Processo n.º 1957/23.9T8STB.E1
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Sumário:
1 – Na relação de bens do
devedor que acompanha o requerimento inicial do processo especial de
revitalização, deve ser indicado o valor actual de cada um desses bens.
2 – Sendo o devedor
proprietário de um único bem, de natureza imóvel, onerado com hipoteca para
garantia de um crédito, e assentando o plano de recuperação na venda desse bem
a um credor comum, o dever de indicação do seu actual valor de mercado na
relação de bens referida em 1 manifesta-se com especial premência, nomeadamente
porque o conhecimento desse valor é essencial para os credores poderem
participar nas negociações e exercer o seu direito de voto de forma esclarecida
e para o tribunal poder sindicar devidamente a conformidade do plano de
recuperação com a lei, mormente com o princípio da igualdade dos credores.
3 – A indicação referida em
1 e 2 também deve constar do plano de recuperação.
4 – O plano de recuperação
deve conter toda a informação necessária para permitir, ao tribunal, sindicar a
sua conformidade com a lei, nomeadamente com o princípio da igualdade dos
credores.
5 – O grau de diferenciação
de tratamento dos credores pelo plano de recuperação deve reflectir o da
diversidade das situações destes, com base num juízo de proporcionalidade. Uma
diferenciação insuficiente constitui uma das modalidades de violação do
princípio da igualdade dos credores.
6 – A eficácia da lista de
créditos é estritamente intraprocessual: legitima os credores reconhecidos a
intervirem nas negociações e serve de base de cálculo das maiorias previstas no
n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE. Não produz o efeito de caso julgado material
relativamente à existência, montante e natureza dos créditos nela incluídos.
7 – Não é possível concluir
que respeita o princípio da igualdade dos credores o plano de recuperação que
prevê:
A) A venda, a um credor comum, pelo
preço de € 200.000, do único imóvel de que o devedor é proprietário e cujo
valor de mercado este não revelou no processo;
B) O subsequente arrendamento desse
imóvel ao devedor, durante um período de 10 anos, por uma renda mensal de €
1.000;
C) O perdão da totalidade da dívida a
esse credor, no montante de € 314.247,95;
D) O perdão, pelos restantes credores
comuns, de 80% do capital reclamado e da totalidade dos juros vencidos e
vincendos;
E) O pagamento, aos credores referidos
em D), após um período de carência de 1 ano, contado da data do trânsito em
julgado da sentença homologatória do plano de recuperação, da parte não perdoada
da dívida de capital em 10 prestações anuais.
8 – Viola o princípio da
igualdade dos credores o plano de recuperação que, além do descrito em 7,
prevê:
F) O perdão de cerca de 80% do capital e
da totalidade dos juros de um crédito garantido por hipoteca sobre o único
imóvel de que o devedor é proprietário, cujo valor de mercado não é conhecido
no processo;
G) A extinção daquela hipoteca;
H) O pagamento, com o produto da venda
do imóvel a um credor comum, da parte não perdoada desse crédito e de um outro,
alegadamente garantido por direito de retenção sobre o mesmo imóvel, mas não
reconhecido por sentença transitada em julgado, rateadamente.
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Processo especial de
revitalização
Devedora: Sociedade 1, Lda.
Sentença: Recusou a
homologação do plano de recuperação.
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A devedora interpôs recurso
de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. Não obstante a aprovação do plano
pela maioria de credores, o tribunal recorrido recusou a homologação do mesmo,
com base em dois fundamentos concretos:
a) Oficiosamente, nos termos do artigo
215.º do CIRE, por configurar uma violação do pp da igualdade; alegadamente em
três aspectos:
AA) Em primeiro, por o pagamento à
credora hipotecária decorrente da venda do imóvel implicar (no fundo) um perdão
de 80% do crédito por ela reclamado, e este valor ser praticamente igual ao
perdão conferido aos credores comuns;
BB) Em segundo, por (no entender do
tribunal) não poder a devedora tratar o crédito da credora Sociedade 2, SARL
garantido com hipoteca, em pé de igualdade com o crédito reclamado por RC garantido
com direito de retenção;
CC) E em terceiro, por entender o
tribunal que o plano trata de forma diferente a credora comum Sociedade 3, Lda.
dos demais credores comuns, beneficiando-a.
b) E ainda - nos termos do artigo 216.º
do CIRE - por alegadamente o plano deixar o credor hipotecário numa situação
mais desfavorável que na ausência de plano.
Do 1º argumento (violação do pp da
igualdade)
AA)
II. A mera afirmação que consta na
sentença que a proposta prevista para a credora Sociedade 2, SARL, em que veria
esta perdoado, no fundo, um valor praticamente igual ao perdão conferido aos
credores comuns “não pode ser” (sem se justificar o entendimento do tribunal) é
insuficiente para ser concluir pela violação do pp da igualdade.
III. Com efeito, é uma mera coincidência
que do pagamento dos € 200.000,00 pela venda do imóvel caiba ao credor
hipotecário apenas uma percentagem de pagamento de 20% e nesse sentido um
perdão de 80% como aplicado aos credores comuns. Assim, tal resulta meramente
do valor proposta de venda, que se efectivamente fosse maior, também a
percentagem de pagamento seria maior, mas se fosse por um valor menor, também a
percentagem a pagar seria ainda menor que 20%.
IV. Acresce que, ainda que o tratamento
dos credores garantidos fosse mesmo igual ao dos credores comuns (que já vimos
que não é, pois o pagamento no caso dos credores garantidos seria de imediato
após a venda, ao contrário do previsto para os credores comuns, que seria a
pagar em 10 anos) sempre se diria que, tal facto, também não configuraria uma
violação do pp da igualdade, na medida em que este pp não proíbe que a credores
diferentes se dê tratamento igual.
BB)
V. Depois conclui o tribunal “a quo” que
por o plano tratar o credor garantido com hipotecas e o credor garantido com
direito de retenção de forma igual, também viola o pp da igualdade, por
alegadamente este último crédito ser diferente do hipotecário, por não se
encontrar judicialmente reconhecido e por poder ser impugnado caso seja
declarada a insolvência da devedora.”
VI. Com efeito, não podia o tribunal
recorrido concluir que os créditos são diferentes quando ambos foram reclamados
como garantidos e assim foram reconhecidos na lista de credores pela sra. AJP e
sobretudo quando nenhum credor veio, em sede de impugnação da lista, impugnar
nem o crédito, nem a natureza do crédito do reclamante RC.
VII. A devedora apenas poderia incorrer
em tal violação se – efectivamente - tivesse dado um tratamento diferente a
estes credores (que tinham a mesma natureza garantida).
