramento do valor do objecto da doação. Porém, não é assim.

Os n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º estabelecem, respectivamente, que podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos a esta prejudiciais que tenham sido praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência e que se consideram prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência. Portanto, o fundamento da resolução em benefício da massa insolvente não é um vício intrínseco do acto, mas sim o facto de o mesmo ser prejudicial a essa massa. Visa-se, não reagir contra a invalidade de um acto jurídico, mas sim, através da resolução deste, recuperar um bem em benefício da massa insolvente e, por essa via, do colectivo dos credores. Perante um acto que haja posto em causa, em qualquer das modalidades da ampla previsão do n.º 2 do artigo 120.º, a satisfação dos credores da insolvência, a lei atribui, ao administrador desta, o dever de operar a resolução daquele acto, fazendo o correspondente bem regressar à massa insolvente, nos termos do n.º 1 do artigo 126.º. O instituto da resolução em benefício da massa insolvente tem, assim, autonomia relativamente ao da invalidade dos actos jurídicos.  

O n.º 3 do artigo 120.º estabelece a presunção inilidível de que são prejudiciais à massa insolvente os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo 121.º, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.

Nos termos do artigo 121.º, n.º 1, al. b), são resolúveis em benefício da massa insolvente, sem dependência de outros requisitos, os actos celebrados pelo devedor, a título gratuito, dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais.

No caso dos autos, Joana foi declarada insolvente por sentença proferida em 04.12.2020. Menos de sete meses antes, mais precisamente em 08.05.2020, doara à recorrente, sua mãe, a contitularidade, na proporção de metade, da nua propriedade sobre duas fracções autónomas de um mesmo edifício, sendo uma delas destinada a habitação e a outra a garagem.

O contrato de doação é definido pelo n.º 1 do artigo 940.º do Código Civil como aquele pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.

É, pois, evidente que o contrato de doação celebrado entre a insolvente e a recorrente se encontra sujeito ao regime da resolução incondicional estabelecido pelo artigo 121.º, tendo a resolução efectuada pela administradora da insolvência fundamento legal. Igualmente evidente é a irrelevância do valor efectivo dos direitos que a insolvente doou à recorrente. Seja qual for esse valor, é fora de dúvida que o contrato de doação, celebrado menos de dois anos antes do início do processo de insolvência, era resolúvel em benefício da massa, com a consequente recuperação, por esta, dos direitos através daquele transmitidos à recorrente.

Concluindo, o tribunal a quo dispunha de todos os elementos necessários à decisão da causa no momento da prolação do despacho saneador e decidiu acertadamente ao julgar a acção improcedente.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o saneador-sentença recorrido.

Custas pela recorrente.

Notifique.

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Évora, 12.05.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta


sábado, 21 de maio de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 28.04.2022

Processo n.º 115/21.1T8LGA.E1

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Sumário:

1 – Sendo dois insolventes casados entre si, a circunstância de o despacho inicial de exoneração do passivo restante ter fixado individualmente o montante do rendimento de cada um deles excluído da cessão nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, não obsta à reponderação, na hipótese de morte de um deles, do montante do rendimento daquele que sobreviveu que fica excluído da mesma cessão.

2 – Sendo o agregado familiar constituído pela insolvente sobreviva e pela filha de ambos e mantendo-se as despesas fixas, aquela reponderação impõe-se.

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Em 27.10.2021, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante mediante o qual foi determinado que, durante os 5 anos subsequentes ao encerramento do processo, cada um dos insolventes, LQ e SQ, casados entre si, entregasse, ao fiduciário, o valor do seu rendimento anual que excedesse o correspondente a 1,25 da retribuição mínima mensal garantida por mês.

Posteriormente, a insolvente informou o tribunal de que seu marido faleceu no dia 28.11.2021 e, com esse fundamento, requereu a reponderação do montante do seu rendimento excluído da cessão nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, de forma a fixar-se o mesmo em montante não inferior a 2,5 salários mínimos nacionais.

