Processo n.º 1176/17.3T8OLH-F.E1
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Sumário:
Se for apreendido para a massa insolvente um pretenso prédio
rústico, descrito no registo predial mas cuja área, na realidade, se sobrepõe
quase totalmente a parte da área de um outro prédio, descrito no registo desde
data anterior, cuja aquisição aí se encontra inscrita a favor da sua
proprietária e sobre o qual esta actua de forma correspondente ao exercício
desse direito real, tem a mesma proprietária o direito de obter a separação do
prédio apreendido da massa insolvente. A proprietária tem ainda o direito de
obter a inutilização da descrição do prédio apreendido no registo predial e o
cancelamento da inscrição do mesmo prédio na matriz.
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Por apenso ao processo de insolvência de Sociedade 1, S.A., Sociedade
2, Lda., propôs acção de verificação ulterior do direito à separação de bens da
massa insolvente, nos termos do artigo 146.º do CIRE, contra a insolvente, a massa
insolvente e os credores desta. A autora pediu que seja ordenada a separação,
da massa insolvente, do prédio rústico descrito sob o n.º 12968/(...) e
inscrito sob o n.º 21.696 da União das Freguesias de (...), e que seja ordenada
a inutilização e o cancelamento de tais descrição predial e inscrição na
matriz.
Massa Insolvente de Sociedade 1, S.A., contestou, pugnando pela
improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto
do litígio e o enunciado dos temas de prova.
Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi
proferida sentença julgando a acção improcedente.
A autora interpôs recurso de apelação da sentença, tendo
formulado as seguintes conclusões:
A) A decisão sobre a matéria de facto deve ser objecto de
impugnação, uma vez que existem meios de prova que impunham decisão diversa da
recorrida, podendo este venerando tribunal alterá-la, nos termos do artigo
662.º do CPC.
B) No entender da autora, e ressalvado o devido respeito, a meritíssima
juíza da 1ª. instância fez uma errada apreciação da prova produzida, porquanto,
por um lado, do elenco da matéria de facto julgada provada não constam factos
que foram provados e são relevantes à boa apreciação da causa, e por outro
lado, existem factos que foram considerados não provados e se encontram demonstrados
nos autos.
C) Os factos que não constam do elenco da factualidade assente e
que a autora considera terem sido provados e serem relevantes à boa apreciação
da causa são os seguintes (por referência à petição inicial):
14.º A autora, como consta
do documento junto sob o n.º 1, adquiriu o prédio à agora insolvente, que, por
sua vez, o tinha adquirido à Sociedade 3, Lda., por escritura pública lavrada
em 02 de Abril de 1998, no Cartório Notarial de (…), da qual se junta cópia, e
cujo teor se dá por integralmente reproduzido - doc. 7.
15.º O prédio já tinha a
área e os limites actuais quando foi adquirido pela insolvente à Sociedade 3,
Lda..
26.º Com efeito, a insolvente,
enquanto foi proprietária do prédio, não procedeu a qualquer operação de
destaque, divisão ou fraccionamento do prédio, destinada a autonomizar a
parcela rústica dos 6300m2 (seis mil e trezentos metros quadrados), ou qualquer
outra área, mantendo-se o prédio com a mesma área e configuração durante todo o
período de tempo que lhe pertenceu, e foi assim que a insolvente o transmitiu à
autora.
D) O facto alegado no artigo 14.º da petição inicial está
demonstrado por documento autêntico (junto com a petição inicial sob o nº 7),
que faz prova plena dos factos atestados – artigo 371.º n.º 1 do Código Civil.
E) Quanto aos factos alegados nos artigos 15.º e 26.º da petição
inicial, os meios probatórios que impunham que estes factos fossem julgados
provados são constituídos pelas certidões prediais juntas com a petição inicial
sob os documentos n.ºs 3 e 13, das quais não consta terem estes prédios sido
constituídos a partir de outro prédio (artigo 85.º do CRP), e pelos depoimentos
das testemunhas inquiridas na sessão de julgamento do dia 11/02/2022, Jorge
(depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível
na aplicação informática, com início às 14:53h e termo às 15:20h), David (depoimento
gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na
aplicação informática, com início às 15:22h e termo às 15:48h), e Artur
(depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital,
disponível na aplicação informática, com início às 15:49h e termo às 16:06h), e
ainda pelo depoimento da testemunha Deolinda, prestado na sessão de julgamento
de 06/05/2022 (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital,
disponível na aplicação informática, com início às 14:23h e termo às 14:50h).