VIII. Mas mesmo que se pudesse dizer que
tais créditos estão em situações diferentes nos autos (o que por mera hipótese
académica se admite, porque não estão), também não se poderia concluir que não
podia o plano dar o mesmo tratamento a um e a outro, já que, como tem entendido
a doutrina, o que está vedado aos devedores na configuração do plano que
apresentam é, precisamente o oposto, isto é: na falta de acordo dos lesados,
sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias idênticas.
IX. Também não violou a devedora o pp da
igualdade na forma de tratamento dos credores comuns ao propor aos credores
comuns um período de carência de 12 meses, perdão total de juros vencidos e
vincendos, perdão de 80% do capital e pagamento do restante em 10 anos,
propondo ainda a venda do seu único imóvel a um desses credores comuns (no
caso, a credora Sociedade 3, Lda.) por € 200.000,00.
X. Desde logo, porque a fundamentação
para o efeito é, com todo o respeito, descabida, subjectiva, alheada de quaisquer
factos concretos que a sustentem e meramente baseada em suposições.
XI. Vejamos que a única justificação do
tribunal para a alegada violação é que se estaria a beneficiar a credora que
iria comprar o bem, porque “ficaria com a propriedade do imóvel (único bem da
devedora), de valor que se desconhece mas, provavelmente superior ao seu valor
patrimonial e receberia uma renda mensal”.
XII. Sucede que, não tinha o tribunal
recorrido quaisquer dados (e por isso não os refere), nem lhe foram carreados
pelo credor hipotecário, que lhe permitissem concluir que o valor do único
imóvel da devedora (prédio urbano, composto por edifício de rés-do-chão e 1º
andar, destinado a armazéns e atividade industrial, sito em Grândola) cujo VPT
é de € 75.095,43, seria “provavelmente superior ao valor deste referido VPT”.
XIII. Depois, não se compreende a
alegação de que a venda do imóvel por 200.000,00 à credora comum interessada no
prédio (Sociedade 3, Lda.), beneficia a mesma (em detrimento dos demais
credores comuns) quando esta credora tem um crédito de 314 247,95 reconhecido
sobre a devedora; quando apesar deste crédito ainda se propõe pagar à devedora
o montante de 200.000.00 (duzentos mil euros) pelo imóvel (não operando
qualquer tipo de compensação!!) e ainda quando vem expressamente declarar que
aceita que com tal aquisição se dê como perdoado o referido crédito reclamado.
XIV. Concluindo-se, assim, que não pode
- sob nenhuma vertente alegada pelo tribunal recorrido, proceder o argumento de
que o plano (aprovado pela maioria exigida de credores) viola o pp da igualdade
de credores.
Do segundo argumento para a recusa de
homologação do plano (art 216 do CIRE)
XV. Também não se aceita a recusa da
homologação nos termos do art 216 do CIRE, com a paupérrima justificação de que
o imóvel tem um VPT de €75.095,43, e “este valor é normalmente inferior ao
valor real do imóvel; e com a liquidação do mesmo, a credora seria ressarcida
em montante superior ao proposto no plano de revitalização (mesmo que ainda
pudesse estar em causa o reconhecimento do direito de retenção ao credor RC;”
XVI. O tribunal decidiu assim com base
em meras suposições acerca do valor comercial do imóvel que se propunha vender,
já que a credora hipotecária que requereu a não homologação, não logrou, em sede
de requerimento de não homologação, de aduzir sequer factos e/ou apresentado
elementos probatórios bastantes nesse sentido, como sejam exemplificativamente
estudos de mercado independentes - não demonstrando assim, que a proposta do
plano apresentada (venda do prédio por 200.000,00, dos quais € 97.060,00 seriam
para lhe pagar) a deixa numa situação mais desfavorável que na ausência de
plano.
XVII. Com efeito, mesmo em cenário de
liquidação, não ficaria a credora hipotecária em situação mais favorável, desde
logo porque a sua dívida está garantida por hipotecas sobre o imóvel da
devedora, imóvel este cujo valor de mercado e efetiva possibilidade de venda,
só poderá ser aferida em situação real, sendo, por isso, especulativa a
alegação da credora de que a sua situação é mais desfavorável com o plano.
XVIII. Depois, no limite, ainda que o
imóvel fosse vendido, sendo consabido que se encontra muito degradado e tendo
apenas um VPT de 75.000,00, é consabido que em sede de execução ou liquidação
em insolvência o património é na maioria das vezes e em regra vendido muito
abaixo do valor de mercado, desde logo partindo de 70% de valor base atribuído,
e genericamente, após vários anos em desvalorização, vendido em negociação
particular ou por adjudicação em cerca de 25% do valor inicial atribuído.
XIX. Assim, e como o que
substancialmente importa é, pois, a comparação entre a situação emergente da
homologação do plano e a que interviria na sua ausência, é, nesta perspectiva,
razoável afirmar-se que a situação da credora hipotecária, face ao compromisso
assumido pela devedora no plano (de pagamento de 97.000.00 ao credor
hipotecário) é melhor do que a situação anterior do mesmo, em que desconhecia
como e quando (e mesmo se) obteria a satisfação do seu crédito-desde logo por
não ter demonstrado quanto é que o imóvel vale efectivamente, mas sobretudo por
à frente das hipotecas, poder prevalecer o crédito do credor RC, de cerca de
519.000,00, garantido com direito de retenção.
Neste sentido o Acórdão do Tribunal da
Relação do Porto, no Processo n.º 1251/12.0TYVNG.P1, datado de 30/06/2014 e também
o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães no Proc. 260/12.4TBFAF-D.G1, de 09/04/2013.
