sábado, 31 de dezembro de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 15.12.2022

Processo n.º 1176/17.3T8OLH-F.E1

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Sumário:

Se for apreendido para a massa insolvente um pretenso prédio rústico, descrito no registo predial mas cuja área, na realidade, se sobrepõe quase totalmente a parte da área de um outro prédio, descrito no registo desde data anterior, cuja aquisição aí se encontra inscrita a favor da sua proprietária e sobre o qual esta actua de forma correspondente ao exercício desse direito real, tem a mesma proprietária o direito de obter a separação do prédio apreendido da massa insolvente. A proprietária tem ainda o direito de obter a inutilização da descrição do prédio apreendido no registo predial e o cancelamento da inscrição do mesmo prédio na matriz.

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Por apenso ao processo de insolvência de Sociedade 1, S.A., Sociedade 2, Lda., propôs acção de verificação ulterior do direito à separação de bens da massa insolvente, nos termos do artigo 146.º do CIRE, contra a insolvente, a massa insolvente e os credores desta. A autora pediu que seja ordenada a separação, da massa insolvente, do prédio rústico descrito sob o n.º 12968/(...) e inscrito sob o n.º 21.696 da União das Freguesias de (...), e que seja ordenada a inutilização e o cancelamento de tais descrição predial e inscrição na matriz.

Massa Insolvente de Sociedade 1, S.A., contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença julgando a acção improcedente.

A autora interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) A decisão sobre a matéria de facto deve ser objecto de impugnação, uma vez que existem meios de prova que impunham decisão diversa da recorrida, podendo este venerando tribunal alterá-la, nos termos do artigo 662.º do CPC.

B) No entender da autora, e ressalvado o devido respeito, a meritíssima juíza da 1ª. instância fez uma errada apreciação da prova produzida, porquanto, por um lado, do elenco da matéria de facto julgada provada não constam factos que foram provados e são relevantes à boa apreciação da causa, e por outro lado, existem factos que foram considerados não provados e se encontram demonstrados nos autos.

C) Os factos que não constam do elenco da factualidade assente e que a autora considera terem sido provados e serem relevantes à boa apreciação da causa são os seguintes (por referência à petição inicial):

14.º A autora, como consta do documento junto sob o n.º 1, adquiriu o prédio à agora insolvente, que, por sua vez, o tinha adquirido à Sociedade 3, Lda., por escritura pública lavrada em 02 de Abril de 1998, no Cartório Notarial de (…), da qual se junta cópia, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido - doc. 7.

15.º O prédio já tinha a área e os limites actuais quando foi adquirido pela insolvente à Sociedade 3, Lda..

26.º Com efeito, a insolvente, enquanto foi proprietária do prédio, não procedeu a qualquer operação de destaque, divisão ou fraccionamento do prédio, destinada a autonomizar a parcela rústica dos 6300m2 (seis mil e trezentos metros quadrados), ou qualquer outra área, mantendo-se o prédio com a mesma área e configuração durante todo o período de tempo que lhe pertenceu, e foi assim que a insolvente o transmitiu à autora.

D) O facto alegado no artigo 14.º da petição inicial está demonstrado por documento autêntico (junto com a petição inicial sob o nº 7), que faz prova plena dos factos atestados – artigo 371.º n.º 1 do Código Civil.

E) Quanto aos factos alegados nos artigos 15.º e 26.º da petição inicial, os meios probatórios que impunham que estes factos fossem julgados provados são constituídos pelas certidões prediais juntas com a petição inicial sob os documentos n.ºs 3 e 13, das quais não consta terem estes prédios sido constituídos a partir de outro prédio (artigo 85.º do CRP), e pelos depoimentos das testemunhas inquiridas na sessão de julgamento do dia 11/02/2022, Jorge (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com início às 14:53h e termo às 15:20h), David (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com início às 15:22h e termo às 15:48h), e Artur (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com início às 15:49h e termo às 16:06h), e ainda pelo depoimento da testemunha Deolinda, prestado na sessão de julgamento de 06/05/2022 (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com início às 14:23h e termo às 14:50h).

F) Todas as testemunhas afirmam, sem margem para dúvidas, com conhecimento pessoal e directo dos factos, que a insolvente, que adquiriu o prédio urbano 34/(…) em 1998, manteve o imóvel vedado pelos mesmos limites desde o tempo em que o adquiriu até o ter transmitido à Autora (31/08/2010), não sendo o mesmo sujeito a qualquer operação de onde resultasse uma qualquer alteração da sua área.

