segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2019

Processo n.º 3401/18.4TBSTB-C.E1

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Sumário:

Verifica-se o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previsto no artigo 238.º, n.º 1, al. e), do CIRE, se o devedor, cerca de um ano antes de se apresentar à insolvência e quando já se encontrava em incumprimento perante, pelo menos, um dos seus credores, doa uma quinta parte, de que era titular, do direito de propriedade sobre um prédio, ao avô paterno dos seus filhos.

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CL apresentou-se à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante.

O pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente indeferido.

A insolvente recorreu do despacho de indeferimento liminar, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – A requerente apresentou-se à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante em 03.05.2018.

2 – Por desconhecer as consequências legais de um negócio jurídico realizado tempo antes de se apresentar à insolvência, fê-lo de boa-fé, sem querer prejudicar quem quer que fosse.

3 – Tal negócio foi resolvido em benefício da massa falida, ou seja, dos credores.

4 – Os credores em nada ficarão prejudicados quanto à satisfação dos seus créditos.

5 – A insolvente actuou de boa-fé e sem qualquer intenção de diminuir o seu património e frustrar a expectativa dos credores em serem ressarcidos dos seus créditos.

6 – Até ao presente momento tem cumprido escrupulosamente as regras que lhe são impostas em virtude de se ter apresentado à insolvência.

7 – Se o despacho objecto de recurso for mantido, transforma o resto da vida da insolvente num verdadeiro “inferno”;

8 – A exoneração do passivo restante é a única forma de a insolvente se reabilitar economicamente.

9 – Devendo o despacho objecto do presente recurso ser revogado e substituído por outra decisão que defira o pedido de exoneração do passivo restante e conceda uma nova oportunidade à insolvente.

Não foram oferecidas contra-alegações.

O recurso foi admitido.

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A única questão a resolver consiste em saber se se verifica o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previsto no artigo 238.º, n.º 1, al. e), do CIRE.

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O despacho recorrido julgou provados os seguintes factos:

1. A insolvente é solteira e nasceu em 20.10.1984.

2. O seu agregado familiar é composto por si e por dois filhos, sendo um nascido em 2011 e outra nascida em 23.06.2016. Não se encontram reguladas as responsabilidades parentais relativamente aos menores.

3. Aufere € 130,00 a título de abono pago pelo ISS.

4. Residem em casa arrendada, suportando renda no valor de € 300,00.

5. A requerente encontra-se a trabalhar desde Março, tendo antes estado desempregada, na empresa (…), em Setúbal, auferindo o salário mensal de € 827,32.

6. Suporta as seguintes despesas mensais:

a. Água, luz, gás, telefone, TV no valor de € 180,00 mensais;

b. € 164,00 a título de ATL e infantário dos seus filhos.

7. Vive com ajuda de familiares.

8. É detentora de uma quota no valor de € 4.750,00 na empresa M., Lda., que se irá apresentar à insolvência e se encontra já encerrada.

9. O passivo encontra-se fixado na lista de créditos reconhecidos no valor de € 147.680.17.

10. Não constam averbados antecedentes criminais.

11. Apresentou-se à insolvência em 03.05.2018.

12. Desde o ano de 2017 que a insolvente deixou de cumprir as obrigações contraídas junto do credor Cofidis.

13. O Sr. A.I. nomeado nestes autos comunicou, por carta registada com aviso de recepção, a resolução em benefício da massa do negócio de doação celebrado entre a insolvente e o pai do seu companheiro e pai de seus filhos, referente a um quinto de um imóvel industrial com o valor patrimonial superior a € 11.000,00.

14. A resolução supra referida não foi impugnada.

Resulta ainda da certidão junta aos autos de recurso, mais precisamente da cópia da escritura pública de doação dela constante (fls. 34 a 36 daquela certidão), o seguinte facto:

15. O contrato de doação referido em 13 foi celebrado no dia 28.04.2017.

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O tribunal a quo indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante com fundamento no facto de, cerca de um ano antes da sua apresentação à insolvência e já em situação de incumprimento para com os credores, a recorrente ter procedido à doação de uma quinta parte, de que era titular, do direito de propriedade sobre um imóvel, ao avô paterno dos seus filhos, daí tendo resultado um agravamento da situação de insolvência. No entendimento do tribunal a quo, este facto indicia culpa da recorrente na criação ou no agravamento da situação de insolvência, já que ela não podia deixar de estar ciente de que, ao proceder à referida doação, estava a privar os credores da possibilidade de verem satisfeitos os seus créditos, ainda que parcialmente. Tanto assim foi que a recorrente se apresentou à insolvência alegando a inexistência de bens além do seu salário, omitindo qualquer referência à doação da referida quota-parte. Considerou o tribunal a quo que, nas circunstâncias descritas, a insolvência foi criada ou, pelo menos, agravada pela conduta gravemente culposa da recorrente, assim se verificando a previsão do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE (diploma ao qual pertencem as normas doravante referenciadas sem menção da sua origem), e que, logicamente, não pode considerar-se exemplar o comportamento da recorrente no período anterior à declaração de insolvência. Concluiu o tribunal a quo que se mostra preenchida a previsão do artigo 238.º, n.º 1, al. e), o que impõe o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