A credora hipotecária, Sociedade
2, SARL, apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
A) Entendeu – e bem – o douto Tribunal a
quo, decidir pela não homologação oficiosa do plano recuperação, uma vez que,
este viola as normas procedimentais e basilares que regem o processo especial
de revitalização, nos termos do artigo 215.º, n.º 1, do CIRE;
B) De acordo com a sentença recorrida,
este plano, viola o princípio da igualdade de credores, previsto no artigo
194.º do CIRE, nas seguintes vertentes: I) A Credora Hipotecária Sociedade 2,
SARL, com a venda do imóvel nos exatos termos do plano, teria um perdão de dívida
equivalente a 80%, ficando em posição idêntica aos credores comuns; II) A
Credora Hipotecária Sociedade 2, SARL, que detém um direito inquestionável -
nos termos do plano apresentado - estaria em pé de igualdade com o credor RC,
cujo crédito foi reconhecido como garantido por direito de retenção, mas que
não se encontra reconhecido judicialmente, pelo que, não existe certeza da sua
existência.; III) Entre credores comuns, o plano trata de forma diferente – e
mais favorável – a credora comum Sociedade 3, Lda. em relação aos demais
credores comuns;
C) E, por fim, o plano apresentado, nos
termos do artigo 216.º do CIRE, coloca a Credora Hipotecária Sociedade 2, SARL,
numa situação mais desfavorável do que na sua ausência;
D) Em primeiro lugar, o Tribunal a quo
fundamentou a violação do princípio – perante credores de natureza distinta –
com base em cálculo aritmético que é demonstrativo do tratamento dado à credora
hipotecária Sociedade 2, SARL e credores comuns;
E) Vejamos, se a Credora Hipotecária Sociedade
2, SARL tem um crédito reconhecido, de natureza garantida, no montante de €
485.540,68, e receberia desta venda o montante de € € 97.060,00, corresponderia
ao ressarcimento de € 17,48% do total do crédito;
F) Deste modo, a Credora Hipotecária Sociedade
2, SARL, ainda receberia uma percentagem inferior relativamente aos credores
comuns (20,00%);
G) Mas mais, ao contrário do que alega a
Recorrente, tal demonstração do tratamento lesivo deste plano - para a Credora
Hipotecária - foi devidamente explanado e demonstrado pela própria em sede de
pedido de não homologação do plano;
H) Em segundo lugar, no que respeita ao
tratamento igualitário da Credora Hipotecária Sociedade 2, SARL e do Credor RC,
a sentença proferida pelo Tribunal a quo, também não merece qual censura;
I) Nos termos do plano apresentado para
os credores garantidos, estes receberão rateadamente os € 200.000,00 da venda
do imóvel, na proporção dos seus créditos reclamados, sendo que o remanescente
dos créditos (capital e juros vencidos e vincendos) serão perdoados;
J) O mesmo é dizer que, o Credor RC,
além de ficar numa posição igualitária à Credora Hipotecária Sociedade 2, SARL,
ainda receberia uma percentagem superior do produto da venda do imóvel;
K) Contudo, e como bem frisou o Tribunal
a quo, o alegado crédito de RC, não se encontra judicialmente reconhecido pelo
Tribunal (nem foi alegado que existe ação com vista a esse reconhecimento) e
pode ser impugnado caso seja declarada a insolvência da devedora;
L) A ser homologado este plano, violaria
o princípio da igualdade dos credores, na medida em que, um crédito cuja
existência depende uma ação judicial a intentar (de desfecho incerto) teria o
mesmo tratamento que um credor hipotecário, cujo direito é indiscutível;
M) Esta situação, a verificar-se, com a
homologação do plano, viola o princípio da igualdade de Credores, na medida em
que, este credor - cujo crédito depende de ação judicial a intentar teria o
mesmo tratamento que o crédito hipotecário, ou seja, o seu reconhecimento como crédito
garantido;
N) Em terceiro lugar, com referência ao
tratamento diferenciado - e mais favorável - da Credora Sociedade 3, Lda. em
relação aos demais credores comuns, também andou bem o Tribunal a quo, ao
considerar que o mesmo viola o princípio da igualdade entre credores da mesma natureza;
O) Nos termos do plano apresentado, com
exceção da Credora Sociedade 3, Lda., os Credores Comuns, receberiam 20% do
capital reconhecido e um perdão de 80% do capital;
P) Por sua vez, a Credora Sociedade 3,
Lda., cujo crédito reconhecido como comum, no montante de € 314 247,95,
adquiria o imóvel da devedora pelo montante de € 200.00,00 (com perdão do remanescente
do capital e juros reclamados);
Q) Mas, note-se, receberiam uma renda
mensal de € 1.000,00, durante 10 anos, emergente do arrendamento do imóvel à
sociedade devedora para continuar a laborar;
R) Ora, embora pretenda omitir a
Recorrente, equivaleria a dizer que a Credora Sociedade 3, Lda., receberia mais
do que o total do crédito reconhecido, com a aquisição do imóvel (estimado em
200.000,00 e rendas no valor global de € 120.000,00);
S) Em suma, a credora Credora Sociedade
3, Lda., receberiam um total de € 320.000,00 (aquisição do ativo e rendas), ou
seja, superior a 100% do crédito reconhecida;
T) E, ao contrário do que invoca a
Recorrente, não corresponde à verdade que a Credora Hipotecária não carreou
para os autos o valor atual do imóvel;
U) Em sede de pedido de não homologação
do plano, a Credora Hipotecária referiu que no âmbito da ação executiva
instaurada pela própria, existiu uma licitação superior a 215.000,00 €;
V) O mesmo é dizer que, o valor de
mercado do imóvel é claramente superior a € 200.000,00 €;
W) Por fim, também andou bem o Tribunal
a quo, ao considerar que o plano apresentado coloca a Credora Hipotecária Sociedade
2, SARL, numa situação menos favorável, do que na ausência do plano, nos termos
artigo 216.º, do CIRE;
X) Com efeito, desde logo se refira que
as condições propostas neste plano de revitalização são drasticamente
inferiores aos valores reconhecidos à Credora no âmbito do PER, cujo plano
prevê apenas o pagamento de 17,48% do capital, perdoando-se os juros vencidos (moratórios
e remuneratórios).
Y) A Credora Sociedade 2, SARL, tem uma ação
executiva em curso, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
– Juízo 1, Processo N.º1339/22.0T8STB, na qual foi penhorado o imóvel sobre o
qual incide garantia hipotecária.
Z) Com a venda no processo executivo, a
Devedora ressarciria a Credora Hipotecária, pelo produto da venda do imóvel e
pagaria as dívidas existentes junto da Autoridade Tributária (reclamadas no
processo executivo) e estabelecer acordo de pagamento com a Credora adquirente
do imóvel.
AA) Neste processo, foi apresentada uma
proposta para aquisição, no montante de € 215.642,00, ou seja, superior ao
valor oferecido pela Credora no âmbito do processo de insolvência.
BB) Mas mais, neste processo, o Credor RC
não reclamou créditos, tendo conhecimento inequívoco da penhora do imóvel – do
qual se arroga promitente-comprador – e da sua venda.
CC) Termos em que, considerando a
factualidade exposta, andou bem o douto Tribunal a quo, ao proferir decisão de
não homologação do plano de recuperação, por violação do disposto no artigo
215.º do CIRE, 194.º do CIRE, e 216.º do CIRE.
O recurso foi admitido.
*
Questões a decidir:
- Se o plano de recuperação viola o
princípio da igualdade dos credores;
- Se, ao abrigo do plano de recuperação,
a credora hipotecária fica numa situação previsivelmente menos favorável do que
aquela em que ficaria na ausência daquele plano.