F) Todas as testemunhas afirmam, sem margem para dúvidas, com
conhecimento pessoal e directo dos factos, que a insolvente, que adquiriu o
prédio urbano 34/(…) em 1998, manteve o imóvel vedado pelos mesmos limites desde
o tempo em que o adquiriu até o ter transmitido à Autora (31/08/2010), não
sendo o mesmo sujeito a qualquer operação de onde resultasse uma qualquer
alteração da sua área.
G) Os factos que foram considerados não provados, e que a autora
entende que se encontram demonstrados nos autos, são os seguintes (por reporte
ao elenco dos factos não provados constante da douta sentença recorrida):
2. Em face do dito
requerimento (doc. 8), foi criada uma nova matriz pela administração fiscal, à
qual foi atribuída inicialmente o artigo 22458/(…), e é atualmente o artigo
21696 da União das Freguesias de (…).
4. Trata-se de uma situação
de duplicação de descrições, que tem de ser corrigida, dando-se por inutilizada
a descrição do prédio descrito sob o n.º 12968/(...).
H) Os meios probatórios, que impunham uma decisão sobre a
matéria de facto diferente da que veio a ser proferida, em relação ao facto n.º
2 do elenco dos factos não provados, são constituídos: i) pelo requerimento
(documento junto com a petição inicial sob o nº 8), que deu origem à criação da
matriz rústica 21696/União das Freguesias de (…) (inicialmente 22458 da freguesia
de (…)); ii) pela caderneta predial referente à matriz predial rústica
21696/União das Freguesias de (…) (documento junto com a petição inicial sob o
n.º 11) da qual consta que o prédio foi inscrito na matriz em 2008 e que o
artigo matricial 21696 da União das Freguesias de (…) provém do artigo 22458 da
freguesia de (…); iii) pela informação prestada pela AT – Autoridade Tributária
e Aduaneira no âmbito do processo de execução n.º 5305/14.0T8LRS, constante da
certidão junta aos autos sob a refª. 8505753 de 22/12/2020 (ficheiro 9), que
identifica o prédio rústico em causa como sendo o artigo 22458 da freguesia 100917
– (…) ; iv) pelo próprio requerimento de abertura da descrição predial
(documento junto com a p.i. sob o n.º 12) em que o agente de execução que o
subscreve indica que o prédio rústico se encontra inscrito sob o artigo 22458
da freguesia de (…).
I) Com a entrada em vigor da Lei n.º 11-A/2013, de 28/01,
procedeu-se à reorganização administrativa do território das freguesias, do que
resultou a agregação das freguesias de (…) e (…), ambas do concelho de (…),
verificando-se a necessidade de proceder à renumeração e redenominação dos
artigos matriciais, motivo pelo qual a matriz 22458 da freguesia de (…) deu
lugar à matriz 21696 da União das Freguesias de (…).
J) No que toca ao facto n.º 2 do elenco dos factos não provados,
a perícia realizada nos autos, diga-se, rigorosa e exaustiva, é absolutamente
peremptória quanto ao facto do prédio rústico 12968/(...) se encontrar fisicamente
na mesma área do prédio urbano 34/(…), identificando o perito que aquele prédio
se encontra em área abrangida pela delimitação física deste prédio, numa
superfície de 6.756,8 m2.
L) Se ambas as matrizes e descrições prediais têm por objecto a
mesma área, forçoso é reconhecer que existe uma duplicação, tanto de matrizes,
como de descrições, já que não pode haver mais do que uma matriz e descrição
para cada prédio, atenta a respectiva finalidade, que é a da identificação
física, económica e fiscal do prédio – artigo 12.º, n.º 1, do Código do Imposto
Municipal Sobre Imóveis (CIMI) e artigo 79.º, n.º 1, do Código do Registo
Predial (CRP).
M) A decisão recorrida assenta no entendimento de que a área do
prédio rústico 12968/(...) corresponde a uma superfície autónoma e distinta da área
do prédio urbano 34/(…), o que não está de acordo com os factos apurados.
N) A conclusão a retirar dos factos só pode ser a contrária à
acolhida na douta decisão recorrida, porquanto resulta evidente da matéria de
facto apurada que o prédio rústico 12968/(...) não corresponde a uma superfície
autónoma e distinta da área do prédio urbano 34/(...), com excepção da área com
603,7m2, que fica situada em terreno confinante.
