Processo n.º 56/14.9TBMAC.E1 – Insolvência
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Sumário:
1 – Os recursos ordinários
visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões
novas.
2 – Os credores são
notificados da proposta de distribuição e de rateio final através da publicação
desta na Área de Serviços Digitais dos Tribunais. O prazo para os credores se
pronunciarem sobre aquela proposta conta-se a partir da data desta publicação.
3 – Tendo a sentença de
graduação dos créditos reclamados qualificado o crédito da recorrente como
subordinado, a proposta de distribuição e de rateio final não poderá deixar de
reflectir tal qualificação e o tribunal não poderá alterar a mesma qualificação
no momento processual previsto no n.º 4 do artigo 182.º do CIRE.
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Insolvente:
Sociedade 1, Lda..
Credora/recorrente:
Maria de Lurdes.
Decisão recorrida:
«Nada
tendo sido reclamado relativamente à proposta de distribuição e rateio final
apresentada, e atenta a concordância da secretaria, deverão os pagamentos ser
efetuados em conformidade.
Consigna-se,
para os efeitos tidos por convenientes, que nos termos do art. 183º/3 do CIRE,
não sendo o cheque apresentado a pagamento (ou comunicado o NIB para efeitos de
transferência bancária) no prazo de um ano contado desde a data do aviso ao
credor, prescreve o crédito respetivo e reverte a quantia a favor do Instituto
de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P.
Uma
vez efetuada a conta e realizado o rateio final, importa declarar encerrado o
processo nos termos do art. 230º/1-a do CIRE, em que é insolvente Sociedade 1,
Lda..
Encerrado
o processo após o rateio final, cessam as atribuições da comissão de credores e
do administrador da insolvência.
Com
o registo do encerramento do processo, a sociedade considera-se extinta – art. 234º/3,
CIRE.
Excetuados
os processos de verificação de créditos, qualquer ação que corra por dependência
do processo de insolvência e cuja instância não se extinga, deve ser conclusa para
efeitos de desapensação do processo e remessa para o tribunal competente.
As
execuções fiscais apensas deverão ser todas devolvidas à Administração Fiscal.
Nos
10 dias posteriores ao encerramento, o administrador da insolvência deve
entregar no tribunal, para arquivo, toda a documentação relativa ao processo
que se encontre em seu poder, bem como os elementos da contabilidade do devedor
que não hajam de ser restituídos ao próprio.
Notifique
para o efeito.
Registe,
publicite e notifique art. 230º/2, CIRE.»
Conclusões do recurso:
1) Os créditos detidos por pessoas
especialmente relacionadas com o devedor não poderão ser considerados como
créditos subordinados sempre que beneficiem de privilégios creditórios, gerais
ou especiais.
2) A recorrente exerceu funções de
operadora de máquina no estabelecimento da Insolvente entre 02/11/1993 e
21/03/2014.
3) A recorrente é titular de um crédito
privilegiado (privilégios imobiliário e mobiliário geral) sobre a insolvente,
reclamado nos autos.
4) Os privilégios creditórios do crédito
da recorrente sobre a insolvente constam da lista de credores.
5) Os créditos laborais de todos os
trabalhadores identificados nos autos foram reconhecidos como créditos
privilegiados, (privilégio imobiliário especial e mobiliário geral) a ser pagos
em 1.º lugar pelo produto da liquidação das verbas n.º 1 a 16 (bens móveis) e
pelo produto da liquidação da verba n.º 18 (bem imóvel), correspondente às
instalações da Insolvente.
6) No mapa de rateio final o crédito da
trabalhadora, ora recorrente, foi excluído da lista de credores a serem pagos
pelo produto da(s) liquidação(s).
7) Com a sentença ora recorrida, a
credora tomou conhecimento da proposta de rateio e distribuição do produto da
liquidação.
8) A sentença ora recorrida determina a
realização dos pagamentos em conformidade com a proposta de distribuição de
rateio final apresentada.
9) O tribunal tem o poder-dever de
verificar a conformidade substancial e forma dos títulos de créditos constantes
da lista e/ou mapas de rateio, a fim de evitar a violação da lei substantiva.
