Processo n.º 1733/13.7TBBNV.E1
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Sumário:
Deverá
ser decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo
restante se o devedor mudou de residência sem avisar
atempadamente o tribunal e a fiduciária, não prestou, ao longo de mais de quatro
anos, qualquer informação, nomeadamente sobre se exercia alguma actividade
profissional e, na hipótese afirmativa, sobre quais eram os rendimentos que a
mesma lhe proporcionava, e nunca entregou qualquer quantia à fiduciária.
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DI interpôs recurso de apelação
do despacho mediante o qual o tribunal a
quo declarou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo
restante, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. A
recorrente não se conforma com despacho de 09.02.2022 (ref. 89081109) que a
considerou notificada das “notificações que antecedem” e recusou a exoneração
do passivo restante e determinou a cessação antecipada do procedimento de
exoneração.
II.
Por sentença de 15.01.2014 (ref. 3458579), foi declarada a insolvência da aqui
recorrente sendo, posteriormente, admitida liminarmente a exoneração do passivo
restante por despacho de 16.11.2017 (ref. 76624150).
III. O
fiduciário veio aos autos dizer que, “...foi
remetida carta (..). para que procedesse à entrega dos documentos necessários à
elaboração do relatório”; “... até a presente data a signatária não possui
quaisquer elementos ...”; “... enviou-se email à insolvente e a ilustre
mandatária, no sentido da obtenção dos documentos, não tendo surtido qualquer
efeito” .
IV.
Foi determinado, por despacho de 23.06.2021 (ref. 87099634), a notificação dos “...insolventes, pessoalmente, (...) para
justificarem a falta de entrega dos documentos e informações solicitadas pelo
fiduciário, com a expressa advertência que com a falta de junção do solicitado,
poderão incorrer na cessação antecipada do procedimento de exoneração...”,
porém essa notificação foi devolvida ao tribunal em 02.07.2021 com a menção “desconhecido”
(ref. 7856846).
V. Por
despacho de 21.10.2021 (ref. 88056344) foi ordenada a notificação do “requerimento de 06/04” à insolvente, no
entanto essa notificação não foi efectuada dando origem a novo despacho em
06.01.2022 (ref. 88766167): “Compulsados
os autos, constata-se que, por lapso manifesto, no despacho proferido em 21/10
não se determinou a notificação pessoal dos insolventes, (...) o que agora se
determina.”
VI. A
notificação (ref. 88821047) à insolvente do despacho em 06.01.2022 foi
devolvida ao tribunal em 17.01.2022 com a menção “mudou-se (morada desconhecida)” (ref. 8357935).
VII.
Por despacho de 09.02.2022 (ref. 89081109) o tribunal a quo considerou os insolventes notificados ao abrigo do art. 249.º,
n.º 2 do CPC.
VIII.
Contudo, tal disposição legal refere-se a notificações às partes que não
constituam mandatário (ou patrono nomeado) - o que não é o caso dos presentes
autos - e exige que a remessa tenha sido feita para a residência da parte ou
para o domicílio escolhido para o efeito de a receber.
IX.
Nos presentes autos não podia o tribunal a
quo ignorar que notificações foram devolvidas com as menções “desconhecido” e “mudou-se”, pelo que, impunha-se a consulta das bases de dados
disponíveis para apurar a morada da insolvente, pois, só assim se poderia
considerar a notificação efectuada na residência da insolvente.
X.
Resulta dos autos que o tribunal a quo
não efectuou a notificação à insolvente, nem à patrona nomeada, do despacho de
09.02.2022 (ref. 89081109) que “...,
recuso a exoneração do passivo restante aos insolventes (...) e,
consequentemente, declaro a cessação antecipada do procedimento de exoneração.”.
XI.
Apesar da insolvente ter remetido email, em 02.03.2022 (ref. 8488046), a
informar a sua morada: “Rua …”, até à
presente data não foi notificada da decisão de cessação antecipada de
exoneração do passivo restante – despacho de 09.02.2022 (ref. 89081109), assim
como também não o foi a patrona nomeada.
XII. O
tribunal a quo determinou a cessação
antecipada do procedimento de exoneração com fundamento na violação pelos insolventes
da obrigação que sobre os mesmos impendia e contida no art.º 239.º, n.º 4
alínea a) do CIRE, desconsiderando que a insolvente não foi notificada dos
despachos de 23.06.2021 (ref. 87099634), de 21.10.2021 (ref. 88056344) e de
06.01.2022 (ref. 88766167), nem do requerimento de 06.04.2021 (ref. 7590005) –
razão pela qual não prestou as informações a que estava obrigada.
XIII.
No entanto, a verificação da violação dessa condição, só por si não conduz ao
preenchimento do requisito constante na alínea a) do n.º 1 do art.º 243º do
CIRE, pois é exigido que o devedor tenha actuado com dolo ou negligência grave
e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a
insolvência.
XIV.
Ao não prestar as informações a que estava obrigada a recorrente não actuou com
dolo ou grave negligência, essa omissão resultou, somente, da falta de
notificação dos despachos supra identificados à insolvente.
XV.