*
Na sentença recorrida, foram
julgados provados os seguintes factos:
1 – Sociedade 1, Lda., veio requerer o
presente Processo Especial de Revitalização em 14.03.2023, juntando desde logo
proposta prévia de plano de recuperação.
2 – Foi nomeado administrador judicial
provisório, nos termos do disposto no artigo 17º-C, n.º 5, do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
3 – A Sra. Administradora juntou lista
provisória de créditos em 06.04.2023.
4 – Foram apresentadas impugnações, as
quais foram decididas em por despacho datado de 06.06.2023.
5 – Em 13.07.2023 foi junta aos autos a
versão final do plano de revitalização, a qual foi publicada em 17.07.2023.
6 – Em 31.07.2023 foi junta aos autos
nova versão do plano, a qual foi publicitada em 04.08.2023.
7 – Resulta do mapa de votações junto
aos autos que o plano de revitalização foi votado por credores que representam
99,99% dos créditos reconhecidos, sendo que destes 55,07% votaram
favoravelmente o plano e 44,93% votaram desfavoravelmente o plano.
8 – Os credores Sociedade 4, Lda., Sociedade
2, SARL, Fazenda Nacional e Instituto de Segurança Social, IP – Centro
Distrital de Setúbal (fls. 280) vieram requerer a não homologação do plano
apresentado, pedindo ainda os credores Fazenda Nacional e Instituto de
Segurança Social, IP – Centro Distrital de Setúbal que, caso o mesmo venha a
ser homologado, que se exclua do seu âmbito de aplicação os seu créditos.
9 – Consta do plano, nomeadamente, o
seguinte:
“A
empresa é titular dos seguintes bens:
Bens
Imóveis:
Prédio
urbano, composto por edifício de rés-do-chão e 1º andar, destinado a armazéns e
atividade industrial, sito em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial
de Grândola sob o número (…), e inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…),
em estado muito degradado.
Bens
Móveis:
A
devedora não possui bens móveis”.
10 – Que o total do passivo ascende a €
1.505.755,08 (fls. 11 do plano).
11 – E que:
“Para prosseguir a sua atividade, assume-se
o pressuposto de alienar o imóvel onde a sociedade labora e com essa alienação
libertar-se de ónus reais, financeiros e pessoais que sobre o mesmo incidem.
Para
retomar a normal laboração, logrou-se acordar com o credor Sociedade 3, Lda. a
possibilidade de este adquirir o imóvel pelo valor de 200.000 Euros (sabendo-se
que hoje, no estado em que se encontra não valerá no mercado mais de 175.000
Euros) e dá-lo de arrendamento á devedora, por uma valor fixo mensal de 1.000
Euros, durante 10 anos e sem atualizações de renda.
Caso
esta solução proceda, a devedora:
a)
Receberá o perdão da totalidade do crédito reclamado pelo credor Sociedade 3,
Lda.;
b)
Paga com o valor recebido na venda do imóvel aos credores garantidos na
proporção dos créditos reclamados e com perdão dos valores remanescentes;
c)
Assegura local para laborar, livre de ónus, encargos e responsabilidades, com
um custo fixo mensal e duradouro;
d)
Paga a AT e SS”. (fls. 13 e 14 do plano)
12 – Quanto aos pagamentos ao Estado o
plano prevê o seguinte (fls. 15 a 17 do plano):
“4.3.1
Autoridade Tributária e Aduaneira
A
regularização ocorrerá nos termos do n.ºs 2 e 3 do artigo 30º e nº3 do artigo
36º da LGT e artigos 196º e 199º do CPPT, ou seja:
1
– Regime legal aplicável aos Créditos Tributários
Pagamento
em regime prestacional, nos termos do artigo 196º do Código de Procedimento e
de Processo Tributário (CPPT), ou seja:
a)
As prestações são mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao
final do mês seguinte ao términus do prazo previsto no nº 5 do artigo 17-D do
CIRE ou nº 5 do artigo 222-D do CIRE.
b)
Número máximo de prestações:
i.
Até ao máximo de 36 prestações, não podendo nenhuma delas ser inferior a 1
unidade de conta (atualmente €102)
ii.
Até 150 prestações mensais, não podendo nenhuma delas ser inferior a 10
unidades de conta (atualmente €1020);
A
redução dos créditos fiscais só se dará, por juros de mora vencidos e
vincendos, nos termos do Decreto-Lei n.o 73/99 de 16 de Março, aceitando-se as
taxas que vierem a ser acordadas para a Segurança Social, face à renúncia dos
demais credores e às garantias constituídas e/ou a constituir;
Não
haverá lugar à redução de coimas e custas;
Não
haverá lugar a qualquer moratória.
c)
A devedora compromete-se a efectuar o pagamento integral de todas as dívidas de
IMI no momento da aquisição do imóvel.
d)
Manutenção das garantias reais prestadas e/ou constituídas anteriormente.
Para
os efeitos previstos do nº 1 do artigo 17o-E ou nº 1 do artigo 222-E do CIRE,
determina-se, nos termos da sua parte final, que a extinção dos processos
fiscais só se dará nos termos do CPPT.
A
suspensão prevista naquele normativo cessa, conforme o que ocorrer primeiro,
com o decurso das negociações ou do prazo previsto na lei para conclusão das
mesmas (nº 5 do artigo 17-D do CIRE)
4.3.2
Instituto da Segurança Social – IP
•
O pagamento da dívida reconhecida no presente PER será efetuado no âmbito da
execução fiscal, através de 1 prestação única, sendo o pagamento efetuado no
mês seguinte à data de aprovação do acordo.
•
As ações executivas pendentes para cobrança de dívida à Segurança Social não
são extintas sendo suspensas após aprovação e homologação do plano de
revitalização até integral cumprimento do plano de pagamentos que venha a ser
autorizado.
•
Taxa de juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado e outras entidades
públicas.
•
Dispensa de garantias nos termos do art. 199, nº 13 do CPPT”.
13 – O pagamento aos credores garantidos
será efetuado do seguinte modo (fls. 17 do plano):
“4.3.3
Credores Garantidos
A
regularização da dívida aos credores garantidos deverá ocorrer da forma que de
seguida se discrimina:
A.
Perdão integral de juros vencidos reclamados e vincendos
B.
Concessão de autorização para venda do único bem imóvel propriedade da
devedora, pelo valor de 200.000 Euros á credora Sociedade 3, Lda., a qual se
compromete, por força dessa aquisição a perdoar expressamente a totalidade do
capital e juros reclamados e, simultaneamente a dar de arrendamento á devedora
o mesmo, por um prazo de 10 anos e com uma renda mensal de 1.000 Euros, não
atualizável no mesmo espaço temporal.