G) Os factos que foram considerados não provados, e que a autora entende que se encontram demonstrados nos autos, são os seguintes (por reporte ao elenco dos factos não provados constante da douta sentença recorrida):

2. Em face do dito requerimento (doc. 8), foi criada uma nova matriz pela administração fiscal, à qual foi atribuída inicialmente o artigo 22458/(…), e é atualmente o artigo 21696 da União das Freguesias de (…).

4. Trata-se de uma situação de duplicação de descrições, que tem de ser corrigida, dando-se por inutilizada a descrição do prédio descrito sob o n.º 12968/(...).

H) Os meios probatórios, que impunham uma decisão sobre a matéria de facto diferente da que veio a ser proferida, em relação ao facto n.º 2 do elenco dos factos não provados, são constituídos: i) pelo requerimento (documento junto com a petição inicial sob o nº 8), que deu origem à criação da matriz rústica 21696/União das Freguesias de (…) (inicialmente 22458 da freguesia de (…)); ii) pela caderneta predial referente à matriz predial rústica 21696/União das Freguesias de (…) (documento junto com a petição inicial sob o n.º 11) da qual consta que o prédio foi inscrito na matriz em 2008 e que o artigo matricial 21696 da União das Freguesias de (…) provém do artigo 22458 da freguesia de (…); iii) pela informação prestada pela AT – Autoridade Tributária e Aduaneira no âmbito do processo de execução n.º 5305/14.0T8LRS, constante da certidão junta aos autos sob a refª. 8505753 de 22/12/2020 (ficheiro 9), que identifica o prédio rústico em causa como sendo o artigo 22458 da freguesia 100917 – (…) ; iv) pelo próprio requerimento de abertura da descrição predial (documento junto com a p.i. sob o n.º 12) em que o agente de execução que o subscreve indica que o prédio rústico se encontra inscrito sob o artigo 22458 da freguesia de (…).

I) Com a entrada em vigor da Lei n.º 11-A/2013, de 28/01, procedeu-se à reorganização administrativa do território das freguesias, do que resultou a agregação das freguesias de (…) e (…), ambas do concelho de (…), verificando-se a necessidade de proceder à renumeração e redenominação dos artigos matriciais, motivo pelo qual a matriz 22458 da freguesia de (…) deu lugar à matriz 21696 da União das Freguesias de (…).

J) No que toca ao facto n.º 2 do elenco dos factos não provados, a perícia realizada nos autos, diga-se, rigorosa e exaustiva, é absolutamente peremptória quanto ao facto do prédio rústico 12968/(...) se encontrar fisicamente na mesma área do prédio urbano 34/(…), identificando o perito que aquele prédio se encontra em área abrangida pela delimitação física deste prédio, numa superfície de 6.756,8 m2.

L) Se ambas as matrizes e descrições prediais têm por objecto a mesma área, forçoso é reconhecer que existe uma duplicação, tanto de matrizes, como de descrições, já que não pode haver mais do que uma matriz e descrição para cada prédio, atenta a respectiva finalidade, que é a da identificação física, económica e fiscal do prédio – artigo 12.º, n.º 1, do Código do Imposto Municipal Sobre Imóveis (CIMI) e artigo 79.º, n.º 1, do Código do Registo Predial (CRP).

M) A decisão recorrida assenta no entendimento de que a área do prédio rústico 12968/(...) corresponde a uma superfície autónoma e distinta da área do prédio urbano 34/(…), o que não está de acordo com os factos apurados.

N) A conclusão a retirar dos factos só pode ser a contrária à acolhida na douta decisão recorrida, porquanto resulta evidente da matéria de facto apurada que o prédio rústico 12968/(...) não corresponde a uma superfície autónoma e distinta da área do prédio urbano 34/(...), com excepção da área com 603,7m2, que fica situada em terreno confinante.