10) Iguais exigências se impõem ao
abrigo dos princípios da prevalência da verdade material sobre a formal, bem
como da igualdade entre credores, independentemente da existência de
impugnações do mapa de rateio final.
11) Nos autos, o crédito detido pela recorrente,
apesar de pessoa especialmente relacionada com a devedora, como crédito laboral
que é, goza de privilégio imobiliário especial e privilégio mobiliário geral,
pelo que deve o mesmo ser pago, em primeiro lugar, pelo produto da liquidação
das verbas 1 a 16 e 18.
12) Posto isto, existem motivos para não
ser realizado o rateio final em conformidade com a proposta de distribuição e
rateio final apresentada.
13) Por cautela de patrocínio,
identificada que foi a natureza e o montante do crédito da recorrente e
privilégios inerentes, verdadeiramente o que está em causa, é a interpretação
feita do dispositivo, reduzindo-se as dúvidas ora suscitadas a mero erro de
interpretação/material.
14) Assim sendo, e salvo o devido
respeito, o tribunal a quo não
deveria ter determinado o pagamento dos credores nos termos do rateio
apresentado.
15) Tal distribuição e pagamento
constituem violação da lei substantiva (artigos conjugados 47.º, n.º 4, al. b),
48.º, al. a), 49.º, n.º 2, alíneas a) e d) conjugadas com a alínea b) do n.º1 e
97.º do CIRE), do princípio da verdade material sobre a verdade meramente
formal e do princípio da igualdade entre os credores, consagrado nos artigos
604.º, n.º 1 do CC e 194º, n.º 1 do CIRE.
16) Por não ter decido dest’arte, ao
decretar o pagamento dos credores conforme mapa de rateio (excluído o crédito
privilegiado da recorrente), violou a douta decisão as normas dos artigos 47.º,
n.º 4, al.b), 48.º, 49.º e 97.º do CIRE e artigo 737.º, n.º 1, al. d) do CC,
bem como os princípios da verdade material que norteia o nosso processo.
Factos relevantes para a
decisão do recurso:
1 – Da sentença proferida no apenso de
verificação e graduação de créditos, consta o seguinte:
«(…)
Nos
presentes autos, como decorre da lista apresentada pelo Sr. Administrador da
Insolvência, foram reconhecidos créditos privilegiados, garantidos, comuns e
subordinados.
Aqui
chegados, cumpre identificar as classes dos créditos sobre a massa insolvente
reconhecidos pelo AI:
a)
Privilegiados:
-
Créditos laborais, que gozam de privilégio imobiliário especial sobre a verba
nº 18 e mobiliário geral, de todos os trabalhadores identificados na lista,
pelos montantes aí indicados, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
-
Créditos do FGS, no valor de 64 489,62 €, que gozam de privilégio imobiliário
especial sobre a verba nº 18 e mobiliário geral;
-
Créditos do ISS, IP, no valor de € 48.303,77 com privilégio imobiliário e
mobiliário geral;
-
Créditos da AT, a título de IMI, IS e IMT no valor total de € 11.850,10, com
privilégio imobiliário especial sobre a verba nº 18;
-
Créditos da AT a título de IRS e IRC, no valor de € 7.502,91, com privilégio
imobiliário e mobiliário geral;
-
Créditos da AT a título de IVA, no valor de € 18.997,56, com privilégio
mobiliário geral;
b)
Garantidos:
-
Créditos do Banco 1, S.A., no valor de € 73.454,73, garantido por hipoteca
registada sobre a verba nº 18;
c)
Comuns:
-
Todos os demais reconhecidos, devidamente identificados como comuns na lista
apresentada pelo AI.
d)
Subordinados:
-
Todos os demais reconhecidos, devidamente identificados como subordinados na
lista apresentada pelo AI.
Os
créditos laborais gozam de privilégio imobiliário especial e mobiliário geral
(art. 333º do C.T.) e são pagos à frente dos créditos por impostos e da
Segurança Social – art. 747º, 749º do CC e Ac. TRG de 13-2-2014, proc. nº
1216/13.5TBBCL-A.G1 – bem como dos créditos garantidos por hipoteca.