O) Não se mostra relevante apurar qual o objectivo que a insolvente
pretendia alcançar com a apresentação do requerimento que deu origem à criação
da matriz rústica 21696/União das Freguesias de (...) e (...) (inicialmente
22458 da freguesia de (...)), uma vez que, o que aos autos interessa
efetivamente é que a insolvente requereu a inscrição na matriz de um prédio
rústico cuja área já se encontrava inscrita na matriz urbana 3524/União das Freguesias
de (...) e (...) (inicialmente 2081 da freguesia de (...)), o que veio a
originar duplicação de matrizes, e, posteriormente, por via de um processo
executivo (proc. 194895/11.9Y1PRT-A), a duplicação de descrições prediais.
P) A descrição predial do prédio urbano 34/(...) foi aberta em
12 de Fevereiro de 1985, e consta da mesma que a aquisição do prédio a favor da
autora foi inscrita no registo predial pela Ap. 3261 de 06/09/2010, tendo a autora
junto aos autos o título de onde lhe advém o direito de propriedade inscrito no
registo predial, estabelecendo, inclusive, o trato sucessivo.
Q) Para mais, ficou demonstrado nos autos que a autora, desde
que adquiriu o prédio urbano 34/(...), o possui e explora, de forma contínua e ininterrupta,
na presença e observação de quem quer que seja, sem qualquer oposição.
R) No que concerne à descrição predial do prédio rústico 12968/(...),
aberta em 02 de Dezembro de 2013, com base na inscrição de uma penhora, consta
inscrito um encargo – penhora – constituído a favor do credor Sociedade 4, S.A.
sobre a insolvente, sendo tal facto inscrito no registo predial pela Ap. 1357
de 02/12/2013, e não tendo a insolvente junto aos autos qualquer documento, nem
tão pouco alegou na contestação quaisquer factos, que possam, ainda que
remotamente, justificar ou atribuir à insolvente a titularidade do prédio
rústico 12968/(...).
S) Tendo em conta os princípios da prioridade do registo e das
presunções derivadas do registo, acolhidos nos artigos 6.º e 7.º do CRP, e
tendo ambos os prédios áreas coincidentes, a descrição predial do prédio urbano
34/(...) tem forçosamente de prevalecer sobre a descrição predial do prédio rústico
12968/(...).
T) Tendo resultado demonstrado, por prova pericial, que o prédio
rústico 12968/(...), que foi apreendido para a massa insolvente, apresenta-se maioritariamente,
com excepção da área com 603,7m2, em área também abrangida pela área do prédio
urbano 34/(...), propriedade da autora, é por demais evidente que a autora é
titular de um direito de propriedade que é incompatível com a apreensão efectuada
pela massa insolvente, pelo que, nos termos dos artigos 141.º, n.º 1, al. c), e
146.º, n.º 1, do CIRE, a autora tem legitimidade para pedir e obter a separação
da massa insolvente do mencionado bem que foi indevidamente apreendido, uma vez
que este é insuscetível de apreensão para a massa.
U) Constitui uma distorção do sistema o facto de existirem
diferentes identificações registrais e matriciais para um prédio que é
fisicamente o mesmo, devendo proceder-se à correcção da situação através da
eliminação e cancelamento da descrição e matriz prediais que foram
indevidamente inscritas – artigos 79.º, n.ºs 1 e 2, e 86.º, do CRP, e artigo
108.º do CIMI.
V) A descrição predial do prédio urbano 34/(...) e a matriz
predial urbana 3524/União das Freguesias de (...) e (...) devem permanecer por
corresponderem à concreta e real situação do prédio em causa nos autos, que é
propriedade da autora, devidamente comprovada, não só em termos registrais, mas
também por aplicação das regras e princípios do direito substantivo.
X) Assim, justifica-se o cancelamento, com a consequente
inutilização, da descrição predial do prédio rústico 12968/(...) e da matriz
predial rústica 21696/União das Freguesias de (...) e (...), por, na verdade,
se tratar de uma duplicação, ainda que parcial, da descrição predial do prédio
urbano 34 / (...) e da matriz predial urbana 3524/União das Freguesias de (...)
e (...).
Z) Sendo, todavia, douta, a decisão recorrida violou por erradas
interpretação e aplicação as disposições legais anteriormente citadas, e as
mais ao caso aplicáveis.
A recorrida Massa Insolvente de Sociedade 1, S.A. apresentou
contra-alegações, com as seguintes conclusões:
A. Veio a recorrente interpor uma acção de verificação ulterior
do direito à separação de bens da massa insolvente.
B. Com fundamento de que havia sido indevidamente apreendido
para a massa insolvente pelo administrador da insolvência um prédio rústico
descrito sob o n.º 12968/(...) e inscrito sob o artigo 21696.