A isto, a recorrente opõe, sucintamente, que fez a doação de boa-fé, “ingenuamente”, com a finalidade de “repor uma situação” entre ela e o avô paterno dos seus filhos, sem querer prejudicar quem quer que fosse e desconhecendo as suas consequências legais no posterior processo de insolvência. A recorrente considera que nada indicia uma actuação dolosa ou culposa da sua parte. A recorrente salienta ainda que a doação em causa foi resolvida em benefício da massa insolvente, pelo que não causará qualquer prejuízo aos credores, e que o montante em causa é diminuto tendo em conta o valor do passivo. A recorrente acrescenta que tem cumprido escrupulosamente as regras que lhe são impostas em virtude de se ter apresentado à insolvência e que, sem a exoneração do passivo restante, o resto da sua vida ficará transformado num verdadeiro inferno, pois a sua reabilitação económica será inviável.

Atentemos nas normas legais directamente aplicáveis ao caso dos autos.

Resulta do artigo 237.º, al. a), que a concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido, por força do disposto no artigo seguinte.

O artigo 238.º, n.º 1, al. e), estabelece que o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º.

O artigo 186.º, n.º 1, estabelece, por seu turno, que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Desde já adiantamos ser nosso entendimento que o tribunal a quo decidiu bem e com fundamentação adequada.

Resulta da matéria de facto provada que em 2017, ano em que entrou em incumprimento, pelo menos, das suas obrigações perante o credor Cofidis, e cerca de um ano antes de se apresentar à insolvência, a recorrente doou uma quota-parte do direito de propriedade sobre um imóvel ao avô paterno dos seus filhos. A recorrente não logrou fornecer uma justificação para tão inusitado acto. Nas suas alegações de recurso, a recorrente afirma que a referida doação teve como finalidade “repor uma situação” entre ela e o avô paterno dos seus filhos, mas sem esclarecer que situação era essa e o que pretende designar com o termo “reposição”. Em face dessa ausência de justificação para a referida doação, para mais quando já se encontrava em situação de incumprimento e apenas um ano antes de se apresentar à insolvência, a única explicação plausível é a de que a recorrente pretendeu esvaziar o seu património e, assim, prejudicar os seus credores, inviabilizando a satisfação dos créditos destes. Trata-se, aliás, de um expediente vulgar em situações semelhantes. Não venha a recorrente argumentar que actuou ingenuamente e de boa-fé e que nada indicia uma actuação dolosa ou culposa da sua parte, pois, à luz das regras da experiência comum, o circunstancialismo descrito aponta indubitavelmente em sentido oposto. Tudo indicia uma actuação dolosa da recorrente com a finalidade de agravar a sua situação de insolvência.

A recorrente argumenta também que efectuou a referida doação desconhecendo as suas consequências legais no posterior processo de insolvência. Admitimos que sim e, mais, que a recorrente supôs que conseguiria, mediante aquele expediente, pôr efectivamente a salvo da acção dos credores o único elemento valioso do seu património sem consequências desfavoráveis para si, fosse a que nível fosse, nomeadamente no momento de o tribunal proferir decisão sobre o pedido de concessão da exoneração do passivo restante. É essa crença da recorrente que explica que ela tenha tentado pôr a salvo do processo de insolvência o único bem do seu património com algum valor através de uma doação. Porém, face ao disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. e), aquele desconhecimento é irrelevante. Decisiva é a intenção, demonstrada pela recorrente, de desenvolver uma actuação visando agravar a sua situação de insolvência.

As circunstâncias de a doação ter sido resolvida em benefício da massa insolvente e de o valor do direito transmitido ser muito inferior ao valor total do passivo também são irrelevantes à luz do disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. e), que apenas exige a existência, no processo, de elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º, independentemente de, posteriormente, o acto do devedor ser resolvido em benefício da massa insolvente ou do seu valor relativamente ao total do passivo. Para o efeito da concessão, ou não, do benefício da exoneração do passivo restante, a lei impõe, acima de tudo, a valoração a atitude do devedor, negando tal benefício àquele que não tenha actuado com lisura e, em vez disso, tenha recorrido a expedientes visando defraudar os direitos dos seus credores, como é, tipicamente, o caso da dissipação de bens antes da apresentação à insolvência.

Quanto ao facto de, segundo a recorrente, ela vir cumprindo escrupulosamente as regras que lhe são impostas em virtude de se ter apresentado à insolvência, e às consequências da não concessão da exoneração do passivo restante, os mesmos são, evidentemente, irrelevantes face disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. e), como resulta da exposição anterior.

Concluindo, face aos factos que se provaram, que preenchem a previsão do artigo 238.º, n.º 1, al. e), o despacho recorrido deverá ser confirmado, improcedendo o recurso.

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Decisão:

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando o despacho recorrido.

Custas a cargo da massa insolvente.

Notifique.

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Évora, 12 de Setembro de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta 


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