(…)
Em
seguida, devem ser pagos os créditos comuns, na proporção respetiva, se a massa
insolvente for insuficiente para a sua satisfação integral – art. 47º, n.º 4,
alínea c) e art. 176º CIRE.
Os
créditos subordinados são os últimos a obter pagamento.
(…)
IV-
Decisão
Atendendo
a tudo o que ficou exposto supra, deve proceder-se ao pagamento dos créditos,
através do produto da massa insolvente, pela seguinte ordem:
1º
- As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção do produto
da venda de cada bem móvel ou imóvel, conforme estipula o n.º 1 e 2 do art. 172º
CIRE;
2.º
- Do remanescente, serão pagos, atendendo ao auto de apreensão junto em
20-4-2021:
Relativamente
ao produto da liquidação das verbas nº 1 a 16 (bens móveis)
1º
lugar: créditos laborais, e créditos do FGS, com privilégio mobiliário geral, rateadamente
se necessário;
2º
lugar: créditos da AT a título de IVA, IRC e IRS e créditos do ISS, IP, com
privilégio mobiliário geral, rateadamente se necessário;
3º
lugar: créditos comuns;
4º
lugar: créditos subordinados.
Relativamente
ao produto da liquidação das verbas nº 17, 19 e 20 (bens imóveis)
1º
lugar: créditos do ISS, IP, com privilégio imobiliário geral;
2º
lugar: créditos da AT a título de IRC e IRS, com privilégio imobiliário geral;
3º
lugar: créditos comuns;
4º
lugar: créditos subordinados
Relativamente
ao produto da liquidação da verba nº 18 (bem imóvel)
1º
lugar: créditos laborais e do FGS, com privilégio imobiliário especial,
rateadamente, se necessário;
2º
lugar: créditos da AT, a título de IS, IMT e IMI, com privilégio imobiliário
especial;
3º
lugar: créditos do Banco 1, S.A., garantidos por hipoteca;
4º
lugar: créditos do ISS, IP, com privilégio imobiliário geral;
5º
lugar: créditos da AT a título de IRC e IRS, com privilégio imobiliário geral;
6º
lugar: créditos comuns;
7º
lugar: créditos subordinados.»
2 – Não foi interposto recurso da
sentença referida em 1, encontrando-se a mesma transitada em julgado;
3 – Na relação de créditos reconhecidos
apresentada pelo administrador da insolvência no apenso de verificação e
graduação de créditos, é atribuída a natureza de subordinado ao crédito de que
a recorrente é titular;
4 – A proposta de distribuição e de
rateio final apresentada pelo administrador da insolvência não prevê o
pagamento, sequer parcial, do crédito de que a recorrente é titular;
5 – O montante a ratear é insuficiente
para o pagamento integral dos créditos não subordinados que foram reconhecidos;
6 – A proposta de distribuição e de
rateio final foi publicada na Área de Serviços Digitais dos Tribunais;
7 – Nenhum credor se pronunciou sobre a
proposta de distribuição e de rateio final.
Questão a decidir:
Admissibilidade do conhecimento da
questão suscitada pela recorrente em sede de recurso.
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A recorrente sustenta que o
direito de crédito de que é titular, por ter natureza laboral e ser garantido
por privilégios imobiliário e mobiliário geral, não pode ser qualificado como
subordinado e, com esse fundamento, excluído da lista de créditos a serem pagos
pelo produto da liquidação, como aconteceu. Em vez disso, segundo a recorrente,
o seu direito de crédito deve ter tratamento idêntico aos dos restantes
trabalhadores, ou seja, deve ser qualificado como privilegiado, (privilégio
imobiliário especial e mobiliário geral) e pago em primeiro lugar pelo produto
da liquidação das verbas n.ºs 1 a 16 (bens móveis) e da verba n.º 18 (bem
imóvel), correspondente às instalações da insolvente. A recorrente afirma que
só com a notificação da sentença recorrida, que determina a realização dos
pagamentos em conformidade com a proposta de distribuição de rateio final, tomou
conhecimento desta.
