sexta-feira, 15 de julho de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 30.06.2022

Processo n.º 1733/13.7TBBNV.E1

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Sumário:

Deverá ser decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante se o devedor mudou de residência sem avisar atempadamente o tribunal e a fiduciária, não prestou, ao longo de mais de quatro anos, qualquer informação, nomeadamente sobre se exercia alguma actividade profissional e, na hipótese afirmativa, sobre quais eram os rendimentos que a mesma lhe proporcionava, e nunca entregou qualquer quantia à fiduciária.

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DI interpôs recurso de apelação do despacho mediante o qual o tribunal a quo declarou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, tendo formulado as seguintes conclusões:

I. A recorrente não se conforma com despacho de 09.02.2022 (ref. 89081109) que a considerou notificada das “notificações que antecedem” e recusou a exoneração do passivo restante e determinou a cessação antecipada do procedimento de exoneração.

II. Por sentença de 15.01.2014 (ref. 3458579), foi declarada a insolvência da aqui recorrente sendo, posteriormente, admitida liminarmente a exoneração do passivo restante por despacho de 16.11.2017 (ref. 76624150).

III. O fiduciário veio aos autos dizer que, “...foi remetida carta (..). para que procedesse à entrega dos documentos necessários à elaboração do relatório”; “... até a presente data a signatária não possui quaisquer elementos ...”; “... enviou-se email à insolvente e a ilustre mandatária, no sentido da obtenção dos documentos, não tendo surtido qualquer efeito” .

IV. Foi determinado, por despacho de 23.06.2021 (ref. 87099634), a notificação dos “...insolventes, pessoalmente, (...) para justificarem a falta de entrega dos documentos e informações solicitadas pelo fiduciário, com a expressa advertência que com a falta de junção do solicitado, poderão incorrer na cessação antecipada do procedimento de exoneração...”, porém essa notificação foi devolvida ao tribunal em 02.07.2021 com a menção “desconhecido” (ref. 7856846).

V. Por despacho de 21.10.2021 (ref. 88056344) foi ordenada a notificação do “requerimento de 06/04” à insolvente, no entanto essa notificação não foi efectuada dando origem a novo despacho em 06.01.2022 (ref. 88766167): “Compulsados os autos, constata-se que, por lapso manifesto, no despacho proferido em 21/10 não se determinou a notificação pessoal dos insolventes, (...) o que agora se determina.”

VI. A notificação (ref. 88821047) à insolvente do despacho em 06.01.2022 foi devolvida ao tribunal em 17.01.2022 com a menção “mudou-se (morada desconhecida)” (ref. 8357935).

VII. Por despacho de 09.02.2022 (ref. 89081109) o tribunal a quo considerou os insolventes notificados ao abrigo do art. 249.º, n.º 2 do CPC.

VIII. Contudo, tal disposição legal refere-se a notificações às partes que não constituam mandatário (ou patrono nomeado) - o que não é o caso dos presentes autos - e exige que a remessa tenha sido feita para a residência da parte ou para o domicílio escolhido para o efeito de a receber.

IX. Nos presentes autos não podia o tribunal a quo ignorar que notificações foram devolvidas com as menções “desconhecido” e “mudou-se”, pelo que, impunha-se a consulta das bases de dados disponíveis para apurar a morada da insolvente, pois, só assim se poderia considerar a notificação efectuada na residência da insolvente.

X. Resulta dos autos que o tribunal a quo não efectuou a notificação à insolvente, nem à patrona nomeada, do despacho de 09.02.2022 (ref. 89081109) que “..., recuso a exoneração do passivo restante aos insolventes (...) e, consequentemente, declaro a cessação antecipada do procedimento de exoneração.”.

XI. Apesar da insolvente ter remetido email, em 02.03.2022 (ref. 8488046), a informar a sua morada: “Rua …”, até à presente data não foi notificada da decisão de cessação antecipada de exoneração do passivo restante – despacho de 09.02.2022 (ref. 89081109), assim como também não o foi a patrona nomeada.

XII. O tribunal a quo determinou a cessação antecipada do procedimento de exoneração com fundamento na violação pelos insolventes da obrigação que sobre os mesmos impendia e contida no art.º 239.º, n.º 4 alínea a) do CIRE, desconsiderando que a insolvente não foi notificada dos despachos de 23.06.2021 (ref. 87099634), de 21.10.2021 (ref. 88056344) e de 06.01.2022 (ref. 88766167), nem do requerimento de 06.04.2021 (ref. 7590005) – razão pela qual não prestou as informações a que estava obrigada.

