quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 14.09.2023

Processo n.º 331/10.1T2ODM.E1

Insolvente: M, Lda.

Administrador da insolvência: (…)

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Sumário:

1 – O artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, com a redacção resultante da Lei n.º 9/2022, de 11.01, é aplicável à fixação da remuneração do administrador da insolvência que tenha lugar após a entrada em vigor desta lei, ainda que como contrapartida pelo exercício de funções desempenhadas anteriormente.

2 – A majoração estabelecida no n.º 7 daquele artigo deve ser feita tendo por base a percentagem do valor dos créditos reclamados e admitidos que obtém satisfação.

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O administrador da insolvência interpôs recurso de apelação do despacho que fixou em € 26.759,24 (IVA incluído) o valor da sua remuneração variável, tendo apresentado as seguintes conclusões:

1. Por despacho de 13.03.2023, notificado ao aqui Recorrente, o Tribunal a quo proferiu decisão sobre a remuneração variável a atribuir na qualidade de administrador de insolvência.

2. Salvo melhor entendimento, o Recorrente não acompanha a fórmula de cálculo utilizada pelo Tribunal a quo.

3. Isto porque, actualmente, o regime que a lei prevê para a remuneração do administrador de insolvência encontra-se publicado e aprovado pela Lei n.º 9/2022, de 11.01.

4. Na verdade, no despacho que ora se recorre, o regime aplicado pelo Tribunal a quo já não se encontra em vigor e está revogado.

5. O regime transitório do diploma legal, previsto no número 1 do artigo 10.º da Lei n.º 9/2022, de 11.01 refere ainda que “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a presente lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor.”

6. É entendimento do Recorrente que deveria ser aplicado ao caso dos autos o regime actual do Estatuto do Administrador Judicial, designadamente a Lei n.º 9/2022, de 11.01.

7. No regime actual, a remuneração do administrador de insolvência é composta por uma componente fixa no valor de € 2.000,00, nos termos do art.º 23.º, n.º 1 do EAJ e por uma componente variável, nos termos do art.º 23.º, n.º 4 do EAJ.

8. No caso dos processos de insolvência que prosseguem para a liquidação do activo (como foi o caso vertente), a remuneração variável corresponde a 5% do resultado da liquidação da massa, conforme o art.º 23.º, n.º 4, 2 alínea b) do EAJ.

9. O resultado da liquidação é o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas da massa insolvente, com excepção da remuneração fixa e das custas de processos judiciais pendentes na data da declaração da insolvência (cfr. art.º 23.º, n.º 6 do EAJ).

10. Acrescendo à remuneração variável uma majoração de 5% do montante dos créditos satisfeitos (nos termos do art.º 23.º, n.º 7 do EAJ).

11. Num primeiro momento, importa apurar o resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do actual número 6 do artigo 23.º do EAJ, no valor de € 790.274,09.

12. Assim, nos termos da alínea b) do número 4 do artigo 23.º do EAJ, o montante da remuneração variável atribuída ao administrador de insolvência corresponde a 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, no qual obtemos o valor de € 39.513,70 + IVA à taxa de 23%.

13. Ou seja: a 1.ª parcela sobre a remuneração variável resulta no montante de € 48.601,85.

14. Relativamente ao cálculo da 2.ª parcela, estabelecida pelo número 7 do art.º 23.º do EAJ, o montante dos créditos satisfeitos é de € 739.212,23.

15. E é sobre este valor que se aplicará o cálculo da majoração de 5%.

16. Ou seja, do cálculo aritmético da majoração prevista no número 7 do artigo 23.º do EAJ, resulta o montante de € 36.960,61, o qual acresce IVA à taxa de 23%.

17. A interpretação defendida no douto despacho de que se recorre, padece de um erro de cálculo, de interpretação e aplicação da lei, uma vez que a lei no qual se fundamenta encontra-se revogada.

18. A norma em vigor é clara no que diz respeito à majoração aplicável de 5% do montante dos créditos satisfeitos não admitindo o elemento literal qualquer outra interpretação.