C.
Pagamento imediatamente após a venda do imóvel, aos credores garantidos, do
valor de 200.000 Euros a ratear entre ambos na proporção dos seus créditos
reclamados.
D.
Perdão do restante capital reclamado e não pago nos termos da alínea C
anterior”.
14 – Quanto aos credores comuns e
privilegiados, prevê o plano o seguinte (fls. 18):
“4.3.4
Credores Comuns e privilegiados
A
regularização dos valores em dívida pela empresa que vierem a ser reconhecidos
com a natureza de comuns e privilegiados, deverá ocorrer nos termos a seguir
expostos:
A)
Estabelecimento de um período de carência de 12 meses a contar desde a data do
trânsito em julgado da sentença que vier a homologar o plano de recuperação;
B)
Perdão 80% do capital reclamado
C)
Perdão de juros vencidos e vincendos
D)
Pagamento dos valores em dívida após perdão em 10 prestações iguais, anuais e
sucessivas;
E)
Após o término do período de carência o pagamento dos valores em dívida ocorrerá
em prestações, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil
do ano seguinte ao do término da carência estabelecida em A);”
15 – Por fim, quanto à credora comum Sociedade
3, Lda., o plano prevê o seguinte (fls. 18 do plano):
“A
credora Sociedade 3, Lda. propõe-se adquirir o imóvel propriedade da devedora
pelo valor de 200.000 Euros, no prazo de 30 dias após homologação do plano.
Caso
tal proposta seja aceite, assume (cf Declaração anexa) perdoar integralmente o
capital e juros reclamados;
e,
Assume
expressamente (cf declaração anexa) dar de arrendamento, pelo prazo de 10 anos
após a aquisição e por uma renda fixa mensal de 1.000 Euros, á devedora, o
mesmo imóvel.
Pelo
exposto, assume-se no plano um tratamento diferenciado desta credora, o qual
ela assume e aceita também expressamente cf declarações que junta.
Caso
a venda não seja autorizada nas condições supra, o pagamento do crédito desta
credora seguirá os termos definidos para todos os demais credores comuns.”
16 – O imóvel em causa tem o VP de €
75.095,43 e sobre o mesmo incidem três hipotecas registadas a favor do credor Sociedade
2, SARL (cfr. fls. 293 a 297 dos autos).
*
O plano de recuperação da recorrente
contém lacunas em aspectos que são fundamentais para a sua apreciação, quer
pelos credores, quer pelo tribunal. Nas suas alegações, a recorrente reconhece
a existência de uma dessas lacunas: a falta de indicação do valor de mercado do
seu único bem imóvel. Paradoxalmente, procura utilizá-la em seu proveito, atribuindo
a falta de indicação do valor de mercado do imóvel à actuação processual da credora
Sociedade 2, SARL e atacando a sentença recorrida por, em face dessa lacuna,
que impossibilita uma análise rigorosa da conformidade do plano de recuperação
com a lei, ter acolhido a argumentação apresentada por aquela credora e
recusado a homologação daquele plano.
Passamos a justificar cada
uma destas afirmações.
O artigo 17.º-C, n.º 3, al.
b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (diploma ao qual
pertencem todas as normas adiante referenciadas sem menção da sua origem),
estabelece que a empresa requerente do processo especial de revitalização (PER)
deverá apresentar, com o requerimento inicial, cópias dos documentos elencados
no n.º 1 do artigo 24.º, as quais ficarão patentes na secretaria, para consulta
dos credores durante todo o processo. A al. c) do mesmo artigo e número
estabelece que a empresa requerente também deverá apresentar, com o requerimento
inicial, uma proposta de plano de recuperação, acompanhada, pelo menos, da
descrição da sua situação patrimonial, financeira e reditícia. Um dos
documentos referidos no n.º 1 do artigo 24.º é uma relação que inclua os bens e
direitos de que a empresa requerente seja titular, com indicação da sua
natureza, lugar em que se encontrem, dados de identificação registral e, se for
o caso, valor de aquisição e estimativa do seu valor actual – al. e).
O n.º 8 do artigo 17.º-D
estabelece que, durante as negociações, a empresa deverá prestar toda a
informação pertinente aos seus credores e ao administrador judicial provisório
que haja sido nomeado, para que as mesmas se possam realizar de forma
transparente e equitativa, devendo manter sempre actualizada e completa a
informação facultada ao administrador judicial provisório e aos credores. O n.º
12 do mesmo artigo dispõe que, durante as negociações, os intervenientes devem
actuar de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do
Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro.
Destes princípios,
interessam-nos particularmente os seguintes:
2.º - Durante todo o procedimento, as
partes devem actuar de boa-fé, na busca de uma solução construtiva que
satisfaça todos os envolvidos.
7.º - O devedor deve adoptar uma postura
de absoluta transparência durante o período de suspensão, partilhando toda a
informação relevante sobre a sua situação, nomeadamente a respeitante aos seus
activos, passivos, transacções comerciais e previsões da evolução do negócio.
10.º - As propostas de recuperação do
devedor devem basear-se num plano de negócios viável e credível, que evidencie
a capacidade do devedor de gerar fluxos de caixa necessários ao plano de
reestruturação, que demonstre que o mesmo não é apenas um expediente para
atrasar o processo judicial de insolvência, e que contenha informação
respeitante aos passos a percorrer pelo devedor de modo a ultrapassar os seus
problemas financeiros.
O n.º 1 do artigo 17.º-F
estabelece que, até ao último dia do prazo de negociações, a empresa deposita
no tribunal a versão final do plano de recuperação, contendo, pelo menos, as
seguintes informações (…): al. b) Descrição da situação patrimonial, financeira
e reditícia da empresa no momento da apresentação da proposta do plano de
recuperação, indicando, nomeadamente, o valor dos activos, e fazendo uma
descrição da situação económica da empresa; al. j) Uma exposição de motivos que
contenha a descrição das causas e da extensão das dificuldades da empresa e que
explique as razões pelas quais há uma perspectiva razoável de o plano de
recuperação evitar a insolvência da empresa e garantir a sua viabilidade,
incluindo as condições prévias necessárias para o êxito do plano. Da al. g) do
n.º 7 do mesmo artigo resulta que um dos factores que o juiz deve considerar no
seu processo de decisão sobre a homologação do plano de recuperação é o de este
apresentar perspectivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de
garantir a viabilidade da mesma.