Foi proferido despacho indeferindo este requerimento.

A insolvente interpôs recurso de apelação deste despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) Mal andou a decisão recorrida ao indeferir a requerida alteração do rendimento disponível fundamentando na diminuição das despesas inerentes ao ora falecido porquanto, analisadas todas as despesas elencadas nos artigos 41.º a 46.º da petição inicial, resulta claro que daquelas apenas os consumos domésticos poderão vir a sofrer uma redução por via do decesso do insolvente marido, mantendo-se todas as demais, sem qualquer alteração ou impacto no seu valor, todavia agora suportadas exclusivamente pela recorrente, desacompanhada do apoio económico do falecido cônjuge.

B) A manutenção do valor fixado a título de rendimento disponível, que não pondera a relevante alteração das condições pessoais e familiares da recorrente, viola o critério da dignidade da pessoa humana, bem como os critérios da adequação, proporcionalidade e da necessidade.

C) Os rendimentos auferidos a título de pensão de sobrevivência por morte do marido da recorrente em nada relevam para a operação de revisão do rendimento disponível porquanto, independentemente do valor destes subsídios, não se operando aquela (revisão), todos e quaisquer rendimentos, de qualquer natureza ou regularidade, terão sempre de ser cedidos a favor da massa insolvente na parte em que excederem o montante fixado.

D) É incontroverso que é materialmente distinta a situação de um casal insolvente que dispunha de um rendimento disponível mensal fixado em 2,5 salários mínimos nacionais, da situação de um único membro desse casal que, pelo decesso do seu cônjuge, passou a dispor de 1,25 salários mínimos nacionais para fazer face à sua subsistência, suportando sozinha a totalidade das despesas fixas, designadamente aquelas em que o número de membros não gera qualquer impacto no seu valor ou consumo, tal como a renda, ou aquelas umbilicalmente ligadas à pessoa do cônjuge sobrevivo, tais como despesas de saúde para debelar a sua doença oncológica.

E) É, pois, manifesto que a ocorrência posterior – decesso do insolvente marido – impõe uma reponderação e revisão do rendimento disponível a fixar à recorrente, enquanto cônjuge sobrevivo.

F) O despacho recorrido realizou uma incorrecta apreciação e aplicação do direito, devendo ser substituído por douto acórdão que proceda à revisão do rendimento indisponível fixado à recorrente à razão do superveniente decesso do seu cônjuge, fixando-se o rendimento disponível em montante mensal nunca inferior a 2,5 salários mínimos nacionais, o que se toma por equilibrado e proporcional à salvaguarda dos interesses e valores em confronto, nomeadamente de modo a permitir o sustento minimamente digno da devedora.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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Questão a resolver: se, em face do óbito do insolvente marido, deverá proceder-se a um reajustamento do montante do rendimento da recorrente excluído da cessão nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, e, na hipótese afirmativa, em que medida.

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Para a decisão do recurso, importa ter em consideração os seguintes factos, julgados provados no despacho inicial:

- A recorrente, nascida em 04.07.1970, era casada com o insolvente LQ;

- O agregado familiar era constituído por ambos e uma filha maior de idade, estudante;

- O salário do insolvente LQ era de € 639,11 por mês;

- O salário da recorrente era de € 665 por mês;

- O agregado familiar não dispunha de outros rendimentos;

- A renda da habitação era de € 400 por mês.

Importa ter ainda em consideração, naturalmente, o facto superveniente do óbito de LQ, ocorrido no dia 28.11.2021 (cópia do assento de óbito junto pela recorrente com o requerimento indeferido pelo despacho recorrido).

O teor do despacho recorrido é, na parte que nos interessa, o seguinte:

“O rendimento indisponível foi fixado separadamente para cada um dos insolventes. O falecimento de um deles não impõe, só por si, a revisão do valor fixado. Pois se é certo que deixou de haver o contributo da retribuição do falecido para a economia doméstica, esta também deixou de abranger as despesas inerentes a esse membro entretanto falecido, além de que, para uma reponderação da situação importaria que a requerente esclarecesse o valor das pensões por morte que terão sido atribuídas a si e à filha menor, o que não faz.