C. Com efeito, a autora havida adquirido em 2010 descrito na 2.ª
Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 34, e inscrito na matriz
predial rústica sob o artigo 2081 da então freguesia de (...), actualmente
inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 3524 da União das Freguesias de
(...), proveniente do artigo 2081 da extinta freguesia de (...).
D. A autora, havia então adquirido o prédio à insolvente, que,
por sua vez, o tinha adquirido à Sociedade 3, Lda..
E. Sucede que em 2007 a insolvente requereu a inscrição de um
prédio rústico, omisso na matriz, sito em (…), freguesia de (...), composto de
terra de cultura, com a área de 6300 m2 (seis mil e trezentos metros
quadrados), a confrontar do norte com herdeiros de (…), sul e nascente com
serventia pública e do poente com (…).
F. Alega então a recorrente que tal parcela rústica de 6300 m2
nunca chegou a ser destacada do aludido prédio (identificado no artigo 3.º)
que, entretanto, foi transmitido à recorrente com a mesma configuração que
sempre teve.
G. Sucede que a ré não reconhece a autora como proprietária do
referido bem, por considerar tratarem-se de prédios distintos, o imóvel
encontra-se assim devidamente apreendido pelo administrador nos autos de
insolvência para a massa insolvente, conforme se demonstrará.
H. Mais, se diga, que segundo apurou o administrador da
insolvência, sob o referido prédio da massa insolvente encontra-se edificado
bem imóvel que será inclusivamente habitação de pessoa especialmente ligada à
insolvente (o seu administrador de facto).
I. Nesta conformidade, o bem apreendido, é propriedade exclusiva
da sociedade insolvente e por conseguinte apreensível para a massa insolvente,
o que veio a ser efectivada e bem pelo administrador da insolvência, conforme
confirmou o douto tribunal de 1ª instância.
J. Inexiste assim a duplicação de descrições, tratando-se de
artigos e prédios diferentes, pelo que deverá manter-se a apreensão do prédio
descrito sob o n.º 12968 (...).
K. Assim e conforme teve a ré agora recorrida oportunidade de
defender, o requerimento que a insolvente apresentou nas finanças foi a
solicitar a inscrição de um prédio rústico omisso na matriz, sito em (…),
freguesia de (...), composto de terra de cultura com a área de 6300m2.
L. Em momento nenhum resulta dos documentos juntos pela autora
que foi solicitado o destaque de uma parcela de terreno do prédio descrito na
2.ª Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 34, e inscrito na matriz
predial rústica sob o n.º 2081 (actual n.º 3524).
M. Assim, não resulta do referido requerimento que a pretensão
da insolvente fosse realizar qualquer destaque que permitisse a separação de um
prédio urbano em duas parcelas autónomas, o que o requerente veio solicitar,
foi algo bem diferente, existia um prédio rústico que se encontrava omisso na
Autoridade Tributária.
N. E encontrava-se omisso, por não pertencer ao artigo matricial
n.º 2081, nem com este se encontrar correlacionado, ou seja, o proprietário
emitiu uma declaração para inscrição do prédio, pelo facto de o mesmo se
encontrar omisso, tendo dado conhecimento desse facto às entidades competentes.
O. Pelo que o propósito, ao contrário do alegado pela autora,
nunca poderia ser autonomizar dentro do prédio vendido, uma parcela rústica,
pelo que se deixa expressamente impugnado o artigo 17.º da petição inicial.
P. Concordando-se em absoluto com o douto tribunal a quo que as testemunhas da autora agora
recorrente não vieram contradizer a prova documental nem provar a pretensão da autora
de que se tratou de uma duplicação de descrições associadas ao mesmo bem em
virtude da pretensão de fraccionamento de parte do prédio que nunca se chegou a
efectivar.
Q. Assim, nenhuma das testemunhas alegou que se tentou proceder
ao destaque de uma parcela de terreno, não apresentando qualquer conhecimento
sobre a forma como resultou a criação deste prédio.
R. Também do requerimento apresentado junto da Autoridade
Tributária que a pretensão da insolvente foi solicitar a inscrição na matriz de
um prédio rústico que se encontrava omisso na AT.
S. Mais se diga que o prédio apreendido para a massa insolvente,
conforme resulta da respectiva caderneta “teve origem no artigo 22458”, não se
mencionando em nenhum local que o mesmo provinha do artigo 2081 (o prédio da autora).
T. De realçar que quando a autora adquiriu em 2010 o prédio
urbano sito em (…), freguesia de (...), concelho de (…), descrito na 2.ª
Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 34, e inscrito na matriz
predial rústica sob o artigo 2081 da então freguesia de (...), actualmente,
inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 3524 da União das Freguesias de
(...), proveniente do artigo 2081 da extinta freguesia de (...), já o prédio
rústico em causa tinha sido inscrito na matriz, o que sucedeu em 2007.