O) Não se mostra relevante apurar qual o objectivo que a insolvente pretendia alcançar com a apresentação do requerimento que deu origem à criação da matriz rústica 21696/União das Freguesias de (...) e (...) (inicialmente 22458 da freguesia de (...)), uma vez que, o que aos autos interessa efetivamente é que a insolvente requereu a inscrição na matriz de um prédio rústico cuja área já se encontrava inscrita na matriz urbana 3524/União das Freguesias de (...) e (...) (inicialmente 2081 da freguesia de (...)), o que veio a originar duplicação de matrizes, e, posteriormente, por via de um processo executivo (proc. 194895/11.9Y1PRT-A), a duplicação de descrições prediais.

P) A descrição predial do prédio urbano 34/(...) foi aberta em 12 de Fevereiro de 1985, e consta da mesma que a aquisição do prédio a favor da autora foi inscrita no registo predial pela Ap. 3261 de 06/09/2010, tendo a autora junto aos autos o título de onde lhe advém o direito de propriedade inscrito no registo predial, estabelecendo, inclusive, o trato sucessivo.

Q) Para mais, ficou demonstrado nos autos que a autora, desde que adquiriu o prédio urbano 34/(...), o possui e explora, de forma contínua e ininterrupta, na presença e observação de quem quer que seja, sem qualquer oposição.

R) No que concerne à descrição predial do prédio rústico 12968/(...), aberta em 02 de Dezembro de 2013, com base na inscrição de uma penhora, consta inscrito um encargo – penhora – constituído a favor do credor Sociedade 4, S.A. sobre a insolvente, sendo tal facto inscrito no registo predial pela Ap. 1357 de 02/12/2013, e não tendo a insolvente junto aos autos qualquer documento, nem tão pouco alegou na contestação quaisquer factos, que possam, ainda que remotamente, justificar ou atribuir à insolvente a titularidade do prédio rústico 12968/(...).

S) Tendo em conta os princípios da prioridade do registo e das presunções derivadas do registo, acolhidos nos artigos 6.º e 7.º do CRP, e tendo ambos os prédios áreas coincidentes, a descrição predial do prédio urbano 34/(...) tem forçosamente de prevalecer sobre a descrição predial do prédio rústico 12968/(...).

T) Tendo resultado demonstrado, por prova pericial, que o prédio rústico 12968/(...), que foi apreendido para a massa insolvente, apresenta-se maioritariamente, com excepção da área com 603,7m2, em área também abrangida pela área do prédio urbano 34/(...), propriedade da autora, é por demais evidente que a autora é titular de um direito de propriedade que é incompatível com a apreensão efectuada pela massa insolvente, pelo que, nos termos dos artigos 141.º, n.º 1, al. c), e 146.º, n.º 1, do CIRE, a autora tem legitimidade para pedir e obter a separação da massa insolvente do mencionado bem que foi indevidamente apreendido, uma vez que este é insuscetível de apreensão para a massa.

U) Constitui uma distorção do sistema o facto de existirem diferentes identificações registrais e matriciais para um prédio que é fisicamente o mesmo, devendo proceder-se à correcção da situação através da eliminação e cancelamento da descrição e matriz prediais que foram indevidamente inscritas – artigos 79.º, n.ºs 1 e 2, e 86.º, do CRP, e artigo 108.º do CIMI.

V) A descrição predial do prédio urbano 34/(...) e a matriz predial urbana 3524/União das Freguesias de (...) e (...) devem permanecer por corresponderem à concreta e real situação do prédio em causa nos autos, que é propriedade da autora, devidamente comprovada, não só em termos registrais, mas também por aplicação das regras e princípios do direito substantivo.

X) Assim, justifica-se o cancelamento, com a consequente inutilização, da descrição predial do prédio rústico 12968/(...) e da matriz predial rústica 21696/União das Freguesias de (...) e (...), por, na verdade, se tratar de uma duplicação, ainda que parcial, da descrição predial do prédio urbano 34 / (...) e da matriz predial urbana 3524/União das Freguesias de (...) e (...).

Z) Sendo, todavia, douta, a decisão recorrida violou por erradas interpretação e aplicação as disposições legais anteriormente citadas, e as mais ao caso aplicáveis.

A recorrida Massa Insolvente de Sociedade 1, S.A. apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

A. Veio a recorrente interpor uma acção de verificação ulterior do direito à separação de bens da massa insolvente.

B. Com fundamento de que havia sido indevidamente apreendido para a massa insolvente pelo administrador da insolvência um prédio rústico descrito sob o n.º 12968/(...) e inscrito sob o artigo 21696.

