quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Acórdão da Relação de Évora de 24.09.2020

Processo n.º 972/15.0T8MMN.E1

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Sumário:

A cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante com algum dos fundamentos previstos no n.º 1 do artigo 243.º do CIRE não pode ser decretada oficiosamente pelo juiz, antes dependendo de requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor.

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RP e IP, casados entre si, recorreram do despacho, proferido em 01.06.2020, mediante o qual o tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 243.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do CIRE (diploma ao qual pertencem as normas doravante referenciadas sem menção da sua origem), determinou a imediata cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.

As conclusões do recurso são as seguintes:

1 – Os autos não contêm factualidade reveladora de prática dolosa ou gravemente negligente por parte dos insolventes.

2 – Com efeito, os insolventes não violaram dolosamente nenhuma das obrigações impostas no artigo 239.º do CIRE, mormente pelo previsto no n.º 4, alíneas a), b), c), d) e e).

3 – Os apelantes não praticaram actos lesivos da massa insolvente, dos direitos dos credores, do exercício, pelo fiduciário, da sua missão, a quem, ao longo do processo, têm prestado colaboração conforme as solicitações.

4 – Sai violado, com o despacho recorrido, o artigo 243.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do CIRE. Relativamente à al. a) do n.º 1, não existe qualquer sinal ou patologia que afecte os actos dos insolventes do modo que prescreve o despacho em causa.

5 – A decisão de cessação antecipada de exoneração do passivo restante é ilegal, por falta de fundamentação legal, e fere gravemente os direitos dos insolventes, sob protecção do CIRE e da Constituição da República.

6 – O despacho recorrido despreza as circunstâncias em que nos últimos 4 meses se viveu no mundo do judiciário, com dificuldades de presença em escritórios, de presença em tribunais, de presença fora de casa, sendo que sempre a lei do momento proibiu a socialização e a saída e apelou ao confinamento.

7 – A conclusão anterior assenta na desejável compreensão do tribunal a quo de que, à saída desse confinamento, mormente após a data de 6 de Junho de 2020, era possível, com maior e mais flexível adequação de meios, confrontar os insolventes com eventuais falhas no processo e providenciar pelo seu suprimento. O que, desde já, fizeram.

8 – A decisão recorrida imputa, à linha de comportamento dos insolventes, pecados e patologias que não cometeram e que não justificam a violência da cessação antecipada, agora decretada.

9 – Na motivação acima deste recurso ficaram devidamente esclarecidas algumas das situações (n.ºs 1 a 8).

10 – Carece de conteúdo a afirmação de falta de cooperação com o fiduciário, sendo manifestamente contraditada tal afirmação pela sequência cronológica de comunicações escritas, trocadas pelos recorrentes, desde 05.07.2017 até ao presente, com o fiduciário, com o seu mandatário e com o tribunal.

11 – Os apelantes sempre estiveram afastados do directo conhecimento das iniciativas visando a cessação antecipada da exoneração.

12 – Como se mostra pela cronologia das comunicações, tem de admitir-se que era lógico que os insolventes prestassem, como desejariam, as informações solicitadas. É factual que no dia 06.01.2020 o fiduciário comunicou com a insolvente IP, versando o tema da cópia da insolvência (do Externato S. Filipe) para evidenciar a qualificação fortuita da mesma e o fiduciário teve aí a oportunidade para alertar a insolvente para o procedimento em curso. O que não fez.

13 – Tendo sido violada a lei – artigos 239.º, alíneas a), b), c), d) e e), e 243.º do CIRE –, os recorrentes apelam para a revogação do despacho impugnado e a sua substituição por acórdão do TRE que reponha os seus direitos e o procedimento de exoneração do passivo restante, o que, com o douto suprimento, se espera.

14 – Assim se fazendo a costumada justiça.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido.

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A questão a resolver no presente recurso consiste em saber se se verificam os pressupostos da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.

Os factos relevantes para a análise desta questão são os seguintes:

1 – RP e IP, casados entre si, apresentaram-se à insolvência, nos termos dos artigos 18.º e seguintes, tendo ainda requerido a exoneração do passivo restante nos termos dos artigos 235.º e seguintes.