U. Mais a autora, aquando da compra, tinha conhecimento deste
facto, conforme vieram demonstrar as testemunhas arroladas, nomeadamente o senhor
Artur (Ficheiro...).
V. Assim, à data da celebração da escritura, já existiam 2
(dois) prédios, o urbano e o rústico que permaneceu na esfera jurídica da insolvente
até à apreensão pela massa insolvente.
W. Por todo o exposto andou bem o douto tribunal que “não resultou demonstrada a pretensão da
autora da existência de uma duplicação de descrições, resultando da documentação
junta aos autos e, bem assim, da perícia realizada, de que se trata de artigos
e prédios diferentes pelo que deverá manter-se a apreensão do prédio descrito sob
o n.º 12968 (...), devendo improceder a pretensão da Autora.”.
X. Assim face à prova produzida, documental pericial e
testemunhal, dúvidas não restam de que fez justiça o douto tribunal a quo.
Y. Ora, ninguém sabe como resultou a criação do prédio, não
tendo resultado provada a “tese” da autora ora recorrente.
Z. O que as testemunhas sabem é que quando a autora adquiriu em
2010 o prédio urbano, já o prédio rústico da ré tinha sido inscrito na matriz,
o que sucedeu em 2007.
AA. Mais, todos identificam na referida parcela a habitação do administrador
(“de facto”) da insolvente.
BB. E todos falam da mesma pessoa que nela habita desde sempre,
o “Sr. Diamantino”, dono de todas as empresas e a pessoa que dá as ordens.
CC. Nestes termos, nenhuma das testemunhas alegou que se tentou
proceder ao destaque de uma parcela de terreno, não apresentando qualquer
conhecimento sob a forma como resultou a criação deste prédio.
DD. Também dos documentos juntos aos autos, nomeadamente do
requerimento apresentado junto da Autoridade Tributária que a pretensão da
insolvente foi solicitar a inscrição na matriz de um prédio rústico que se
encontrava omisso na AT.
EE. Assim não existiu nenhuma duplicação de descrições,
resultando da documentação junta aos autos da perícia realizada e da prova
testemunhal, de que se tratam de imóveis diferentes pelo que deverá manter-se a
apreensão pelo administrador da insolvência.
O recurso foi admitido.
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A questão fundamental a
resolver consiste em saber se à descrição no registo predial e à inscrição na
matriz do prédio rústico, apreendido no processo de insolvência da sociedade Sociedade
1, S.A., cuja separação da massa insolvente a recorrente pretende, corresponde
um prédio realmente existente, ou, em vez disso, tais descrição e inscrição têm
por objecto parte de um prédio, de maior dimensão, de que a recorrente é
proprietária, descrito no registo predial e inscrito na matriz em datas
anteriores, assim pondo em causa esse direito de propriedade.
*
Na sentença recorrida,
foram julgados provados os seguintes factos:
1. A ré Sociedade 1, S.A.
foi declarada insolvente por sentença de 5 de Dezembro de 2017.
2. Nos autos de
insolvência foi apreendido para a massa insolvente o prédio rústico descrito no
registo predial o n.º 12968/(...) e inscrito na matriz predial rústica sob o
artigo 21696.
3. A autora é uma
sociedade comercial por quotas, de responsabilidade limitada, constituída em
Dezembro de 2009, que tem por objecto a compra e venda de imóveis e a gestão de
imóveis próprios.
4. Em 31 de Agosto de 2010
a autora e a Sociedade 3, Lda. (posteriormente redenominada Sociedade 1, S.A.,
ora insolvente) outorgaram a escritura pública de compra e venda, da qual se
junta cópia, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, em que a Sociedade
3, Lda. declarou vender à autora, e esta declarou comprar-lhe, pelo preço de € 350.000,00
(trezentos e cinquenta mil euros), o prédio urbano composto de casa de
habitação, com garagem, oficinas, paióis, telheiros, terreno de cultura, pinhal
e pedreiras em exploração, sito em (…), freguesia de (...), concelho de (...),
descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 34, e
inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2081 da então freguesia de (...).
5. A aquisição do prédio a
favor da autora foi inscrita no registo predial pela Ap. 3261 de 06/09/2010.
6. Actualmente, o prédio
está inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 3524 da União das
Freguesias de (...), proveniente do artigo 2081 da extinta freguesia de (...),
encontrando-se o mesmo inscrito a favor da autora.
