Processo n.º 3846/15.1T8STB-A.E1
*
Sumário:
1 – O aval gera uma obrigação
independente e autónoma, com uma função de garantia da obrigação cartular do avalizado.
2 – O disposto no n.º 4 do artigo 217.º do CIRE é aplicável ao processo
especial de revitalização por via da remissão operada pelo n.º 7 do artigo
17.º-F do mesmo código.
3 – A aprovação e
homologação de um plano de recuperação em processo especial de revitalização
não afecta os avales prestados por terceiros em livranças subscritas pela
sociedade titular da empresa alvo daquele processo.
*
AO e CO recorrem do despacho que
indeferiu liminarmente a oposição, por embargos, que deduziram à execução para
pagamento de quantia certa contra si instaurada por Banco, S.A., formulando as
seguintes conclusões:
1 – Veio o Banco, S.A.,
apresentar acção executiva contra os ora Recorrentes, fundamentando a sua
pretensão, em síntese, na existência de duas livranças de que a Exequente é
dona e legítima portadora, subscritas pela sociedade A - Sociedade de
Construções, S.A. (de ora em diante, a “Sociedade”) e avalizadas pelos ora
Executados. Apresentaram os Recorrentes a competente oposição à execução,
alegando, em síntese, a inexigibilidade da dívida exequenda, em virtude do
plano de recuperação aprovado e homologado da Sociedade. O Tribunal a quo indeferiu liminarmente a oposição
apresentada, não podendo, contudo, conformar-se os Recorrentes com o
entendimento nela plasmado – não repercussão das medidas previstas no plano de
recuperação da Sociedade nos avalistas da Sociedade, atenta a autonomia e
independência do aval.
Senão vejamos,
2 – A Sociedade apresentou-se a
PER, tendo o Banco, S.A., reclamado os seus créditos, que foram reconhecidos, e
participado nas negociações, terminando o processo com a apresentação de um
plano de recuperação, que veio a ser aprovado e homologado, com sentença
transitada em julgado,
Ora,
3 – Incidindo a presente
execução sobre os avalistas de uma dívida cuja concreta forma de pagamento está
expressamente prevista num plano de recuperação aprovado, homologado e
transitado em julgado, importará analisar os efeitos de tal plano de
recuperação, nomeadamente nas relações estabelecidas entre o Banco, S.A., e os avalistas
dos seus créditos.
4 – Estatui o n.º 10 do artigo
17.º - F do CIRE que “a decisão de homologação vincula a empresa e os credores,
mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações
(…).” – o plano tem, portanto, carácter vinculativo para todos os credores,
tenham ou não participado nas negociações.
5 – Assim, verificados todos os
requisitos legalmente exigidos para a aprovação do Plano, bem como o seu
posterior controlo jurisdicional, a lei prevê expressamente a imposição das
alterações previstas no Plano aos créditos a todos credores, ainda que contra a
vontade expressa destes, verificando-se, desta forma, um verdadeiro suprimento
da vontade de todos os credores.
6 – Entendimento diferente não
encontra qualquer suporte legal nem nas concretas normas do CIRE que regem este
tipo de procedimento, nem tão pouco no próprio processo especial de
revitalização, holisticamente considerado, sendo caso para questionar, a
admitir-se entendimento diferente, qual o alcance prático do n.º 10 do artigo
17.º – F do CIRE?
7 – Ora, não obstante tal
regime, veio o Banco, S.A., apresentar a presente execução contra os garantes
de uma obrigação abrangida por um plano de recuperação, ao arrepio não só da
letra da lei, mas, porventura mais relevante, ao arrepio das próprias
negociações em que participou!
8 – Mas também, e ainda, ao
arrepio dos mais elementares e basilares princípios transversais ao nosso
ordenamento jurídico, sendo de destacar, pelo relevo que têm in casu, os princípios da boa-fé, da
lealdade, da segurança jurídica e da confiança. Em concretização dos mesmos,
dispõe o n.º 10 do artigo 17.º-D, do CIRE, que “durante as negociações os
intervenientes devem atuar de acordo com os princípios orientadores aprovados
pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro”.
Estabelecendo-se, no segundo dos referidos princípios que “durante todo o
procedimento, as partes devem actuar de boa-fé, na busca de uma solução construtiva
que satisfaça todos os envolvidos.”