19. Esta é, aliás, interpretação defendida pelo MM.º Juiz de Direito Nuno Marcelo da Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo – in A remuneração do Administrador Judicial e a sua apreciação depois de 2022, Data Venia, revista digital, ano 10, n.º 13, Abril 2022, págs. 67 a 110.

20. No que diz respeito às diferenças entre o regime actual e o regime anterior (o qual, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo aplicou indevidamente ao caso dos autos), o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.10.2022 refere expressamente que o artigo 23.º do EAJ deixou de remeter para a Portaria, passando a regular ele próprio o modo de cálculo.

21. É do entendimento do Recorrente que o despacho proferido pelo Tribunal a quo contém uma fórmula de cálculo revogada e, por isso, padece de um erro na aplicação da lei.

22. A redacção dada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, ao art.º 23º do Estatuto do Administrador Judicial, no tocante à forma de cálculo da remuneração variável, é de aplicação imediata nos processos pendentes, pelo que sempre que a fixação da remuneração variável ocorra após a data de entrada em vigor do diploma, deve ser calculada nos termos da nova redacção do mesmo (conforme entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão proferido em 24.01.2023).

23. Da conjugação da 1.ª e 2.ª parcela de cálculo podemos concluir que o montante total de € 94.063,41 é o valor correspondente à remuneração variável do administrador de insolvência.

24. Deve o cálculo realizado pelo administrador de insolvência, constante do requerimento apresentado em 02.03.2023, ser deferido seguindo assim a forma de cálculo actual e prevista no Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei n.º 9/2022, de 11/01.

25. Nos termos expostos, deverá ser totalmente revogado o despacho de que ora se recorre e, em sua substituição, ser proferido outro que fixe a remuneração variável do administrador de insolvência em € 94.063,41.

O Ministério Público apresentou contra-alegações, aceitando que o regime aplicável à fixação da remuneração do administrador da insolvência é o actual, constante do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) com a redacção introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11.01, mas sustentando que a majoração prevista no n.º 7 daquele artigo deverá ser feita com base, não no montante disponível para a satisfação dos créditos reclamados e admitidos, mas sim no grau em que estes créditos serão satisfeitos. Concluiu que o recurso deverá ser julgado parcialmente procedente, fixando-se em € 76.647,08 (IVA incluído) a remuneração variável a pagar ao recorrente.

O recurso foi admitido.

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Questões a resolver:

1 – Qual é o regime jurídico aplicável ao cálculo da remuneração do recorrente;

2 – Como deverá ser calculada a parcela da remuneração prevista no n.º 4, al. b), do artigo 23.º do EAJ;

3 – Como deverá ser feita a majoração prevista no n.º 7 do mesmo artigo.

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Factos relevantes para a decisão do recurso:

1 – O recorrente foi nomeado administrador da insolvência na sentença que decretou esta última, proferida em 13.12.2010, e vem exercendo tais funções desde então;

2 – O resultado da liquidação da massa insolvente é de € 790.274,09;

3 – O valor dos créditos reclamados e admitidos é de € 1.198.139,13;

4 – O montante dos créditos reclamados e admitidos que obtém satisfação é de € 739.212,23;

5 – O despacho recorrido foi proferido em 11.03.2023.

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O tribunal a quo calculou a remuneração a que o recorrente tem direito com base no regime anterior à Lei n.º 9/2022, de 11.01, ignorando o disposto no n.º 1 do artigo 10.º desta lei, segundo o qual, sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a mesma lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor. O disposto nos n.ºs 2 a 4 daquele artigo não releva para a resolução da questão que nos ocupa, pelo que, nos termos do n.º 1 e tendo em conta a data em que o despacho recorrido foi proferido, a remuneração do recorrente deveria ter sido calculada com base no regime estabelecido no artigo 23.º do EAJ com a redacção introduzida pela Lei n.º 9/2022. Portanto, no que concerne ao regime jurídico aplicável, o recorrente tem razão.

Resulta da al. b) do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ que o administrador da insolvência aufere uma remuneração variável correspondente a 5% do resultado da liquidação da massa insolvente. O n.º 6 do mesmo artigo dispõe que, para efeitos do n.º 4, se considera resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa massa, com excepção da remuneração referida no n.º 1 (remuneração fixa) e das custas de processos judiciais pendentes na data da declaração de insolvência.