7. Da escritura de compra
e venda celebrada não consta qual a área do mencionado prédio adquirido pela autora,
constando dos documentos a ele referentes (caderneta predial e certidão
permanente) que o prédio tem 100.000 m2.
8. O mencionado prédio
compõe-se de casa de habitação, com garagem, oficinas, paióis, telheiros,
terreno de cultura, pinhal e pedreira, e confronta a norte com (…) e outros, a
sul com (…), a nascente com linha do caminho de ferro e caminho, e a poente com
colector hidráulico e (…).
9. O prédio encontra-se
vedado pelos seus limites, sendo a vedação constituída por um muro de
alvenaria, sendo o acesso ao seu interior efectuado através de diversos portões
existentes na vedação.
10. Desde que adquiriu o prédio
que a autora o possui e explora, de forma contínua e ininterrupta, na presença
e observação de quem quer que seja, sem qualquer oposição, sendo a área
construída afecta a habitação dos colaboradores da empresa, a oficina, e ao
armazenamento de equipamentos, veículos e equipamentos da autora, e a parte restante,
que é utilizável, destinada a parque de estacionamento, áreas ajardinadas,
cultivo de árvores de fruto e vinha.
11. Em 20 de Julho de
2007, a insolvente deu entrada no 2.º Serviço de Finanças de (...) do
requerimento a solicitar a inscrição de um prédio rústico, omisso na matriz,
sito em (...), freguesia de (...), composto de terra de cultura, com a área de
6.300 m2 (seis mil e trezentos metros quadrados), a confrontar do norte com
herdeiros de (…), sul e nascente com serventia pública e do poente com (…) -
documento 8 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente
reproduzido.
12. Tal prédio encontra-se
inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 21696, com a área de 6.300 m2
com as seguintes confrontações: de norte com herdeiros de (…), de sul com
serventia pública, de nascente com serventia pública e de poente com (…),
constando da caderneta predial que “teve
origem no artigo 22458”.
13. No âmbito do processo
de execução a correr termos no então 2.º Juízo do Tribunal Judicial de
Alenquer, sob o n.º 194895/11.9Y1PRT-A, em que foi exequente Sociedade 5, S.A.,
e executada a ora insolvente, o agente de execução, após consulta ao serviço de
finanças, e constatando a existência da dita matriz em nome da executada,
procedeu à penhora do dito imóvel.
14. Seguidamente, o agente
de execução apresentou no registo predial a requisição com vista à inscrição da
penhora, conforme documento 12 junto com a petição inicial e cujo teor se dá
por integralmente reproduzido.
15. Uma vez que o prédio penhorado
não se encontrava descrito no registo predial, foi aberta uma nova descrição, à
qual foi atribuída o n.º 12968/(...) - doc. 13. cujo teor se dá por
integralmente reproduzido.
16. Não obstante os
títulos do prédio identificado em 9 e 10 supra indicar que o prédio apresentará
uma área de 6.300,0 m2, a medição da superfície deste polígono a que respeitará
esse prédio ascende a 7.383,5 m2.
17. Em relação ao prédio
da autora, a área que é passível de ser medida, e que se apresenta murada e
delimitada no local, actualmente ascende a 93.617,6 m2, aspecto que fica aquém
dos 10 Ha, ou 10.000 m2, mencionados nos respectivos títulos.
18. O prédio da ré
apresenta-se maioritariamente em área também ela abrangida pela delimitação
física do prédio dos autores.
19. A excepção será uma
área rectangular na estrema norte com 603,7 m2, e que está fora da área
fisicamente delimitada por intermédio de muros de vedação.
A sentença recorrida
julgou não provados os seguintes factos:
1. O propósito do
requerimento mencionado no ponto 9 dos factos provados era autonomizar dentro
do prédio uma parcela rústica com a área de 6300 m2 (seis mil e trezentos
metros quadrados), o que nunca veio a acontecer.
2. Em face do dito
requerimento (doc. 8), foi criada uma nova matriz pela administração fiscal, à
qual foi atribuída inicialmente o artigo 22458/(...), e é actualmente o artigo
21696 da União das Freguesias de (...).
3. Não existe qualquer
título que justifique ou permita atribuir à insolvente a titularidade do prédio
descrito sob o n.º 12968/(...).
4. Trata-se de uma
situação de duplicação de descrições, que tem de ser corrigida, dando-se por
inutilizada a descrição do prédio descrito sob o n.º 12968/(...).
*
Impugnação da decisão
sobre a matéria de facto:
A recorrente pretende que
seja julgado provado o conteúdo dos artigos 14.º, 15.º e 26.º da petição
inicial.