9 – Temos, assim, a boa-fé
expressamente prevista como linha orientadora da conduta de todos os
intervenientes processuais ao longo de todo o procedimento, no sentido da
obtenção de uma solução que satisfaça todos os envolvidos.
10 – Como já referido supra, o Banco,
S.A., reclamou os seus créditos, manifestou a intenção de participar nas
negociações e participou nas negociações do processo especial de revitalização
da Sociedade. O que porventura não logrou foi obter o resultado que pretendia.
E, como não o fez, veio agora cobrar coercivamente um crédito abrangido por um
plano de recuperação – vinculativo para o BCP.
11 – Efectivamente, e apesar de
originariamente a obrigação exequenda ser da Sociedade, a mesma foi avalizada
pelos ora Recorrentes, conforme alegado pelo Banco, S.A., e, de resto, assumido
por aqueles. Sucede que os avales prestados não poderiam ter sido accionados,
já que inexiste um qualquer incumprimento por parte da sociedade.
12 – De facto, constituindo o
aval o acto pelo qual um terceiro garante o pagamento de uma letra ou livrança
por parte de um dos seus subscritores (conforme artigos 30.º, 31.º, 32.º e 77.º
da (LULL), o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele
afiançada, conforme expressamente estatuído no referido artigo 32.º da LULL.
13 – A responsabilidade do
avalista é, de resto, solidária com a do obrigado principal, sendo que, se por
um lado, tal solidariedade implica que o credor possa exigir a totalidade da
prestação de qualquer um dos credores (devedor principal ou avalistas), não
poderá também deixar de implicar uma identidade e unicidade da prestação – a
obrigação assumida pelo devedor principal e avalizada pelo avalista é apenas
uma, e é una.
14 – Pelo que, alterada a forma
de pagamento da obrigação relativamente ao obrigado principal, não poderá
deixar de considerar-se tal obrigação alterada também relativamente os
avalistas. Transmudada que foi a obrigação principal pelo plano de recuperação
(plano vinculativo para o Banco, S.A., como já referido), transmudada estará
também, por maioria de razão, a obrigação dos avalistas que garantiram o
pagamento de tal dívida.
15 – Pelo que permitir a
execução dos ora Recorrentes, como fez o Tribunal a quo, por força dos avales prestados a uma obrigação abrangida por
um plano de recuperação, inexistindo qualquer incumprimento por parte da
Sociedade, constitui uma violação expressa do n.º 10 do artigo 17º – F do CIRE.
Até porque, como já ficou referido supra, inexistindo incumprimento (que
inexiste), a dívida exequenda é inexigível – tanto à Sociedade como aos seus
avalistas.
16 – De facto, estranho seria
que, expressamente imposta a boa-fé no período das negociações a todos os
intervenientes, vigorando, ainda, um princípio geral de não hostilidade, tanto
relativamente ao devedor, como ainda relativamente aos eventuais avalistas das
dívidas da Sociedade, tais linhas orientadoras se extinguissem com a aprovação
e homologação do plano de recuperação.
17 – Assim, para além de
constituir violação expressa do disposto no artigo 17.º-F, n.º 6, não é
coerente com a recuperação da Sociedade, nem tão pouco com a participação nas
negociações pelo Banco, S.A., a instauração de execuções movidas contra os
avalistas.
18 – Assim e face a tudo o que
ficou exposto, o Banco, S.A., não podia como fez, executar os avalistas do seu
crédito, ignorando as negociações e o plano aprovado e homologado, por tal
constituir, desde logo, uma violação clara e ostensiva tanto do artigo 17.º -
F, n.º 10 do CIRE, bem assim como do princípio da boa-fé, bem como duma
interpretação holística e sistemática do próprio Processo especial de
revitalização (que se impõe). Neste sentido, de referir a posição sufragada por
LUÍS MARTINS, in https://www.luismmartins.pt/blog, bem assim como pelo Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, de 04-12-2007 (proc. n.º 07B4176) ou pelo Acórdão
do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24-04-2012 (proc. n.º 1248/10.5TBBCL-A.G2),
ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
19 – Quanto ao n.º 4 do artigo
217.º do CIRE, importa sublinhar que o regime legal do PER, constante dos
artigos 17.º-A a 17.º- I, não contém regra idêntica, antes resultando claro e
inequívoco que os normativos referentes ao processo de insolvência apenas serão
aplicáveis ao PER se não se verificar uma incompatibilidade com a natureza do
mesmo (nos termos do n.º 3 do artigo 17.º-A), mais se exigindo, mesmo nas
remissões pontuais existentes, um esforço de adaptação.