2 – Por sentença proferida em 13.05.2015, foi declarada a insolvência de ambos os requerentes.

3 – Em 09.07.2015, no decurso da assembleia de apreciação do relatório, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante.

4 – Mediante despacho proferido em 04.12.2018, foi fixado o valor do rendimento disponível a ser cedido ao fiduciário, nos termos do artigo 239.º, n.º 2, tendo-se, então, determinado que o período da cessão começaria a contar-se a partir da data do trânsito em julgado desse despacho.

5 – Em relatório apresentado em 12.12.2019, o fiduciário informou que os documentos que lhe foram remetidos pelos insolventes com vista à demonstração da sua situação económico-financeira não eram idóneos, nem suficientes, para esse fim.

6 – Em cumprimento de despacho proferido em 21.01.2020, o tribunal a quo notificou, em 23.01.2020, os insolventes, na pessoa do seu advogado, para, em 10 dias, demonstrarem ter remetido, ao fiduciário, a informação relevante para efeitos de acompanhamento do cumprimento das obrigações decorrentes da vigência do período da cessão, com a advertência de que, no seu silêncio e na ausência de cabal justificação para o incumprimento daquelas obrigações, o procedimento de exoneração do passivo restante seria cessado antecipadamente nos termos do artigo 243.º, n.º 3.

7 – Em 07.02.2020, o fiduciário comunicou ao tribunal a quo que “Não foi prestada qualquer informação por parte dos insolventes, nem efectuada qualquer transferência para a conta bancária da massa insolvente”.

8 – Em cumprimento de despacho proferido em 30.04.2020, o tribunal a quo notificou, em 04.05.2020, os insolventes e os credores, com cópia da comunicação do fiduciário de 07.02.2020, para, querendo, em 10 dias, se pronunciarem quanto à cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 243.º, n.º 3.

9 – Os insolventes não se pronunciaram.

10 – Em seguida, o tribunal a quo proferiu o despacho recorrido.

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O artigo 243.º, n.º 1, estabelece que, antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:

a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;

b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;

c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.

Para a interpretação do citado n.º 1, importa ainda considerar o disposto nos restantes números do mesmo artigo. O n.º 2 estabelece que o requerimento referido no n.º 1 apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova. O n.º 3 estabelece um regime especial quando o mesmo requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1. O n.º 4, por seu turno, assume particular importância, ao dispor que o juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência.

Resulta claramente do n.º 1 do artigo 243.º que a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante com algum dos fundamentos nele previstos depende de requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor. Requerimento esse cuja apresentação está sujeita a um prazo e com o qual deve ser logo oferecida a respectiva prova, nos termos do n.º 2. Se, ainda assim, dúvidas restassem de que a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante ao abrigo do n.º 1 depende da iniciativa de algum dos referidos sujeitos processuais, dissipar-se-iam mediante o cotejo dessa norma com o n.º 4. Aqui sim, estabelece-se que, se o fundamento for a integral satisfação de todos os créditos sobre a insolvência, a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante pode ser declarada oficiosamente pelo juiz. O n.º 1 não prevê tal possibilidade e, em vez disso, exige expressamente a apresentação de requerimento de cessação por algum dos sujeitos processuais nele referidos.

No caso dos autos, nenhum dos sujeitos processuais referidos no n.º 1 do artigo 243.º requereu a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante com o fundamento em que o despacho recorrido se baseou para a decretar. No relatório que apresentou em 12.12.2019, o fiduciário limitou-se a prestar informação ao tribunal a quo, não tendo requerido a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. Na realidade, foi o próprio tribunal a quo que, na sequência da referida comunicação do fiduciário, desencadeou oficiosamente a tramitação que culminou na prolação do despacho recorrido. Como vimos, não podia fazê-lo.

O despacho recorrido viola, assim, o disposto no n.º 1 do artigo 243.º, impondo-se a sua revogação, com o consequente prosseguimento do período da cessão. Fica, pelo exposto, prejudicado o conhecimento das restantes questões que se suscitavam neste recurso.

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Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido, com o consequente prosseguimento do período da cessão.

Custas a cargo da massa insolvente.

Notifique.

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Évora, 24 de Setembro de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto

 

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