Detectámos duas lacunas
fundamentais no plano de recuperação da recorrente. Uma delas é a já referida
falta de indicação do valor de mercado do único bem imóvel que integra o património
da recorrente. A outra é a ausência de uma exposição fundamentada das razões
pelas quais existe uma perspectiva razoável de o plano de recuperação evitar a
insolvência da recorrente e garantir a viabilidade desta.
Não nos deteremos na análise
da segunda lacuna, pois não teve influência na decisão de não homologação do
plano de recuperação. Interessa-nos, sim, a primeira.
Na relação de bens que
acompanhou o requerimento inicial, a recorrente identificou o único imóvel que
integra o seu património, mas não indicou o seu valor. Não cumpriu, pois, o
disposto nos artigos 17.º-C, n.º 3, als. b) e c).
No plano de recuperação, a
recorrente afirmou que aquele imóvel “hoje,
no estado em que se encontra não valerá no mercado mais de 175.000 Euros”. Posteriormente,
apresentou a caderneta predial do imóvel, na qual é indicado, como valor
patrimonial deste, € 75.95,43. Em momento algum a recorrente indicou com rigor
e de forma fundamentada, como era seu dever, o valor de mercado do imóvel.
O incumprimento, pela
recorrente, do seu dever de informação sobre o valor de mercado do imóvel,
inquina todo o plano de recuperação, desde logo porque era essencial, para os
credores, conhecer aquele valor para poderem participar nas negociações e
exercer o seu direito de voto de forma esclarecida. Tal conhecimento também é
indispensável para o tribunal poder sindicar devidamente a conformidade do
plano de recuperação com a lei, para mais quando esse plano prevê a venda do
imóvel em causa a um dos credores.
Nomeadamente, não é possível
avaliar, com rigor, se se verifica uma violação do princípio da igualdade dos
credores, sem conhecer o valor real, de mercado, do imóvel que a recorrente
pretende vender à credora comum Sociedade 3, Lda.. Não sendo possível
quantificar o sacrifício (se é que este existe) que a Sociedade 3, Lda.
suportaria em resultado do plano de recuperação, também não é, obviamente,
possível comparar esse eventual sacrifício com aquele que cada um dos restantes
credores teria de suportar em resultado do mesmo plano.
Perante a situação descrita,
o tribunal a quo esforçou-se por
chegar a conclusões que lhe permitissem tomar uma decisão. A recorrente critica
esse esforço, afirmando que a fundamentação para o efeito expendida pelo
tribunal a quo é “descabida, subjectiva, alheada de quaisquer factos concretos que a
sustentem e meramente baseada em suposições” (conclusão X). Realça a
recorrente que “não tinha o tribunal
recorrido quaisquer dados (e por isso não os refere), nem lhe foram carreados
pelo credor hipotecário, que lhe permitissem concluir que o valor do único
imóvel da devedora (…) cujo VPT é de € 75.095,43, seria provavelmente superior
ao valor deste referido VPT” (conclusão XII), qualificando esta
fundamentação como “paupérrima”
(conclusão XV). A recorrente conclui que o tribunal a quo decidiu “com base em
meras suposições acerca do valor comercial do imóvel que se propunha vender, já
que a credora hipotecária que requereu a não homologação, não logrou, em sede
de requerimento de não homologação, de aduzir sequer factos e/ou apresentado
elementos probatórios bastantes nesse sentido, como sejam exemplificativamente
estudos de mercado independentes - não demonstrando assim, que a proposta do
plano apresentada (venda do prédio por 200.000,00, dos quais € 97.060,00 seriam
para lhe pagar) a deixa numa situação mais desfavorável que na ausência de
plano” (conclusão XVI).
Ou seja, a recorrente não
cumpriu o seu dever de prestar informação completa e transparente sobre o valor
do seu activo, mormente do único imóvel que o integra, mas atribui essa falta à
credora hipotecária e critica o tribunal a
quo por ter decidido com base em “suposições”.
É evidente a falta de razão da recorrente. A ocultação do valor real do imóvel constitui
falta sua, pelo que apenas poderá censurar-se a si própria pelas consequências
do desconhecimento desse valor no processo. Era a si e não aos credores,
nomeadamente à credora hipotecária, que competia esclarecer qual é o valor real
ou de mercado do imóvel. O tribunal a quo,
por seu turno, limitou-se a decidir com base nos elementos de que dispunha.
Esclarecida que está a
questão da responsabilidade pela falta de informação sobre o valor de mercado
do imóvel e das consequências dessa lacuna do plano de recuperação, avancemos.
Não obstante não conhecermos o valor de mercado do imóvel, é possível ir mais
além na análise do plano de recuperação da recorrente. Aqui e ali, o nosso
raciocínio terá de assentar em “suposições”
como aquelas que a recorrente criticou, mas, perante a insuficiência da
informação que esta forneceu, não temos alternativa. Sendo certo que essa
alternativa nunca poderia ser, como a recorrente parece pretender, deixar de
fazer a análise possível da situação com base na informação disponível e considerar
a insuficiência dessa informação como um óbice à procedência da oposição
deduzida pelas credoras Sociedade 4, Lda. e Sociedade 2, SARL à homologação do
plano de recuperação. A omissão de prestação de informação por parte da
recorrente não pode reverter a seu favor, sob pena de se estar a beneficiar o
infractor.
O plano de recuperação
assenta na projectada venda do único imóvel que integra o património da
recorrente a uma credora comum, Sociedade 3, Lda., pelo preço de € 200.000. A Sociedade
3, Lda., obrigou-se a dar o imóvel de arrendamento à recorrente durante 10
anos, por uma renda mensal de € 1.000, não actualizável, e ainda a perdoar a
totalidade da dívida que a recorrente tem para consigo.
Com o valor proveniente da
venda do imóvel, a recorrente pagaria à credora hipotecária, Sociedade 2, SARL,
e a RC, alegadamente titular de um crédito garantido por um direito de
retenção, na proporção dos montantes desses créditos. O remanescente dos mesmos
créditos seria perdoado.
Os credores comuns, com
excepção da Sociedade 3, Lda., e os credores privilegiados, perdoariam 80% do
capital reclamado e a totalidade dos juros vencidos e vincendos. O remanescente
dos seus créditos ficaria sujeito a um período de carência de 1 ano, a contar
da data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de
recuperação, sendo, depois, pago em 10 prestações anuais.
O objectivo do plano de
recuperação seria a recorrente “retomar a normal laboração”.
Coloca-se a questão de saber
se o plano de recuperação obedece ao princípio da igualdade dos credores,
consagrado no artigo 194.º e aplicável ao plano de recuperação ex vi artigo 17.º-F, n.º 7. O n.º 1 do
artigo 194.º enuncia aquele princípio nos seguintes termos: “O plano de
insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem
prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.” Estamos
perante uma cláusula geral, que teremos de aplicar tendo em consideração as particularidades
do caso dos autos.