20 – Uma nota específica para a
remissão constante do n.º 7 do artigo 17.º-F que, para além de impor um esforço
de adaptação das normas para as quais remete (e das quais não consta o
mencionado n.º 4 do artigo 217.º), delimita, expressa e objectivamente, a
remissão efectuada.
21 – Temos, assim, atenta a
necessidade de aferir da compatibilidade de regimes e do esforço de adaptação
legalmente imposto, expressamente excluído da remissão efectuada no n.º 7 do
artigo 17.º-F o artigo 217.º do CIRE, mais concretamente, o seu n.º 4. De
resto, contemplando tal normativo um regime excepcional face ao regime geral da
acessoriedade das garantias, fica definitivamente afastada a sua eventual
aplicação analógica ao processo de revitalização.
22 – Admitir a aplicabilidade do
n.º 4 do artigo 217.º ao PER, bem assim como, consequentemente, a possibilidade
de execução dos avais prestados a uma sociedade em PER, tanto no período das
negociações como posteriormente, ofende, assim, frontalmente, o novo paradigma
que esteve subjacente à previsão do PER no ordenamento jurídico português.
23 – Temos, assim, que será
inaplicável ao PER o n.º 4 do artigo 217.º, só assim se logrando obter uma
interpretação que permita alcançar os fins do PER, de forma a que sejam
alcançados os objectivos gizados na Resolução do Conselho de Ministros n.º
43/2011, de 25/10.
24 – Nem de outra forma poderia
ser, até porque importará sublinhar o facto de o Título IX do CIRE se referir a
planos de insolvência e não a planos de recuperação, sendo que, mesmo em sede
de insolvência, a possibilidade de apresentação de dois tipos de planos (plano
de insolvência e plano de recuperação) implica, de per si, adaptações de
regime, sendo que um plano de recuperação em insolvência não poderá ser
confundido com um plano de recuperação em PER: se o primeiro é ainda uma
expressão da liquidação universal em que consiste o processo de insolvência, em
ordem à satisfação dos credores, o segundo traduz já o novo paradigma
introduzido com a última alteração ao CIRE, visando, primordialmente, a
recuperação do devedor.
25 – Assim, e face a tudo o que
ficou exposto, esteve mal o tribunal a
quo ao indeferir liminarmente os embargos deduzidos, pois que não assistia
ao Banco, S.A., o direito de apresentar, como fez, a presente execução depois
de homologado o plano de recuperação, na medida em que, através da mesma, se
pretende o ressarcimento de uma dívida objecto de alteração num plano de recuperação
aprovado e homologado, alteração que se repercute inevitável e necessariamente
na relação estabelecida entre o Banco, S.A., e os avalistas da Sociedade, ora
Recorrentes.
Nestes termos e nos demais de
Direito, deve o presente recurso ser considerado totalmente procedente,
revogando-se, consequentemente, a sentença que indeferiu liminarmente os
embargos deduzidos, devendo tal sentença ser substituída por uma que os admita
liminarmente, assim se fazendo a habitual Justiça.
O recurso foi admitido.
Tendo
em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e
delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das
questões cujo conhecimento oficioso se imponha, a única questão a resolver consiste
em saber se a aprovação e homologação de um plano de recuperação em processo
especial de revitalização produz efeitos relativamente ao aval prestado por
terceiro em livrança subscrita pela sociedade titular da empresa alvo daquele
processo.
Conhecendo:
Os
factos em que o despacho recorrido se baseou – factos esses que os recorrentes
não põem em causa – são os seguintes:
1 – A
execução baseia-se em duas livranças:
- Livrança
preenchida pela importância de € 364.111,71, em que figura como subscritora a
sociedade “A - Sociedade de Construções, SA”, no verso da qual os embargantes
apuseram a sua assinatura, ambas encimadas pela expressão “Bom por aval à firma
subscritora”;
- Livrança
preenchida pela importância de € 11.544,63, em que figura como subscritora a
sociedade “A - Sociedade de Construções, SA”, no verso da qual os embargantes
apuseram a sua assinatura, ambas encimadas pela expressão “Bom por aval à firma
subscritora”;
2 – A
sociedade referida no número anterior requereu processo especial de revitalização,
tendo sido nomeado administrador judicial provisório e homologado o plano de recuperação.