Em face do alegado, e pelas razões expostas, por falta de fundamento, indefere-se o requerido.”

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O despacho recorrido não poderá manter-se, pelas razões que passamos a expor.

É certo que o montante do rendimento excluído da cessão nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, foi fixado separadamente para cada um dos insolventes. Contudo, daí não resulta que o óbito de um destes seja irrelevante sob o ponto de vista do montante do rendimento do cônjuge sobrevivo que fica excluído da cessão. Seria assim se cada um dos insolventes vivesse na sua casa e não houvesse filhos em comum que deles dependessem. Todavia, a realidade é outra. Os dois insolventes formavam, juntamente com a filha de ambos, um agregado familiar, pelo que o óbito de um deles tem, necessariamente, forte repercussão na economia desse agregado. Daí ter inteira justificação uma reponderação do montante do rendimento da recorrente excluído da cessão.

Tal como é referido no despacho recorrido, o óbito do insolvente LQ determinou a cessação das despesas com a pessoa deste último, razão suficiente para que o montante do rendimento da recorrente excluído da cessão não possa ser de 2,5 salários mínimos nacionais, como esta pretende. Tendo aquela exclusão por objectivo a garantia do sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não faria sentido que o montante global objecto da mesma exclusão se mantivesse não obstante a diminuição das despesas do agregado familiar. Forçosamente, tal montante deverá baixar.

Contudo, as únicas despesas do agregado familiar que desapareceram foram as pessoais do insolvente falecido. Mantêm-se as despesas pessoais da recorrente e da filha de ambos, bem como as despesas fixas – recorde-se que só a renda da habitação é de € 400 por mês – do agregado familiar. Daí que o montante do rendimento da recorrente excluído da cessão tenha de aumentar, sob pena de ficar em causa o seu sustento minimamente digno, bem como o de sua filha, ainda a estudar.

Para se proceder à reponderação do montante do rendimento da recorrente excluído da cessão é irrelevante o valor de uma pensão por morte do marido que ela eventualmente venha a receber. Tal reponderação deverá ser feita em função das necessidades da recorrente e do seu agregado familiar e não do montante dos seus rendimentos, actuais ou futuros. Estes integrarão o rendimento disponível na medida em que excedam o montante que resultar da referida reponderação.

Também é irrelevante, neste momento, o valor de uma pensão por morte do insolvente LQ que eventualmente venha a ser atribuída à filha deste e da recorrente. Tanto quanto resulta dos autos, trata-se de um facto futuro e incerto, pelo que não pode obstar ao imediato reajustamento do montante do rendimento da recorrente que fica excluído da cessão, o qual, pelas razões apontadas, se impõe.

Resta fixar o montante que fica excluído da cessão. Como anteriormente referimos, as únicas despesas que deixaram de ser efectuadas foram aquelas que se relacionavam directamente com a pessoa do insolvente falecido. Mantêm-se as despesas pessoais da recorrente e da filha de ambos, bem como as despesas fixas, nestas avultado a renda da habitação. Tudo ponderado, deverá o montante excluído da cessão ser fixado em 2,25 salários mínimos nacionais.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso parcialmente procedente, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se que, durante o tempo restante do período da cessão, a recorrente entregue, ao fiduciário, o valor do seu rendimento anual que exceda o montante correspondente a 2,25 salários mínimos nacionais.

A recorrente é responsável pelas custas na proporção do seu decaimento, que se fixa em 20%.

Notifique.

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Évora, 28.04.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta

 

Acórdão da Relação de Évora de 19.03.2024

Processo n.º 56/14.9TBMAC.E1 – Insolvência * Sumário: 1 – Os recursos ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à ap...