XIII. No entanto, a verificação da violação dessa condição, só por si não conduz ao preenchimento do requisito constante na alínea a) do n.º 1 do art.º 243º do CIRE, pois é exigido que o devedor tenha actuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

XIV. Ao não prestar as informações a que estava obrigada a recorrente não actuou com dolo ou grave negligência, essa omissão resultou, somente, da falta de notificação dos despachos supra identificados à insolvente.

XV. Acresce ainda que, a actuação da recorrente não causou um prejuízo relevante que coloque em causa a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

XVI. Atento o que supra se deixou dito, a conduta da recorrente, de não prestar as informações a que estava obrigada, não evidencia grave negligência nem causou um prejuízo relevante que coloque em causa a satisfação dos créditos, não estão preenchidos os requisitos legais para determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração, e em consequência deverá o presente recurso ser procedente, revogando-se o despacho que determinou a cessação antecipadamente do procedimento de exoneração do passivo restante.

XVII. Normas violadas:

- art.º 249º n.º 2 do CPC;

- art.º 239º n.º 4 alínea a) do CIRE;

- art.º 243º n.º 1 alínea a) do CIRE.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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1 – Se a recorrente foi notificada do despacho recorrido, dos despachos de 23.06.2021, 21.10.2021 e de 06.01.2022 e do requerimento de 06.04.2021:

Sobre a notificação de actos processuais ao devedor no decurso do procedimento de exoneração do passivo restante, importa ter em consideração as seguintes normas legais:

- Artigo 239.º, n.º 4, al. d), do CIRE: Durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio (…), no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência (…);

- Artigo 247.º, n.º 1, do CPC: As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais;

- Artigo 248.º, n.º 1, do CPC: Os mandatários são notificados por via electrónica nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, devendo o sistema de informação de suporte à actividade dos tribunais certificar a data da elaboração da notificação, presumindo-se esta feita no terceiro dia posterior ao do seu envio, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja;

- Artigo 249.º, n.º 1, do CPC: Se a parte não tiver constituído mandatário, as notificações são efectuadas nos termos previstos no n.º 5 do artigo 219.º, quando aplicável, ou por carta registada, dirigida para a sua residência ou sede ou para o domicílio escolhido para o efeito de as receber, presumindo-se, nestes casos, feita no terceiro dia posterior ao do registo da carta ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja.

- Artigo 249.º, n.º 2, do CPC: A notificação efectuada por carta registada não deixa de produzir efeito pelo facto de o expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para a residência ou a sede da parte ou para o domicílio escolhido para o efeito de a receber; nesse caso, ou no de a carta não ter sido entregue por ausência do destinatário, juntar-se-á ao processo o sobrescrito, presumindo-se a notificação feita no dia a que se refere a parte final do número anterior.

- Artigo 17.º, n.º 1, do CIRE: Os processos regulados no presente diploma regem-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código.

A recorrente afirma que não foi notificada do despacho recorrido, proferido em 09.02.2022, dos despachos proferidos em 23.06.2021, 21.10.2021 e 06.01.2022 e do requerimento de 06.04.2021.

Quanto ao despacho recorrido, a recorrente teve conhecimento dele e, tanto assim foi, que interpôs tempestivamente o presente recurso. Não se alcança o que a recorrente pretende através da invocação de uma hipotética falta de notificação de um despacho de que recorreu dentro do prazo legal.

O despacho de 23.06.2021 foi notificado à então advogada da recorrente, Sra. Dra. …, através de ofício elaborado na mesma data, com a referência 87184899. O mesmo despacho foi notificado à própria recorrente através de ofício elaborado na mesma data, com a referência 87185078, expedido, mediante carta registada, para a morada daquela então conhecida nos autos, onde ela fora notificada em 15.10.2020 (Rua …). Note-se que só em 23.02.2022 a recorrente informou o tribunal de que mudara de residência.

O despacho de 21.10.2021 foi notificado à então advogada da recorrente, Sra. Dra. …, através de ofício elaborado em 22.10.2021, com a referência 88130176.

O despacho de 06.01.2022 foi notificado à recorrente através de ofício elaborado em 07.01.2022, com a referência 88821047, remetido, mediante carta registada, para a morada da recorrente então conhecida nos autos, a acima referida Rua … Foi, então, remetida cópia do requerimento de cessação do procedimento de exoneração do passivo restante apresentado por BS, Lda., requerimento esse do qual a então advogada da recorrente já fora notificada.

Decorre do exposto que as notificações que a recorrente põe em causa foram efectuadas. A sua advogada foi sempre notificada e a própria recorrente apenas não recebeu as cartas registadas que lhe foram remetidas com essa finalidade porque, em violação da obrigação que o artigo 239.º, n.º 4, al. d), do CIRE, lhe impõe, não comunicou ao tribunal, no prazo de 10 dias, que havia mudado de residência e qual passara a ser esta última. Daí que, nos termos dos artigos 247.º, n.º 1, e 249.º, n.ºs 1 e 2, do CPC (este último aplicável sempre que fosse ordenada a sua notificação pessoal), a recorrente se considere notificada de todos os actos processuais que afirma não lho terem sido.