O plano de recuperação da
recorrente suscita diversas questões a este nível.
A diferença de tratamento
entre a Sociedade 3, Lda. e os restantes credores comuns é gritante. Como
anteriormente referimos, de acordo com o plano de recuperação, a Sociedade 3,
Lda. perdoaria a totalidade da dívida que a recorrente tem para consigo e
adquiriria a propriedade do imóvel da recorrente mediante o pagamento de €
200.000. Em seguida, cederia, à recorrente, o gozo do imóvel por um período de
10 anos, mediante o pagamento de uma renda mensal de € 1.000, não actualizável.
Os restantes credores comuns teriam de suportar um perdão de 80% do capital
reclamado e da totalidade dos juros vencidos e vincendos, ficando o
remanescente dos seus créditos sujeito a um período de carência de 1 ano, a
contar da data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de
recuperação. Decorrido esse período de carência, o remanescente seria pago em
10 prestações anuais, com as receitas provenientes da retoma da actividade da
recorrente.
Como se chegou a esta
solução?
A recorrente responde a esta
questão, ainda que de forma não totalmente esclarecedora, no ponto 15 do corpo
das suas alegações e na conclusão III: Houve uma “proposta de venda”, cujo
valor podia ter sido acima ou abaixo de € 200.000. Depreende-se desta última
afirmação que houve uma negociação entre a recorrente e a Sociedade 3, Lda., da
qual resultou o acordo levado ao plano de recuperação e na qual, acreditamos, a
recorrente procurou obter o melhor preço possível.
Pergunta-se: Foi dada igual
oportunidade aos restantes credores? A recorrente procurou, junto destes, obter
um preço mais elevado? O plano de recuperação não o diz, o que inculca que nada
disso foi feito. A Sociedade 3, Lda. teve, pois, um papel decisivo na
determinação do conteúdo do plano de recuperação, ao passo que, neste ponto, os
restantes credores se limitaram a ser confrontados com o resultado das
negociações entre aquela e a recorrente.
Como anteriormente
salientámos, o desconhecimento do valor real do imóvel que a recorrente
pretende transmitir à Sociedade 3, Lda., impede uma averiguação rigorosa do
cumprimento do princípio da igualdade dos credores pelo plano de recuperação. Tudo
indica que houve uma diferença injustificada de tratamento na fase das
negociações. No que concerne ao resultado dessas negociações, não dispomos de
todos os dados relevantes. Não obstante, há um aspecto curioso que merece ser
analisado.
De acordo com o plano de
recuperação, a Sociedade 3, Lda. é titular de um direito de crédito no montante
de € 314.247,95, que perdoaria integralmente, e pagaria o preço de € 200.000
pela aquisição do imóvel, apesar de o valor de mercado deste não exceder €
175.000. A serem verdadeiros estes valores, o plano de recuperação afigura-se,
à partida, ruinoso para aquela credora, a qual, não só perdoaria a totalidade
do seu crédito, como ainda compraria o imóvel por um preço superior ao seu
valor, assim perdendo, pelo menos, mais € 25.000. Daí que seja legítima a
suspeita de que o valor de mercado do imóvel seja superior a € 200.000, assim
conferindo racionalidade económica à operação descrita do ponto de vista da Sociedade
3, Lda..
Uma outra hipótese é
concebível: aquilo que a Sociedade 3, Lda. perde nos termos acabados de
descrever, seria recuperado através do recebimento das rendas que a recorrente
pagaria durante um período de 10 anos. Se for através deste mecanismo que a Sociedade
3, Lda. pretende obter, indirectamente, a satisfação do crédito que actualmente
tem sobre a recorrente, o mesmo terá de ser considerado inadmissível. O plano
de recuperação deve evidenciar que respeita o princípio da igualdade dos
credores e, para tanto, deverá consagrar soluções transparentes e devidamente
fundamentadas. Esta exigência de fundamentação e transparência é incompatível
com omissões estratégicas de informação relevante, bem como com a concessão
encapotada de vantagens a um ou mais credores em detrimento dos restantes.
Resulta do exposto que, em
qualquer hipótese, não é possível concluir que o plano de recuperação respeite
o princípio da igualdade no que concerne aos créditos comuns.
Analisemos, em seguida, se é
possível concluir que o plano de recuperação respeita o princípio da igualdade
relativamente à credora hipotecária, Sociedade 2, SARL.
A situação desta credora
deve ser comparada com:
- A da credora Sociedade 3, Lda., Lda.;
- A dos restantes credores comuns;
- A do credor RC.
Pelas razões referidas
aquando do cotejo da situação que, do plano de recuperação, resulta para a
credora Sociedade 3, Lda. e para os restantes credores comuns, não é possível
concluir que aquele respeite o princípio da igualdade no que concerne à credora
Sociedade 2, SARL, no confronto com a credora Sociedade 3, Lda.. Como vimos,
devido à omissão de informação obrigatória por parte da recorrente, é
impossível avaliar com rigor se e em que medida o plano de recuperação impõe um
sacrifício patrimonial à Sociedade 3, Lda.. Logicamente, é impossível fazer uma
comparação entre uma realidade que conhecemos e uma outra que desconhecemos.
Os direitos de crédito da Sociedade
2, SARL encontram-se garantidos por hipoteca. Desconhecemos o valor de mercado
do imóvel hipotecado, pelo que não é possível determinar em que medida tal
valor cobre o dos créditos garantidos. De qualquer forma, é seguro que os
direitos de crédito da Sociedade 2, SARL gozam de uma garantia sólida sobre o
único bem imóvel da recorrente. Daí que, prevendo o plano de recuperação a
perda, pela Sociedade 2, SARL, de cerca de 80% do capital e da totalidade dos
juros, e, pelos credores comuns com excepção da Sociedade 3, Lda., a perda de
idêntica percentagem do capital e da totalidade dos juros, trate de forma
idêntica credores cujas situações são muito diferentes, o que também viola o
princípio da igualdade.
A isto, a recorrente contrapõe
que o plano de recuperação prevê o pagamento aos credores garantidos logo após
a venda, ao passo que o pagamento aos credores comuns, com excepção da Sociedade
3, Lda., seria em prestações, ao longo de 10 anos. Esta desigualdade de
tratamento é real. Não obstante, não é suficientemente diferenciadora da
situação da credora Sociedade 2, SARL, já caracterizada, relativamente à dos
credores comuns. Não há justificação possível para impor, a um credor cujo
direito se encontra garantido por uma hipoteca sobre um imóvel cujo valor não
esteja demonstrado ser inferior ao daquele direito, um perdão de 80% do capital
e da totalidade dos juros. Desde logo, porque se trata de um sacrifício
desproporcional imposto ao credor hipotecário. Depois, porque aquela imposição,
ainda que com tempos de pagamento diversos, se traduz numa diferenciação
insuficiente relativamente aos credores comuns. Diga-se, por último, que é
indiferente a forma como se chegou à percentagem do perdão do capital.