C. Com efeito, a autora havida adquirido em 2010 descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 34, e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2081 da então freguesia de (...), actualmente inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 3524 da União das Freguesias de (...), proveniente do artigo 2081 da extinta freguesia de (...).

D. A autora, havia então adquirido o prédio à insolvente, que, por sua vez, o tinha adquirido à Sociedade 3, Lda..

E. Sucede que em 2007 a insolvente requereu a inscrição de um prédio rústico, omisso na matriz, sito em (…), freguesia de (...), composto de terra de cultura, com a área de 6300 m2 (seis mil e trezentos metros quadrados), a confrontar do norte com herdeiros de (…), sul e nascente com serventia pública e do poente com (…).

F. Alega então a recorrente que tal parcela rústica de 6300 m2 nunca chegou a ser destacada do aludido prédio (identificado no artigo 3.º) que, entretanto, foi transmitido à recorrente com a mesma configuração que sempre teve.

G. Sucede que a ré não reconhece a autora como proprietária do referido bem, por considerar tratarem-se de prédios distintos, o imóvel encontra-se assim devidamente apreendido pelo administrador nos autos de insolvência para a massa insolvente, conforme se demonstrará.

H. Mais, se diga, que segundo apurou o administrador da insolvência, sob o referido prédio da massa insolvente encontra-se edificado bem imóvel que será inclusivamente habitação de pessoa especialmente ligada à insolvente (o seu administrador de facto).

I. Nesta conformidade, o bem apreendido, é propriedade exclusiva da sociedade insolvente e por conseguinte apreensível para a massa insolvente, o que veio a ser efectivada e bem pelo administrador da insolvência, conforme confirmou o douto tribunal de 1ª instância.

J. Inexiste assim a duplicação de descrições, tratando-se de artigos e prédios diferentes, pelo que deverá manter-se a apreensão do prédio descrito sob o n.º 12968 (...).

K. Assim e conforme teve a ré agora recorrida oportunidade de defender, o requerimento que a insolvente apresentou nas finanças foi a solicitar a inscrição de um prédio rústico omisso na matriz, sito em (…), freguesia de (...), composto de terra de cultura com a área de 6300m2.

L. Em momento nenhum resulta dos documentos juntos pela autora que foi solicitado o destaque de uma parcela de terreno do prédio descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 34, e inscrito na matriz predial rústica sob o n.º 2081 (actual n.º 3524).

M. Assim, não resulta do referido requerimento que a pretensão da insolvente fosse realizar qualquer destaque que permitisse a separação de um prédio urbano em duas parcelas autónomas, o que o requerente veio solicitar, foi algo bem diferente, existia um prédio rústico que se encontrava omisso na Autoridade Tributária.

N. E encontrava-se omisso, por não pertencer ao artigo matricial n.º 2081, nem com este se encontrar correlacionado, ou seja, o proprietário emitiu uma declaração para inscrição do prédio, pelo facto de o mesmo se encontrar omisso, tendo dado conhecimento desse facto às entidades competentes.

O. Pelo que o propósito, ao contrário do alegado pela autora, nunca poderia ser autonomizar dentro do prédio vendido, uma parcela rústica, pelo que se deixa expressamente impugnado o artigo 17.º da petição inicial.

P. Concordando-se em absoluto com o douto tribunal a quo que as testemunhas da autora agora recorrente não vieram contradizer a prova documental nem provar a pretensão da autora de que se tratou de uma duplicação de descrições associadas ao mesmo bem em virtude da pretensão de fraccionamento de parte do prédio que nunca se chegou a efectivar.

Q. Assim, nenhuma das testemunhas alegou que se tentou proceder ao destaque de uma parcela de terreno, não apresentando qualquer conhecimento sobre a forma como resultou a criação deste prédio.

R. Também do requerimento apresentado junto da Autoridade Tributária que a pretensão da insolvente foi solicitar a inscrição na matriz de um prédio rústico que se encontrava omisso na AT.

S. Mais se diga que o prédio apreendido para a massa insolvente, conforme resulta da respectiva caderneta “teve origem no artigo 22458”, não se mencionando em nenhum local que o mesmo provinha do artigo 2081 (o prédio da autora).