2 – Se a recorrente actuou com dolo ou negligência grave e, por esse facto, prejudicou a satisfação dos créditos sobre a insolvência:

O artigo 239.º, n.º 4, do CIRE, estabelece que, durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a:

a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;

b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;

c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;

d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;

e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.

O despacho inicial, proferido em 16.11.2017, enunciou os referidos deveres. Bastava, pois, à recorrente, ler esse despacho para tomar conhecimento dos mesmos deveres.

Desde 16.11.2017 até 09.02.2022, data da prolação do despacho recorrido, a recorrente não cumpriu o seu dever de informar a fiduciária das suas mudanças de domicílio. A fiduciária solicitou-lhe repetidamente a informação necessária ao acompanhamento da sua situação, mas nunca obteve resposta. Tais pedidos de informação foram remetidos para a morada da recorrente que foi fixada na sentença que declarou esta última insolvente, mas exclusivamente porque a recorrente nunca informou a fiduciária de que mudara de residência, como era seu dever. Os mesmos pedidos foram também dirigidos à então advogada da recorrente, com o mesmo resultado que aqueles que foram remetidos pessoalmente a esta última.

A postura contumaz da recorrente no que concerne ao cumprimento dos seus deveres levou a que, em 06.04.2021, a credora “BS, Lda.”, requeresse a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. Como anteriormente referimos, este requerimento foi notificado à recorrente e à sua advogada, que nada disseram.

Durante todo o referido período compreendido entre 16.11.2017 e 09.02.2022, a recorrente não entregou qualquer quantia ao fiduciário, nem justificou por que o não fez. Pura e simplesmente, não deu sinal de vida.

Nem mesmo após ser notificada do despacho proferido em 23.06.2021, através do qual o tribunal a quo lhe deu oportunidade para justificar a falta de entrega dos documentos e informações solicitadas pela fiduciária, com a expressa advertência de que, não o fazendo, poderia ser decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, a recorrente se pronunciou.

Com fundamento na descrita inércia da recorrente e a consequente violação dos seus deveres legais, o tribunal a quo proferiu o despacho recorrido, mediante o qual declarou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. Considerou o tribunal a quo, nomeadamente, que a recorrente demonstrou uma grosseira displicência face aos deveres que lhe estavam cometidos durante o período da cessão, mais concretamente ao dever de prestar informações sobre os seus rendimentos, e que desse incumprimento resultou um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Acompanhamos este entendimento. A displicência com que a recorrente encarou os seus deveres durante o período da cessão é manifesta. Ela não cumpriu tais deveres, tendo-se remetido ao silêncio, não prestando a mínima colaboração à fiduciária e ao tribunal, durante mais de quatro anos. Ou seja, violou os referidos deveres com grave negligência, para dizer o mínimo.

Para que seja decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, exige ainda o artigo 243.º, n.º 1, al. a), do CIRE, que a violação dos referidos deveres prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência. A recorrente sustenta que a sua actuação não causou um prejuízo relevante que coloque em causa a satisfação dos referidos créditos.

A satisfação dos créditos sobre a insolvência durante o período da cessão nos termos fixados no despacho inicial pressupõe o cumprimento, pelo devedor, dos deveres estabelecidos no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE. Se o devedor, por um lado, não entrega qualquer quantia ao fiduciário durante o período da cessão, como aconteceu no caso dos autos, e, por outro, não presta qualquer informação, seja ao tribunal, seja ao fiduciário, sobre a actividade profissional que desenvolve e o rendimento que a mesma lhe proporciona, assim impedindo qualquer controlo sobre se se encontra a cumprir o dever de entrega do rendimento disponível, inevitavelmente prejudica a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Não pode considerar-se admissível ou, pelo menos, insuficiente para justificar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, aquilo que a recorrente fez: mudou de residência sem avisar atempadamente o tribunal e a fiduciária, não prestou, ao longo de mais de quatro anos, qualquer informação, nomeadamente sobre se exercia alguma actividade profissional e, na hipótese afirmativa, sobre quais eram os rendimentos que a mesma lhe proporcionava, e nunca entregou qualquer quantia à fiduciária.

Concluindo, verifica-se o fundamento da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante invocado no despacho recorrido, pelo que este deverá ser confirmado, improcedendo o recurso.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pela recorrente.

Notifique.

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Évora, 30.06.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta


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