Entendeu-se,
no despacho recorrido, que a aprovação e homologação, em processo especial de
revitalização, do plano de recuperação da empresa de que é titular a sociedade
subscritora das livranças não põe em causa a exigibilidade do aval prestado
pelos recorrentes.
Os
argumentos que os recorrentes opõem a este entendimento são, em síntese e por
ordem lógica, os seguintes:
1 – A solidariedade da
responsabilidade do avalista com a do avalizado implica “uma identidade e
unicidade da prestação – a obrigação assumida pelo devedor principal e
avalizada pelo avalista é apenas uma, e é una”;
2 – Consequentemente, alterada a
forma de pagamento da obrigação relativamente ao obrigado principal, não poderá
deixar de considerar-se tal obrigação alterada também relativamente aos
avalistas;
3 – Não
é admissível a propositura de uma execução contra os avalistas de uma dívida
que não foi incumprida pela sociedade subscritora das livranças e cuja concreta forma de
pagamento está expressamente prevista num plano de recuperação aprovado e
homologado por decisão transitada em julgado;
4 –
Resulta do n.º 10 do artigo 17.º-F do CIRE que o plano de recuperação vincula todos os
credores, tenham ou não participado nas negociações; as alterações aos créditos
previstas no plano de recuperação impõem-se a todos os credores, ainda
que contra a vontade expressa destes; entendimento diferente retiraria alcance
prático àquela norma;
5 – Ao
propor acção executiva, com vista a cobrar coercivamente um crédito abrangido pelo plano
de recuperação, após ter participado nas negociações que estiveram na
origem deste último, o recorrido violou os mais elementares e basilares princípios
transversais ao nosso ordenamento jurídico, como os da boa-fé, da lealdade, da
segurança jurídica e da confiança, aos quais estava obrigada, também, por via
do disposto no n.º 10 do artigo 17.º -D, do CIRE;
6 – A propositura de execução
contra os avalistas não é coerente com a recuperação da sociedade, nem com a
participação do recorrido nas negociações;
7 – Não é aplicável o regime
estabelecido no n.º 4 do artigo 217.º do CIRE porquanto: a) O regime jurídico do
processo especial de revitalização não contém norma idêntica; b) A remissão
operada pelo n.º 7 do artigo 17.º-F do CIRE não abrange o n.º 4 do artigo
217.º; c) O regime estabelecido por esta última norma tem natureza excepcional
face ao regime geral da acessoriedade das garantias, pelo que não é admissível
a sua aplicação ao processo especial de revitalização por analogia; d) As
normas do processo de insolvência apenas são aplicáveis ao processo especial de
revitalização se forem compatíveis com a sua natureza; e) Mesmo quando
aplicáveis ao processo especial de revitalização por remissão, as normas do
processo de insolvência devem ser devidamente adaptadas; f) Aplicar o regime do
n.º 4 do artigo 217.º do processo especial de revitalização ofende o novo paradigma
que esteve subjacente à consagração deste último no ordenamento jurídico
português, em que se visa, primordialmente, a recuperação do devedor.
Analisemos estes argumentos.
1.º argumento:
O artigo 47.º da Lei Uniforme
Relativa a Letras e Livranças (doravante LULL) estabelece, além do mais, que os
sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos
solidariamente responsáveis para com o portador e que este último tem o direito
de accionar todas essas pessoas, individual ou colectivamente, sem estar
adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram. Esta norma é aplicável à
livrança por força do artigo 77.º da LULL.
Ao contrário do que os
recorrentes sustentam, não decorre deste regime que a obrigação assumida pelo
avalista e pelo avalizado seja uma única e a mesma. As obrigações do avalista e
do avalizado são distintas. Como resulta, nomeadamente, do artigo 32.º da LULL,
de acordo com o qual a obrigação do avalista se mantém mesmo no caso de a obrigação
do avalizado ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma, o aval
gera uma obrigação independente e autónoma, com uma função de garantia da obrigação cartular do
avalizado[1].