Acresce ainda que, a actuação da recorrente não causou um prejuízo relevante
que coloque em causa a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
XVI.
Atento o que supra se deixou dito, a conduta da recorrente, de não prestar as
informações a que estava obrigada, não evidencia grave negligência nem causou
um prejuízo relevante que coloque em causa a satisfação dos créditos, não estão
preenchidos os requisitos legais para determinar a cessação antecipada do
procedimento de exoneração, e em consequência deverá o presente recurso ser
procedente, revogando-se o despacho que determinou a cessação antecipadamente
do procedimento de exoneração do passivo restante.
XVII.
Normas violadas:
-
art.º 249º n.º 2 do CPC;
-
art.º 239º n.º 4 alínea a) do CIRE;
-
art.º 243º n.º 1 alínea a) do CIRE.
Não
foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido, com
subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
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1 – Se a recorrente foi notificada do
despacho recorrido, dos despachos de 23.06.2021, 21.10.2021 e de 06.01.2022 e
do requerimento de 06.04.2021:
Sobre a notificação de actos processuais
ao devedor no decurso do procedimento de exoneração do passivo restante,
importa ter em consideração as seguintes normas legais:
- Artigo 239.º, n.º 4, al. d), do CIRE: Durante o período da cessão, o devedor
fica obrigado a informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de
domicílio (…), no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência (…);
- Artigo
247.º, n.º 1, do CPC: As notificações às partes em processos pendentes são
feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais;
- Artigo
248.º, n.º 1, do CPC: Os mandatários são notificados por via electrónica nos termos definidos na
portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, devendo o sistema de informação de
suporte à actividade dos tribunais certificar a data da elaboração da
notificação, presumindo-se esta feita no terceiro dia posterior ao do seu
envio, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja;
- Artigo 249.º, n.º 1, do CPC: Se a parte
não tiver constituído mandatário, as notificações são efectuadas nos termos
previstos no n.º 5 do artigo 219.º, quando aplicável, ou por carta registada,
dirigida para a sua residência ou sede ou para o domicílio escolhido para o
efeito de as receber, presumindo-se, nestes casos, feita no terceiro dia
posterior ao do registo da carta ou no primeiro dia útil seguinte a esse,
quando o não seja.
- Artigo 249.º, n.º 2, do CPC: A notificação
efectuada por carta registada não deixa de produzir efeito pelo facto de o
expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para a
residência ou a sede da parte ou para o domicílio escolhido para o efeito de a
receber; nesse caso, ou no de a carta não ter sido entregue por ausência do
destinatário, juntar-se-á ao processo o sobrescrito, presumindo-se a
notificação feita no dia a que se refere a parte final do número anterior.
- Artigo 17.º, n.º 1, do CIRE: Os processos regulados no presente
diploma regem-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as
disposições do presente Código.
A recorrente afirma que não
foi notificada do despacho recorrido, proferido em 09.02.2022, dos despachos
proferidos em 23.06.2021, 21.10.2021 e 06.01.2022 e do requerimento de 06.04.2021.
Quanto ao despacho recorrido, a
recorrente teve conhecimento dele e, tanto assim foi, que interpôs
tempestivamente o presente recurso. Não se alcança o que a recorrente pretende
através da invocação de uma hipotética falta de notificação de um despacho de
que recorreu dentro do prazo legal.
O despacho de 23.06.2021
foi notificado à então advogada da recorrente, Sra. Dra. …, através de ofício
elaborado na mesma data, com a referência 87184899. O mesmo despacho foi
notificado à própria recorrente através de ofício elaborado na mesma data, com
a referência 87185078, expedido, mediante carta registada, para a morada daquela
então conhecida nos autos, onde ela fora notificada em 15.10.2020 (Rua …).
Note-se que só em 23.02.2022 a recorrente informou o tribunal de que mudara de
residência.
O despacho de 21.10.2021 foi
notificado à então advogada da recorrente, Sra. Dra. …, através de ofício
elaborado em 22.10.2021, com a referência 88130176.
O despacho de 06.01.2022 foi
notificado à recorrente através de ofício elaborado em 07.01.2022, com a referência
88821047, remetido, mediante carta registada, para a morada da recorrente então
conhecida nos autos, a acima referida Rua … Foi, então, remetida cópia do
requerimento de cessação do procedimento de exoneração do passivo restante
apresentado por BS, Lda., requerimento esse do qual a então advogada da
recorrente já fora notificada.
Decorre do exposto que as
notificações que a recorrente põe em causa foram efectuadas. A sua advogada foi
sempre notificada e a própria recorrente apenas não recebeu as cartas registadas
que lhe foram remetidas com essa finalidade porque, em violação da obrigação
que o artigo 239.º, n.º 4,
al. d), do CIRE, lhe impõe, não comunicou ao tribunal, no prazo de 10 dias, que
havia mudado de residência e qual passara a ser esta última. Daí que, nos
termos dos artigos 247.º, n.º 1, e
249.º, n.ºs 1 e 2, do CPC (este último aplicável sempre que fosse ordenada a sua
notificação pessoal), a recorrente se considere notificada de todos os
actos processuais que afirma não lho terem sido.