Coincidência ou não, o resultado a que se chegou é incompatível com o princípio
da igualdade dos credores.
Em terceiro lugar, a equiparação,
feita no plano de recuperação, do credor RC à credora Sociedade 2, SARL, não
tem razão de ser. Como acertadamente se argumenta na sentença recorrida, “o crédito da Sociedade 2, SARL goza de
garantia indiscutível (hipoteca) mas o crédito reconhecido a RC não é aceite
pela credora garantida, não se encontra judicialmente reconhecido pelo Tribunal
(nem foi alegado que existe acção com vista a esse reconhecimento) e pode ser
impugnado caso seja declarada a insolvência da devedora.”
A recorrente contrapõe que o
crédito de RC foi reclamado como garantido, foi como tal reconhecido na lista
provisória de créditos e não foi impugnado, pelo que o tribunal a quo não podia diferenciá-lo dos
créditos da Sociedade 2, SARL.
Não é assim. A eficácia da
lista de créditos é estritamente intraprocessual: legitima os credores
reconhecidos a intervirem nas negociações e serve de base de cálculo das
maiorias previstas no n.º 5 do artigo 17.º-F. Não produz o efeito de caso
julgado material relativamente à existência, montante e natureza dos créditos nela
incluídos. Daí que, apesar de RC constar da lista definitiva de credores, o seu
crédito continue a não se encontrar reconhecido por sentença, impondo-se,
assim, a sua diferenciação relativamente aos créditos hipotecários da Sociedade
2, SARL, nos termos descritos na sentença recorrida. Ao equiparar os credores RC
e Sociedade 2, SARL, prevendo que os créditos por eles reclamados fossem pagos
rateadamente com o produto da venda do imóvel, o plano de recuperação violou o
princípio da igualdade dos credores.
Perante as descritas
violações do princípio da igualdade dos credores, é já evidente que o plano de
recuperação não pode ser homologado e que, ao recusar fazê-lo, o tribunal a quo decidiu bem. Não obstante, não
deixaremos de nos pronunciar, ainda que brevemente, acerca da questão de saber
se, ao abrigo do plano de recuperação, a credora hipotecária fica numa situação
previsivelmente menos favorável do que aquela em que ficaria na ausência
daquele plano, nos termos previstos no artigo 216.º, n.º 1, al. a).
O tribunal a quo respondeu afirmativamente a esta
questão, com a seguinte argumentação:
“(…)
à credora Sociedade 2, SARL foi reconhecido um crédito no valor total de €
485.540,68 a título de capital e juros.
Assim,
e em bom rigor, a proposta do plano prevê um perdão global de cerca de 80,00%
apenas se propondo pagar € 97.060,00.
Acresce
que o crédito reclamado por esta credora é garantido por hipotecas registadas
sobre o imóvel que constitui o único bem da devedora.
É
certo que ainda poderá estar em causa o reconhecimento do direito de retenção,
o qual é incerto, mas tendo o imóvel o VP de € 75.095,43, sendo que o valor
patrimonial, de acordo com a experiência, é normalmente inferior ao valor real
do imóvel (no caso concreto até existe um credor que pretende adquirir o imóvel
por € 200.000,00), facilmente se conclui que com a liquidação dos bens a
credora será ressarcida em montante superior ao proposto no plano de
revitalização.
Logo,
temos de concluir que a posição da credora resulta previsivelmente menos
favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.”
A recorrente considera esta
argumentação “paupérrima” (conclusão
XV), criticando o tribunal a quo por
ter decidido “com base em meras suposições
acerca do valor comercial do imóvel” (conclusão XVI).
É verdade que o tribunal a quo decidiu com base numa suposição
acerca do valor de mercado do imóvel. Porém, não tinha alternativa, dado que
tal valor é desconhecido no processo. Como anteriormente referimos, esse
desconhecimento é inteiramente imputável à recorrente, que não indicou, nem
aquando da apresentação do requerimento inicial, nem no plano de recuperação, o
exacto valor do imóvel, como lhe competia.
Não obstante o exacto valor
de mercado do imóvel ser desconhecido, é lícito concluir, como fez o tribunal a quo, que, com o plano de recuperação,
a Sociedade 2, SARL fica numa situação previsivelmente menos favorável do que
aquela em que ficaria na ausência daquele plano.
De novo salientamos que os
créditos de que a Sociedade 2, SARL é titular se encontram garantidos por
hipoteca sobre o imóvel de que a recorrente é proprietária. Porque é a única
credora hipotecária e, por outro lado, o crédito reclamado por RC, alegadamente
garantido por direito de retenção sobre aquele imóvel, não se encontra
reconhecido por sentença transitada em julgado, a sua posição é, de um ponto de
vista estritamente jurídico, a mais sólida entre os credores da recorrente.
Contudo, aquilo que
verdadeiramente interessa para a ponderação que agora temos de fazer é a
probabilidade de os créditos da Sociedade 2, SARL obterem satisfação à custa do
imóvel hipotecado. Mais que a solidez jurídica, interessa-nos a solidez
económica dos créditos de que a Sociedade 2, SARL é titular.
O desconhecimento do exacto valor
de mercado do imóvel inviabiliza cálculos rigorosos. Ainda assim, importa
considerar, por um lado, que, no próprio plano de recuperação, se admite que
aquele valor possa atingir € 175.000, e, por outro, que a Sociedade 3, Lda. se
propôs comprar o imóvel pelo preço de € 200.000. Portanto, é muito provável que,
num cenário de insolvência da recorrente, a liquidação do património desta
permitisse, à Sociedade 2, SARL, obter a satisfação dos seus créditos, pelo
menos, num valor próximo daqueles. Já de acordo com o plano de recuperação, a Sociedade
2, SARL apenas veria os seus créditos satisfeitos no montante de € 97.060,00.
Parece, assim, lícito
concluir que, ao abrigo do plano de recuperação, a credora hipotecária fica
numa situação previsivelmente menos favorável do que aquela em que ficaria na
ausência daquele plano.
Concluindo, o recurso deverá
ser julgado improcedente.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da
recorrente.
Notifique.
*
Évora, 18.12.2023
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
1.º adjunto
2.ª adjunta