T. De realçar que quando a autora adquiriu em 2010 o prédio urbano sito em (…), freguesia de (...), concelho de (…), descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 34, e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2081 da então freguesia de (...), actualmente, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 3524 da União das Freguesias de (...), proveniente do artigo 2081 da extinta freguesia de (...), já o prédio rústico em causa tinha sido inscrito na matriz, o que sucedeu em 2007.

U. Mais a autora, aquando da compra, tinha conhecimento deste facto, conforme vieram demonstrar as testemunhas arroladas, nomeadamente o senhor Artur (Ficheiro...).

V. Assim, à data da celebração da escritura, já existiam 2 (dois) prédios, o urbano e o rústico que permaneceu na esfera jurídica da insolvente até à apreensão pela massa insolvente.

W. Por todo o exposto andou bem o douto tribunal que “não resultou demonstrada a pretensão da autora da existência de uma duplicação de descrições, resultando da documentação junta aos autos e, bem assim, da perícia realizada, de que se trata de artigos e prédios diferentes pelo que deverá manter-se a apreensão do prédio descrito sob o n.º 12968 (...), devendo improceder a pretensão da Autora.”.

X. Assim face à prova produzida, documental pericial e testemunhal, dúvidas não restam de que fez justiça o douto tribunal a quo.

Y. Ora, ninguém sabe como resultou a criação do prédio, não tendo resultado provada a “tese” da autora ora recorrente.

Z. O que as testemunhas sabem é que quando a autora adquiriu em 2010 o prédio urbano, já o prédio rústico da ré tinha sido inscrito na matriz, o que sucedeu em 2007.

AA. Mais, todos identificam na referida parcela a habitação do administrador (“de facto”) da insolvente.

BB. E todos falam da mesma pessoa que nela habita desde sempre, o “Sr. Diamantino”, dono de todas as empresas e a pessoa que dá as ordens.

CC. Nestes termos, nenhuma das testemunhas alegou que se tentou proceder ao destaque de uma parcela de terreno, não apresentando qualquer conhecimento sob a forma como resultou a criação deste prédio.

DD. Também dos documentos juntos aos autos, nomeadamente do requerimento apresentado junto da Autoridade Tributária que a pretensão da insolvente foi solicitar a inscrição na matriz de um prédio rústico que se encontrava omisso na AT.

EE. Assim não existiu nenhuma duplicação de descrições, resultando da documentação junta aos autos da perícia realizada e da prova testemunhal, de que se tratam de imóveis diferentes pelo que deverá manter-se a apreensão pelo administrador da insolvência.

O recurso foi admitido.

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A questão fundamental a resolver consiste em saber se à descrição no registo predial e à inscrição na matriz do prédio rústico, apreendido no processo de insolvência da sociedade Sociedade 1, S.A., cuja separação da massa insolvente a recorrente pretende, corresponde um prédio realmente existente, ou, em vez disso, tais descrição e inscrição têm por objecto parte de um prédio, de maior dimensão, de que a recorrente é proprietária, descrito no registo predial e inscrito na matriz em datas anteriores, assim pondo em causa esse direito de propriedade.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A ré Sociedade 1, S.A. foi declarada insolvente por sentença de 5 de Dezembro de 2017.

2. Nos autos de insolvência foi apreendido para a massa insolvente o prédio rústico descrito no registo predial o n.º 12968/(...) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 21696.

3. A autora é uma sociedade comercial por quotas, de responsabilidade limitada, constituída em Dezembro de 2009, que tem por objecto a compra e venda de imóveis e a gestão de imóveis próprios.

4. Em 31 de Agosto de 2010 a autora e a Sociedade 3, Lda. (posteriormente redenominada Sociedade 1, S.A., ora insolvente) outorgaram a escritura pública de compra e venda, da qual se junta cópia, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, em que a Sociedade 3, Lda. declarou vender à autora, e esta declarou comprar-lhe, pelo preço de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros), o prédio urbano composto de casa de habitação, com garagem, oficinas, paióis, telheiros, terreno de cultura, pinhal e pedreiras em exploração, sito em (…), freguesia de (...), concelho de (...), descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 34, e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2081 da então freguesia de (...).

5. A aquisição do prédio a favor da autora foi inscrita no registo predial pela Ap. 3261 de 06/09/2010.

6. Actualmente, o prédio está inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 3524 da União das Freguesias de (...), proveniente do artigo 2081 da extinta freguesia de (...), encontrando-se o mesmo inscrito a favor da autora.