Não há uma única obrigação cartular, como os recorrentes pretendem, mas duas: a
do avalista e a do avalizado. “O avalista
não é co-autor da operação que garante. (…) O avalista, enquanto tal, é
sempre um terceiro. Está de fora da
operação cambiária que avaliza, ainda que seja já subscritor cambiário.”[2]
2.º argumento:
Sendo errado o seu pressuposto
lógico, cai por terra o argumento dos recorrentes acima enunciado em segundo
lugar. Uma alteração da obrigação cartular do avalizado não afecta a do
avalista, precisamente devido aos já mencionados atributos da independência e
da autonomia desta última.
3.º argumento:
Como acabamos de ver, o crédito
do recorrido contra os recorrentes, resultante dos avales por estes dados, é
diverso do crédito cambiário de que o recorrido é titular contra a sociedade
subscritora das livranças, resultante dessa subscrição. O crédito resultante dos
avales também é, obviamente, distinto da relação subjacente, de que são
sujeitos a sociedade subscritora das livranças e o recorrido, que constitui a
causa da subscrição das mesmas livranças. Ora, o plano de recuperação apenas teve
por objecto créditos contra a sociedade, não contra terceiros, nomeadamente
avalistas desta. O crédito do recorrido contra os recorrentes, independente e
autónomo, não está abrangido pelo plano de recuperação, nem é por ele afectado.
4.º argumento:
Tal como os recorrentes referem,
o n.º
10 do artigo 17.º-F do CIRE estabelece que o plano de recuperação vincula todos os
credores, tenham ou não participado nas negociações. Contudo, o plano de
recuperação respeita unicamente aos créditos contra a empresa alvo do processo
especial de revitalização, não aos créditos contra terceiros, nomeadamente
avalistas de obrigações cartulares do proprietário daquela empresa, que, no
caso dos autos, é a sociedade “A - Sociedade de Construções, SA”. Por
outras palavras, os credores estão vinculados ao plano de recuperação apenas no
domínio de aplicação deste último, que se circunscreve aos créditos sobre a
empresa cuja revitalização se pretende. Ficam, logicamente, fora do âmbito de
aplicação do plano de recuperação da empresa os direitos dos credores desta
última contra terceiros, nomeadamente avalistas de obrigações cambiárias da
mesma empresa. Daí não resulta qualquer diminuição do alcance prático do
disposto no n.º 10 do artigo 17.º-F do CIRE. Estranho seria, sim, que do plano
de recuperação de uma empresa resultassem efeitos relativamente a direitos de
crédito contra pessoas estranhas a esta última, salvaguardando, sem razão
justificativa, os patrimónios dessas pessoas da possibilidade de cobrança dos
referidos créditos. Ou seja, estaríamos perante um enriquecimento sem causa
dessas mesmas pessoas.
5.º
argumento:
Como
vimos anteriormente, o crédito cuja satisfação o recorrido pretende através da
propositura da acção executiva é aquele que para si resulta da prestação de
aval por parte dos executados e ora recorrentes, não aquele de que é titular
contra a sociedade “A
- Sociedade de Construções, SA”. Ora, apenas este último foi abrangido pelo
plano de recuperação, como não podia deixar de ser. Logo, ao propor a acção
executiva, o recorrido não violou qualquer dos princípios invocados pelos
recorrentes.
6.º
argumento:
Os
recorrentes afirmam que a propositura da acção executiva contra si não é coerente com a
recuperação da sociedade, nem com a participação do recorrido nas negociações,
mas sem razão. Sendo os bens pessoais dos recorrentes que respondem pelo
crédito exequendo, a penhora e venda desses bens na execução em nada prejudica
o objectivo de recuperação da empresa e em nada contradiz o propósito da
participação do recorrido nas negociações do plano de recuperação desta última.
Mais uma vez, os recorrentes confundem indevidamente os seus patrimónios e os
seus interesses pessoais com o património e o interesse da empresa cuja
recuperação se pretende através do processo especial de revitalização.