Os factos alegados no
artigo 14.º da petição inicial foram expressamente admitidos na contestação e
resultam dos documentos apresentados com aquele articulado sob os n.ºs 2 e 7,
pelo que devem ser julgados provados.
Os factos alegados nos
artigos 15.º e 26.º da petição inicial resultam do documento junto a este
articulado sob o n.º 3, que é uma certidão do registo relativo ao prédio
referido no n.º 4 da matéria de facto provada. Do registo predial não consta
qualquer alteração da área desse prédio, nomeadamente por efeito de alguma
operação de destaque, divisão ou fraccionamento, como teria de acontecer na
hipótese de alguma dessas operações ter sido efectuada. As testemunhas Jorge,
David, Artur e Deolinda, cujos depoimentos ouvimos na totalidade, corroboraram
os factos em causa. Estas testemunhas conhecem o prédio, a primeira e a terceira
há cerca de 20 anos, a segunda há cerca de 15 anos e a quarta há cerca de 25
anos, e todas elas afirmaram, peremptoriamente, que aquele se encontra bem
demarcado no terreno – o que é confirmado pela prova pericial – e que, desde
que o conhecem, o mesmo não sofreu qualquer alteração de área. Consequentemente,
também os factos alegados nos artigos 15.º e 26.º da petição inicial devem ser
julgados provados.
Por outro lado, a
recorrente pretende que o conteúdo dos n.ºs 2 e 4 dos factos que o tribunal a quo julgou não provados seja julgado
provado pelo tribunal ad quem.
No que concerne ao
conteúdo do n.º 2, a recorrente tem razão. Está provado que, em 20.07.2007, a
insolvente deu entrada, no 2.º Serviço de Finanças de (...), de requerimento a
solicitar a inscrição de um prédio rústico, omisso na matriz, sito em (...),
freguesia de (...), composto de terra de cultura, com a área de 6.300 m2, a
confrontar do norte com herdeiros de (…), do sul e nascente com serventia
pública e do poente com (…), conforme documento apresentado com a petição
inicial sob o n.º 8 (n.º 11) e que tal prédio se encontra inscrito na matriz
predial rústica sob o artigo 21696, com a área de 6.300 m2 com as seguintes
confrontações: do norte com herdeiros de (…), do sul com serventia pública, de
nascente com serventia pública e de poente com (…), constando da caderneta
predial que “teve origem no artigo 22458”
(n.º 12). Estando provados estes factos, é contraditório julgar não provado
que, em face do requerimento que constitui o documento apresentado com a
petição inicial sob o n.º 8, a administração fiscal criou um novo artigo na
matriz. Tendo sido requerida a inscrição, na matriz, de um prédio nela omisso e
aparecendo, posteriormente, o mesmo prédio inscrito na matriz, forçosamente
isso aconteceu na sequência desse requerimento. Aliás, é isto que resulta dos
documentos apresentados com a petição inicial sob os n.ºs 8 e 11. O
requerimento para inscrição na matriz deu entrada no 2.º Serviço de Finanças de
(...) em 20.07.2007 e, conforme consta do documento n.º 11, aquela inscrição
teve lugar no ano de 2008. Concluindo, o conteúdo do n.º 2 dos factos não
provados deverá transitar para o enunciado dos factos provados.
O mesmo não deverá
acontecer relativamente ao n.º 4 dos factos não provados, pela exclusiva razão
de se tratar de matéria puramente conclusiva. Como adiante veremos, a conclusão
de que se verifica uma situação de sobreposição quase total de descrições
prediais é correcta, mas não deve constar, nem dos factos provados, nem dos não
provados. Em vez de transitar para o enunciado dos factos provados, o n.º 4 dos
factos não provados deverá ser suprimido.
Concluindo:
- São aditados à matéria
de facto provada os seguintes números:
20. A autora comprou o prédio referido em 4 à agora insolvente,
a qual, por sua vez, o tinha adquirido à Sociedade 3, Lda., através de
escritura pública lavrada em 02.04.1998, que constitui o documento junto à
petição inicial sob o n.º 7 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
21. O prédio referido em 4 já tinha a área e os limites actuais
quando a insolvente o comprou à Sociedade 3, Lda..
22. Enquanto foi proprietária do prédio referido em 4, a
insolvente não procedeu a qualquer operação de destaque, divisão ou
fraccionamento do mesmo, destinada a autonomizar a parcela rústica com 6.300 m2
ou qualquer outra área, mantendo-se o prédio com a mesma área e configuração
durante todo o período de tempo que lhe pertenceu, e foi assim que a insolvente
o vendeu à autora.