7. Da escritura de compra e venda celebrada não consta qual a área do mencionado prédio adquirido pela autora, constando dos documentos a ele referentes (caderneta predial e certidão permanente) que o prédio tem 100.000 m2.

8. O mencionado prédio compõe-se de casa de habitação, com garagem, oficinas, paióis, telheiros, terreno de cultura, pinhal e pedreira, e confronta a norte com (…) e outros, a sul com (…), a nascente com linha do caminho de ferro e caminho, e a poente com colector hidráulico e (…).

9. O prédio encontra-se vedado pelos seus limites, sendo a vedação constituída por um muro de alvenaria, sendo o acesso ao seu interior efectuado através de diversos portões existentes na vedação.

10. Desde que adquiriu o prédio que a autora o possui e explora, de forma contínua e ininterrupta, na presença e observação de quem quer que seja, sem qualquer oposição, sendo a área construída afecta a habitação dos colaboradores da empresa, a oficina, e ao armazenamento de equipamentos, veículos e equipamentos da autora, e a parte restante, que é utilizável, destinada a parque de estacionamento, áreas ajardinadas, cultivo de árvores de fruto e vinha.

11. Em 20 de Julho de 2007, a insolvente deu entrada no 2.º Serviço de Finanças de (...) do requerimento a solicitar a inscrição de um prédio rústico, omisso na matriz, sito em (...), freguesia de (...), composto de terra de cultura, com a área de 6.300 m2 (seis mil e trezentos metros quadrados), a confrontar do norte com herdeiros de (…), sul e nascente com serventia pública e do poente com (…) - documento 8 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

12. Tal prédio encontra-se inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 21696, com a área de 6.300 m2 com as seguintes confrontações: de norte com herdeiros de (…), de sul com serventia pública, de nascente com serventia pública e de poente com (…), constando da caderneta predial que “teve origem no artigo 22458”.

13. No âmbito do processo de execução a correr termos no então 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Alenquer, sob o n.º 194895/11.9Y1PRT-A, em que foi exequente Sociedade 5, S.A., e executada a ora insolvente, o agente de execução, após consulta ao serviço de finanças, e constatando a existência da dita matriz em nome da executada, procedeu à penhora do dito imóvel.

14. Seguidamente, o agente de execução apresentou no registo predial a requisição com vista à inscrição da penhora, conforme documento 12 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

15. Uma vez que o prédio penhorado não se encontrava descrito no registo predial, foi aberta uma nova descrição, à qual foi atribuída o n.º 12968/(...) - doc. 13. cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

16. Não obstante os títulos do prédio identificado em 9 e 10 supra indicar que o prédio apresentará uma área de 6.300,0 m2, a medição da superfície deste polígono a que respeitará esse prédio ascende a 7.383,5 m2.

17. Em relação ao prédio da autora, a área que é passível de ser medida, e que se apresenta murada e delimitada no local, actualmente ascende a 93.617,6 m2, aspecto que fica aquém dos 10 Ha, ou 10.000 m2, mencionados nos respectivos títulos.

18. O prédio da ré apresenta-se maioritariamente em área também ela abrangida pela delimitação física do prédio dos autores.

19. A excepção será uma área rectangular na estrema norte com 603,7 m2, e que está fora da área fisicamente delimitada por intermédio de muros de vedação.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

1. O propósito do requerimento mencionado no ponto 9 dos factos provados era autonomizar dentro do prédio uma parcela rústica com a área de 6300 m2 (seis mil e trezentos metros quadrados), o que nunca veio a acontecer.

2. Em face do dito requerimento (doc. 8), foi criada uma nova matriz pela administração fiscal, à qual foi atribuída inicialmente o artigo 22458/(...), e é actualmente o artigo 21696 da União das Freguesias de (...).

3. Não existe qualquer título que justifique ou permita atribuir à insolvente a titularidade do prédio descrito sob o n.º 12968/(...).

4. Trata-se de uma situação de duplicação de descrições, que tem de ser corrigida, dando-se por inutilizada a descrição do prédio descrito sob o n.º 12968/(...).

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Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

A recorrente pretende que seja julgado provado o conteúdo dos artigos 14.º, 15.º e 26.º da petição inicial.