No caso dos autos, o resultado da liquidação da massa insolvente é de € 790.274,09, pelo que o valor desta parte da remuneração do recorrente é de € 39.513,70, correspondente a 5% daquele resultado, a que acrescerá IVA à taxa legal.

A questão seguinte prende-se com a interpretação do n.º 7 do artigo 23.º do EAJ. Esta norma estabelece, além do mais, que o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos.

O montante da retribuição que o recorrente a este título pretende (€ 36.960,61 acrescido de IVA) pressupõe que a referida majoração seja calculada sobre o montante dos créditos reclamados e admitidos que será satisfeito, sem ter em conta o grau de satisfação desses créditos.

A redacção do n.º 7 do artigo 23.º do EAJ não é feliz. Estabelece-se que a majoração se faz em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, mas, logo a seguir, que a majoração deverá ser de 5% do montante dos créditos satisfeitos. Trata-se de realidades diferentes. O grau de satisfação dos créditos é evidenciado pelo confronto entre o montante dos créditos reclamados e admitidos e a parte desses créditos que obtém satisfação. O montante dos créditos satisfeitos é apenas um dos termos da relação que exprime o grau de satisfação dos créditos. Daí os problemas interpretativos que aquela norma vem suscitando.

O entendimento segundo o qual os 5% de majoração devem ser calculados directamente sobre o montante em que os créditos são satisfeitos implica considerar não escrito o trecho da norma que estabelece que a retribuição do administrador da insolvência é majorada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos. Majorar-se esta parcela da retribuição variável em função do montante em que os créditos reclamados e admitidos são satisfeitos, sem mais, implicaria a negação do critério do grau de satisfação desses créditos. O resultado da majoração seria sempre o mesmo, independentemente de os créditos serem satisfeitos em 100%, em 50%, em 10%, ou em qualquer outra proporção.

Daí que tal interpretação do n.º 7 do artigo 23.º do EAJ deva ser afastada. A interpretação correcta desta norma é aquela segundo a qual a majoração deve ser feita tendo por base a percentagem do valor dos créditos reclamados e admitidos que obtém satisfação. É este o entendimento da jurisprudência praticamente unânime. Nomeadamente, assim se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.04.2023 (Maria Olinda Garcia) e vem sendo decidido unanimemente no Tribunal da Relação de Évora – cfr acórdãos de 29.09.2022 (Tomé de Carvalho), 15.12.2022 (Maria Domingas Simões), 02.03.2023 (Maria Domingas Simões), 30.03.2023 (Isabel de Matos Peixoto Imaginário), 30.03.2023 (Francisco Matos), 30.03.2023 (Tomé de Carvalho), 20.04.2023 (Anabela Luna de Carvalho), 20.04.2023 (Maria Domingas Simões) e 11.05.2023 (José Manuel Barata).

Em harmonia com esta interpretação do n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, há que calcular, em primeiro lugar, a percentagem em que os créditos reclamados e admitidos serão satisfeitos. O montante total desses créditos é de € 1.198.139,13. O montante em que os mesmos créditos obtêm satisfação é de € 739.212,23. Dividindo € 739.212,23 por € 1.198.139,13, obtemos o resultado (arredondado) de 61,7%. É nesta percentagem que é possível satisfazer os créditos reclamados e admitidos.

Sendo assim, a retribuição variável resultante da majoração estabelecida no n.º 7 do artigo 23.º do EAJ cifra-se em € 22.804,70 (€ 739.212,23 x 61,7% x 5%). O valor total da retribuição variável a que o recorrente tem direito é de € 62.318,40 (€ 39.513,70 + € 22.804,70). Acresce IVA à taxa legal, de onde resulta o montante de € 76.651,63.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso parcialmente procedente, fixando-se a retribuição variável a que o recorrente tem direito em € 76.651,63, valor que já inclui IVA à taxa legal.

Custas a cargo do recorrente, na proporção do seu decaimento.

Notifique.

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Évora, 14.09.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto


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