O n.º 3 do artigo 182.º do
CIRE estabelece que, após julgadas as contas e paga a conta de custas, no prazo
de 10 dias, o administrador da insolvência apresenta, no processo, proposta de
distribuição e de rateio final, acompanhada da respectiva documentação de
suporte caso seja diferente daquela que já existe no processo, e procede à
publicação da proposta na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, dispondo a
comissão de credores, caso tenha sido nomeada, e os credores, de 15 dias,
contados desde a data da publicação, para se pronunciarem sobre a mesma.
Resulta desta norma que os
credores são notificados da proposta de distribuição e de rateio final através
da publicação desta na Área de Serviços Digitais dos Tribunais. O prazo para os
credores se pronunciarem sobre aquela proposta conta-se a partir da data desta
publicação.
Daí que não seja exacta a
afirmação, feita pela recorrente, de que não foi notificada da proposta de distribuição
e de rateio final. Tal notificação foi realizada através da publicação da
proposta na Área de Serviços Digitais dos Tribunais.
Tendo a recorrente deixado
decorrer o prazo legal para se pronunciar sobre a proposta de distribuição e de
rateio final, ficou precludido o direito de o fazer. Consequentemente, está
vedado, à recorrente, invocar uma suposta ilegalidade da proposta através da
interposição de recurso da decisão que ordenou a realização dos pagamentos em
conformidade com ela. Apenas poderia fazê-lo, em princípio, perante o tribunal a quo, dentro do prazo acima referido.
Dizemos em princípio porque, tendo em conta o fundamento invocado pela
recorrente, nem sequer no momento processual previsto na parte final do n.º 3
do artigo 182.º do CIRE ela estava a tempo de o fazer. Adiante justificaremos
esta afirmação.
O tribunal a quo, naturalmente, não se pronunciou,
na decisão recorrida, sobre a questão que a recorrente suscita perante o
tribunal ad quem, pois a mesma não
lhe foi colocada. Estamos, pois, perante uma questão nova. Ora, resulta dos
artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º do CPC que os recursos
ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do
tribunal a quo e não o conhecimento
de questões novas, ou seja, suscitadas pela primeira vez perante o tribunal ad quem. Isto, naturalmente, sem
prejuízo do conhecimento, por este último, das questões que o devam ser
oficiosamente, o que não é o caso daquela que a recorrente agora suscita. “Os recursos são meios de obter a reforma
de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de
julgamento. (…) pretende-se um novo exame da causa, por parte de órgão
jurisdicional hierarquicamente superior.”[1] Esta é uma regra básica em matéria de
recursos, que define a própria natureza destes.
Isto basta para julgar o
recurso improcedente, pois nenhuma outra questão é suscitada pela recorrente.
Não obstante, passamos a
justificar a conclusão, acima enunciada, de que, tendo em conta o fundamento invocado
pela recorrente, nem sequer no momento processual previsto na parte final do
n.º 3 do artigo 182.º do CIRE ela estava a tempo de o fazer.
O fundamento invocado pela
recorrente para pôr em causa a proposta de distribuição e de rateio final é a
natureza do direito de crédito de que é titular. Considera a recorrente que
esse crédito deve ser qualificado, não como subordinado, mas sim com
privilegiado.
Ora, a questão da natureza
do crédito da recorrente foi decidida pela sentença de graduação dos créditos
reclamados, da qual não foi interposto recurso e que, consequentemente, se
encontra transitada em julgado. Nessa sentença, o tribunal a quo, mediante remissão para o conteúdo da relação de créditos
reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência no apenso de
verificação e graduação de créditos, qualificou o crédito da recorrente como
subordinado. Sendo assim, esta qualificação encontrava-se definitivamente
fixada no processo, quer quando a proposta de distribuição e de rateio final
foi elaborada, quer quando a decisão recorrida foi proferida. Logo, por um
lado, aquela proposta cumpre inteiramente a sentença de graduação dos créditos
reclamados e, por outro, estava vedado, ao tribunal a quo, alterar a qualificação do crédito da recorrente na decisão
recorrida.
Contudo, para que não restem
dúvidas, repetimos: ainda que assim não fosse, o recurso não poderia proceder,
pela razão primeiramente referida.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente,
sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.
Notifique.
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Évora, 19.03.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.ª adjunta)
[1] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume
V (reimpressão), p. 212.