Os factos alegados no artigo 14.º da petição inicial foram expressamente admitidos na contestação e resultam dos documentos apresentados com aquele articulado sob os n.ºs 2 e 7, pelo que devem ser julgados provados.

Os factos alegados nos artigos 15.º e 26.º da petição inicial resultam do documento junto a este articulado sob o n.º 3, que é uma certidão do registo relativo ao prédio referido no n.º 4 da matéria de facto provada. Do registo predial não consta qualquer alteração da área desse prédio, nomeadamente por efeito de alguma operação de destaque, divisão ou fraccionamento, como teria de acontecer na hipótese de alguma dessas operações ter sido efectuada. As testemunhas Jorge, David, Artur e Deolinda, cujos depoimentos ouvimos na totalidade, corroboraram os factos em causa. Estas testemunhas conhecem o prédio, a primeira e a terceira há cerca de 20 anos, a segunda há cerca de 15 anos e a quarta há cerca de 25 anos, e todas elas afirmaram, peremptoriamente, que aquele se encontra bem demarcado no terreno – o que é confirmado pela prova pericial – e que, desde que o conhecem, o mesmo não sofreu qualquer alteração de área. Consequentemente, também os factos alegados nos artigos 15.º e 26.º da petição inicial devem ser julgados provados.

Por outro lado, a recorrente pretende que o conteúdo dos n.ºs 2 e 4 dos factos que o tribunal a quo julgou não provados seja julgado provado pelo tribunal ad quem.

No que concerne ao conteúdo do n.º 2, a recorrente tem razão. Está provado que, em 20.07.2007, a insolvente deu entrada, no 2.º Serviço de Finanças de (...), de requerimento a solicitar a inscrição de um prédio rústico, omisso na matriz, sito em (...), freguesia de (...), composto de terra de cultura, com a área de 6.300 m2, a confrontar do norte com herdeiros de (…), do sul e nascente com serventia pública e do poente com (…), conforme documento apresentado com a petição inicial sob o n.º 8 (n.º 11) e que tal prédio se encontra inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 21696, com a área de 6.300 m2 com as seguintes confrontações: do norte com herdeiros de (…), do sul com serventia pública, de nascente com serventia pública e de poente com (…), constando da caderneta predial que “teve origem no artigo 22458” (n.º 12). Estando provados estes factos, é contraditório julgar não provado que, em face do requerimento que constitui o documento apresentado com a petição inicial sob o n.º 8, a administração fiscal criou um novo artigo na matriz. Tendo sido requerida a inscrição, na matriz, de um prédio nela omisso e aparecendo, posteriormente, o mesmo prédio inscrito na matriz, forçosamente isso aconteceu na sequência desse requerimento. Aliás, é isto que resulta dos documentos apresentados com a petição inicial sob os n.ºs 8 e 11. O requerimento para inscrição na matriz deu entrada no 2.º Serviço de Finanças de (...) em 20.07.2007 e, conforme consta do documento n.º 11, aquela inscrição teve lugar no ano de 2008. Concluindo, o conteúdo do n.º 2 dos factos não provados deverá transitar para o enunciado dos factos provados.

O mesmo não deverá acontecer relativamente ao n.º 4 dos factos não provados, pela exclusiva razão de se tratar de matéria puramente conclusiva. Como adiante veremos, a conclusão de que se verifica uma situação de sobreposição quase total de descrições prediais é correcta, mas não deve constar, nem dos factos provados, nem dos não provados. Em vez de transitar para o enunciado dos factos provados, o n.º 4 dos factos não provados deverá ser suprimido.

Concluindo:

- São aditados à matéria de facto provada os seguintes números:

20. A autora comprou o prédio referido em 4 à agora insolvente, a qual, por sua vez, o tinha adquirido à Sociedade 3, Lda., através de escritura pública lavrada em 02.04.1998, que constitui o documento junto à petição inicial sob o n.º 7 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

21. O prédio referido em 4 já tinha a área e os limites actuais quando a insolvente o comprou à Sociedade 3, Lda..

22. Enquanto foi proprietária do prédio referido em 4, a insolvente não procedeu a qualquer operação de destaque, divisão ou fraccionamento do mesmo, destinada a autonomizar a parcela rústica com 6.300 m2 ou qualquer outra área, mantendo-se o prédio com a mesma área e configuração durante todo o período de tempo que lhe pertenceu, e foi assim que a insolvente o vendeu à autora.