7.º
argumento:
O n.º 4 do artigo 217.º do CIRE
estabelece que as providências previstas no plano de insolvência com incidência
no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos
credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da
obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de
regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele
os seus direitos. O tribunal a quo
aplicou esta norma por analogia para fundamentar o indeferimento liminar da
oposição à execução. Analisemos as objecções que os recorrentes fazem a tal
aplicação.
É indiscutível que o regime
específico do processo especial de revitalização, constante dos artigos 17.º-A
a 17.º-J do CIRE, não contém norma idêntica à do n.º 4 do artigo 217.º. O
próprio despacho recorrido o diz expressamente, constituindo essa omissão um
dos pressupostos da aplicação desta norma por analogia.
Os recorrentes sustentam que a
remissão operada pelo n.º 7 do artigo 17.º-F do CIRE não abrange o n.º 4 do
artigo 217.º. Entendeu-se implicitamente o mesmo no despacho recorrido, pois,
se assim não fosse, ou seja, se neste se tivesse entendido que aquela remissão
abrange o n.º 4 do artigo 217.º, seria desnecessário o recurso à analogia. Discordamos
deste entendimento. O n.º 7 do artigo 17.º-F manda aplicar ao plano de
recuperação, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX,
“em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e
nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º”. A esta lista, o n.º 12 do artigo 17.º-F
acrescenta o n.º 1 do artigo 218.º, que também integra o título IX. A remissão
operada pelo n.º 7 do artigo 17.º-F é, pois, para todas as normas contidas no
título IX. Em face da redacção da norma remissiva, não é possível interpretação
diversa, não obstante a desnecessária e dúbia menção complementar de algumas
normas já abrangidas pela remissão, a que o mencionado n.º 12 ainda acrescentou
outra. Ora, um dos preceitos que integram o título IX é o n.º 4 do artigo
217.º, o qual é, assim, aplicável ao plano de recuperação, não por analogia,
mas por remissão.
Sendo a aplicação do disposto no
n.º 4 do artigo 217.º do CIRE ao caso dos autos por remissão e não por
analogia, é irrelevante a questão da qualificação dessa norma como excepcional,
já que apenas na segunda hipótese essa alegada natureza excepcional obstaria à
aplicação da mesma norma por via do disposto no artigo 11.º do Código Civil.
Independentemente disso, está por demonstrar a natureza excepcional de qualquer
dos segmentos da norma em causa, em particular do primeiro, que é aquele que
nos interessa.
Os recorrentes argumentam que as
normas do processo de insolvência apenas são aplicáveis ao processo especial de
revitalização se forem compatíveis com a sua natureza. Assim formulada, em
termos genéricos, é questão sem interesse para a decisão do caso dos autos. A
norma do processo de insolvência cuja aplicabilidade ao processo especial de
revitalização é posta em causa pelos recorrentes (n.º 4 do artigo 217.º do
CIRE) é objecto de remissão expressa (pois integra o título IX) por parte do
n.º 7 do artigo 17.º-F, pelo que a questão da sua aplicabilidade ao caso dos
autos fica resolvida por essa via. De qualquer forma, inexiste
incompatibilidade entre o disposto no n.º 4 do artigo 217.º do CIRE e a
natureza do processo especial de revitalização. Ao contrário do que os
recorrentes sustentam, a aplicação dessa norma ao processo especial de
revitalização não ofende as finalidades deste último. Como afirmámos aquando da
análise do 6.º argumento, sendo os bens pessoais dos recorrentes que respondem
pelo crédito exequendo, a penhora e venda desses bens na execução em nada
prejudica o objectivo de recuperação da empresa.
Em conclusão:
Não procede qualquer dos
argumentos que os recorrentes opõem à decisão recorrida. Tal como o tribunal a quo decidiu, a
aprovação e homologação de um plano de recuperação em processo especial de
revitalização não afecta os avales prestados pelos recorrentes nas livranças
subscritas pela sociedade titular da empresa alvo daquele processo. Daí que
nada obste à cobrança coerciva, por parte do recorrido, através da propositura
de acção executiva contra os recorrentes, dos seus créditos cambiários
resultantes de tais avales, sendo, pois, a oposição à execução manifestamente
improcedente, tal como o tribunal a quo
decidiu. Deve, pois, o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a
decisão recorrida.
Decisão:
Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação
de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas
pelos recorrentes.
Notifique.
*
Évora, 18 de Outubro de 2018
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.º adjunto