23. Em face do requerimento referido em 11, a administração
fiscal criou um novo artigo na matriz, referido em 12;
- É suprimido o n.º 4 dos
factos não provados.
Verificação dos
pressupostos do direito à separação:
Concluiu-se, na sentença
recorrida, que “não resultou demonstrada
a pretensão da autora da existência de uma duplicação de descrições, resultando
da documentação junta aos autos e, bem assim, da perícia realizada, de que se
trata de artigos e prédios diferentes”.
A recorrente sustenta o
contrário, ou seja, que, tendo as matrizes e as descrições no registo do prédio
de que é proprietária e do prédio apreendido na insolvência por objecto uma
área que coincide na quase totalidade, é forçoso concluir que se verifica uma
duplicação de inscrições na matriz e de descrições prediais.
Em face da matéria de
facto provada, em particular daquela que consta dos n.ºs 18 e 19, impõe-se
concluir que a recorrente tem razão.
A intenção, não provada,
com que a agora insolvente apresentou o requerimento descrito no n.º 11, é
irrelevante para a decisão desta acção. Relevante é saber se, objectivamente, a
apreensão realizada no processo de insolvência perturba o exercício do direito
de propriedade da recorrente sobre o prédio referido no n.º 4, assim
justificando a separação do prédio em causa da massa insolvente nos termos dos
artigos 141.º, n.º 1, al. c), e 146.º do CIRE.
Tenha-se em conta, a este
propósito, que a aquisição do prédio referido no n.º 4 pela recorrente foi
inscrita no registo predial pela AP 3261 de 06/09/2010 (n.º 5) e que a
descrição predial referida no n.º 15 apenas foi aberta em 02.12.2013, como
resulta do documento aí dado como reproduzido. Logo, a recorrente goza da
prioridade e da presunção que resultam dos artigos 6.º, n.º 1, e 7.º do Código
do Registo Predial.
Ora, está provado que a
inscrição na matriz a que o requerimento descrito no n.º 11 deu origem e a
ulterior descrição no registo predial gerada nas circunstâncias descritas nos
n.ºs 13 a 15 têm por objecto uma área que se sobrepõe, quase totalmente, a uma
parte da área do prédio referido no n.º 4, propriedade da recorrente. Mais
precisamente, dos 7.383,5 m2 medidos na planta que instruiu o requerimento
referido no n.º 11, 6.779,8 m2 constituem área do prédio pertencente à
recorrente, ficando fora deste apenas uma área de 603,7 m2, provavelmente
pertencente a outro prédio, atenta a sua exiguidade.
Perante esta realidade,
não pode concluir-se, como se concluiu na sentença recorrida, que o prédio
referido no n.º 4, pertencente à recorrente, e o prédio apreendido no processo
de insolvência, são distintos. Em face dos factos provados, a conclusão que se
impõe é a oposta: a área abrangida pela matriz e pela descrição relativas ao
prédio apreendido situa-se quase totalmente no interior do prédio pertencente à
recorrente, o que significa que aquele prédio, tal como é ali configurado, não
existe. A aparência que resulta da matriz e do registo predial não tem
correspondência física, no terreno. Não obstante, tal aparência esteve na
origem de uma apreensão cuja manutenção perturba o exercício do direito de
propriedade da recorrente sobre o prédio referido no n.º 4, cuja aquisição foi
levada ao registo predial em data anterior e, além disso, é efectivamente
exercido, nos termos descritos no n.º 10.
Sendo assim, a única forma
de pôr cobro à descrita perturbação do exercício do direito de propriedade da recorrente
sobre o prédio referido no n.º 4 é a separação do pretenso prédio apreendido no
processo de insolvência, que na realidade não existe tal como se encontra
configurado na matriz e no registo predial, o cancelamento da sua inscrição na
matriz e a inutilização da sua descrição no registo predial. Daí que o recurso
deva ser julgado procedente. A sentença recorrida deverá ser revogada e
substituída por acórdão que julgue a acção procedente.
*
Dispositivo:
Delibera-se,
pelo exposto, na procedência do recurso, revogar a sentença recorrida e julgar
a acção procedente, decretando-se a separação, da massa insolvente de Sociedade 1, S.A., do
prédio rústico descrito sob o n.º 12968/(...) e inscrito sob o n.º 21.696 da União
das Freguesias de (...), bem como a inutilização e o cancelamento das referidas
descrição predial e inscrição na matriz.
Custas a cargo da massa insolvente.
Notifique.
*
Évora, 15.12.2022
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.º adjunto)
(2.ª adjunta)