23. Em face do requerimento referido em 11, a administração fiscal criou um novo artigo na matriz, referido em 12;

- É suprimido o n.º 4 dos factos não provados.

Verificação dos pressupostos do direito à separação:

Concluiu-se, na sentença recorrida, que “não resultou demonstrada a pretensão da autora da existência de uma duplicação de descrições, resultando da documentação junta aos autos e, bem assim, da perícia realizada, de que se trata de artigos e prédios diferentes”.

A recorrente sustenta o contrário, ou seja, que, tendo as matrizes e as descrições no registo do prédio de que é proprietária e do prédio apreendido na insolvência por objecto uma área que coincide na quase totalidade, é forçoso concluir que se verifica uma duplicação de inscrições na matriz e de descrições prediais.

Em face da matéria de facto provada, em particular daquela que consta dos n.ºs 18 e 19, impõe-se concluir que a recorrente tem razão.

A intenção, não provada, com que a agora insolvente apresentou o requerimento descrito no n.º 11, é irrelevante para a decisão desta acção. Relevante é saber se, objectivamente, a apreensão realizada no processo de insolvência perturba o exercício do direito de propriedade da recorrente sobre o prédio referido no n.º 4, assim justificando a separação do prédio em causa da massa insolvente nos termos dos artigos 141.º, n.º 1, al. c), e 146.º do CIRE.

Tenha-se em conta, a este propósito, que a aquisição do prédio referido no n.º 4 pela recorrente foi inscrita no registo predial pela AP 3261 de 06/09/2010 (n.º 5) e que a descrição predial referida no n.º 15 apenas foi aberta em 02.12.2013, como resulta do documento aí dado como reproduzido. Logo, a recorrente goza da prioridade e da presunção que resultam dos artigos 6.º, n.º 1, e 7.º do Código do Registo Predial.

Ora, está provado que a inscrição na matriz a que o requerimento descrito no n.º 11 deu origem e a ulterior descrição no registo predial gerada nas circunstâncias descritas nos n.ºs 13 a 15 têm por objecto uma área que se sobrepõe, quase totalmente, a uma parte da área do prédio referido no n.º 4, propriedade da recorrente. Mais precisamente, dos 7.383,5 m2 medidos na planta que instruiu o requerimento referido no n.º 11, 6.779,8 m2 constituem área do prédio pertencente à recorrente, ficando fora deste apenas uma área de 603,7 m2, provavelmente pertencente a outro prédio, atenta a sua exiguidade.

Perante esta realidade, não pode concluir-se, como se concluiu na sentença recorrida, que o prédio referido no n.º 4, pertencente à recorrente, e o prédio apreendido no processo de insolvência, são distintos. Em face dos factos provados, a conclusão que se impõe é a oposta: a área abrangida pela matriz e pela descrição relativas ao prédio apreendido situa-se quase totalmente no interior do prédio pertencente à recorrente, o que significa que aquele prédio, tal como é ali configurado, não existe. A aparência que resulta da matriz e do registo predial não tem correspondência física, no terreno. Não obstante, tal aparência esteve na origem de uma apreensão cuja manutenção perturba o exercício do direito de propriedade da recorrente sobre o prédio referido no n.º 4, cuja aquisição foi levada ao registo predial em data anterior e, além disso, é efectivamente exercido, nos termos descritos no n.º 10.

Sendo assim, a única forma de pôr cobro à descrita perturbação do exercício do direito de propriedade da recorrente sobre o prédio referido no n.º 4 é a separação do pretenso prédio apreendido no processo de insolvência, que na realidade não existe tal como se encontra configurado na matriz e no registo predial, o cancelamento da sua inscrição na matriz e a inutilização da sua descrição no registo predial. Daí que o recurso deva ser julgado procedente. A sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por acórdão que julgue a acção procedente.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, na procedência do recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a acção procedente, decretando-se a separação, da massa insolvente de Sociedade 1, S.A., do prédio rústico descrito sob o n.º 12968/(...) e inscrito sob o n.º 21.696 da União das Freguesias de (...), bem como a inutilização e o cancelamento das referidas descrição predial e inscrição na matriz.

Custas a cargo da massa insolvente.

Notifique.

*

Évora, 15.12.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)


Acórdão da Relação de Évora de 06.06.2024

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