2 – Se a recorrente actuou com dolo ou
negligência grave e, por esse facto, prejudicou a satisfação dos créditos sobre
a insolvência:
O artigo 239.º, n.º 4, do CIRE,
estabelece que, durante o período da cessão, o
devedor fica obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular
quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal
e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em
que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão
remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente
tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego
para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao
fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de
cessão;
d) Informar o tribunal e o
fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no
prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e
dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de
emprego;
e) Não fazer quaisquer
pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não
criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
O despacho inicial,
proferido em 16.11.2017, enunciou os referidos deveres. Bastava, pois, à recorrente, ler esse
despacho para tomar conhecimento dos mesmos deveres.
Desde 16.11.2017 até 09.02.2022, data da
prolação do despacho recorrido, a recorrente não cumpriu o seu dever de
informar a fiduciária das suas mudanças de domicílio. A fiduciária
solicitou-lhe repetidamente a informação necessária ao acompanhamento da sua
situação, mas nunca obteve resposta. Tais pedidos de informação foram remetidos
para a morada da recorrente que foi fixada na sentença que declarou esta última
insolvente, mas exclusivamente porque a recorrente nunca informou a fiduciária
de que mudara de residência, como era seu dever. Os mesmos pedidos foram também
dirigidos à então advogada da recorrente, com o mesmo resultado que aqueles que
foram remetidos pessoalmente a esta última.
A postura contumaz da recorrente no que
concerne ao cumprimento dos seus deveres levou a que, em 06.04.2021, a credora
“BS, Lda.”, requeresse a cessação antecipada do procedimento de exoneração do
passivo restante. Como anteriormente referimos, este requerimento foi
notificado à recorrente e à sua advogada, que nada disseram.
Durante todo o referido período
compreendido entre 16.11.2017 e 09.02.2022, a
recorrente não entregou qualquer quantia ao fiduciário, nem justificou por que
o não fez. Pura e simplesmente, não deu sinal de vida.
Nem mesmo após ser notificada do
despacho proferido em 23.06.2021, através do qual o tribunal a quo lhe deu oportunidade para
justificar a falta de entrega dos documentos e informações solicitadas pela
fiduciária, com a expressa advertência de que, não o fazendo, poderia ser
decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo
restante, a recorrente se pronunciou.
Com fundamento na descrita inércia da
recorrente e a consequente violação dos seus deveres legais, o tribunal a quo proferiu o despacho recorrido,
mediante o qual declarou
a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Considerou o tribunal a quo,
nomeadamente, que a recorrente demonstrou uma grosseira displicência face aos
deveres que lhe estavam cometidos durante o período da cessão, mais
concretamente ao dever de prestar informações sobre os seus rendimentos, e que
desse incumprimento resultou um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a
insolvência.
Acompanhamos
este entendimento. A displicência com que a recorrente encarou os seus deveres
durante o período da cessão é manifesta. Ela não cumpriu tais deveres, tendo-se
remetido ao silêncio, não prestando a mínima colaboração à fiduciária e ao
tribunal, durante mais de quatro anos. Ou seja, violou os referidos deveres com
grave negligência, para dizer o mínimo.
Para que seja decretada a cessação antecipada do procedimento de
exoneração do passivo restante, exige ainda o artigo 243.º, n.º 1, al. a), do
CIRE, que a violação dos referidos deveres prejudique a satisfação dos créditos
sobre a insolvência. A recorrente sustenta que a sua actuação não causou um prejuízo relevante que coloque
em causa a satisfação dos referidos créditos.
A satisfação dos créditos sobre a
insolvência durante o período da cessão nos termos fixados no despacho inicial
pressupõe o cumprimento, pelo devedor, dos deveres estabelecidos no artigo
239.º, n.º 4, do CIRE. Se o devedor, por um lado, não entrega qualquer quantia
ao fiduciário durante o período da cessão, como aconteceu no caso dos autos, e,
por outro, não presta qualquer informação, seja ao tribunal, seja ao
fiduciário, sobre a actividade profissional que desenvolve e o rendimento que a
mesma lhe proporciona, assim impedindo qualquer controlo sobre se se encontra a
cumprir o dever de entrega do rendimento disponível, inevitavelmente prejudica a satisfação
dos créditos sobre a insolvência. Não pode considerar-se admissível ou, pelo
menos, insuficiente para justificar a cessação antecipada do procedimento de
exoneração do passivo restante, aquilo que a recorrente fez: mudou de
residência sem avisar atempadamente o tribunal e a fiduciária, não prestou, ao
longo de mais de quatro anos, qualquer informação, nomeadamente sobre se
exercia alguma actividade profissional e, na hipótese afirmativa, sobre quais
eram os rendimentos que a mesma lhe proporcionava, e nunca entregou qualquer
quantia à fiduciária.
Concluindo, verifica-se o fundamento da cessação antecipada do
procedimento de exoneração do passivo restante invocado no despacho recorrido,
pelo que este deverá ser confirmado, improcedendo o recurso.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas
pela recorrente.
Notifique.
*
Évora, 30.06.2022
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª adjunta