Processo n.º 185/22.5T8LGA-B.E1
*
Qualificação
da insolvência.
Incumprimento
da obrigação de manter contabilidade organizada.
Incumprimento
do dever de colaboração.
Incumprimento
do dever de requerer a declaração de insolvência.
Citação.
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Sumário:
1 – Sendo
função da contabilidade de uma sociedade comercial possibilitar um rigoroso
apuramento da situação patrimonial e financeira desta através da sua consulta,
a mesma não é cumprida por uma contabilidade que não evidencia, com um mínimo
de rigor, as despesas realizadas em nome da sociedade a que respeita, os bens
de que esta é titular e os seus créditos e débitos.
2 –
Encontrando-se uma sociedade citada, nos termos do artigo 246.º, n.ºs 2 e 4, do
CPC, numa acção em que é pedida a declaração da sua insolvência, tem de se
considerar que o seu único sócio e gerente, nessa qualidade e para todos os
efeitos, tomou conhecimento da propositura daquela acção.
3 – Nas
circunstâncias referidas em 2, se o único sócio e gerente da sociedade,
entretanto declarada insolvente, se colocar na situação de incontactável, nada
fazendo no sentido de receber a correspondência que o administrador da
insolvência lhe dirige, não prestando as informações que o administrador da
insolvência lhe solicita, por via postal e correio electrónico, e ausentando-se
para parte incerta, assim se esquivando a prestar toda e qualquer informação ou
colaboração, verifica-se uma violação evidente e reiterada do dever de colaboração
previsto no artigo 83.º do CIRE, preenchendo-se assim a previsão do artigo
186.º, n.º 2, al. i), do mesmo código.
*
Carlos Machado
interpôs recurso de apelação da sentença que, julgando procedente o presente
incidente de qualificação da insolvência:
a) Qualificou a
insolvência da Sociedade 1, Lda. como culposa, considerando que esta actuou com
culpa grave;
b) Declarou Carlos Machado
afectado pela qualificação da insolvência de Sociedade 1, Lda. como culposa, em
virtude de actuação com culpa grave;
c) Declarou Carlos Machado
inibido para administrar patrimónios de terceiros durante um período de três
anos;
d) Declarou Carlos Machado
inibido para o exercício do comércio durante um período de três anos, bem como
para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou
civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública
ou cooperativa;
d) Determinou a perda de
quaisquer créditos de Carlos Machado sobre a insolvente e sobre a massa
insolvente;
e) Condenou Carlos Machado
a indemnizar os credores da insolvente até ao montante máximo dos créditos não
satisfeitos, a liquidar.
Conclusões do
recurso:
A) O facto provado 1 está
incorrectamente julgado, pois resulta dos autos que o requerimento de
insolvência foi apresentado em 16.09.2022 e não na data indicada na sentença,
devendo ser considerado provado que:
«A 16.09.2022, Fernando Lopes e Isabel Gomes requereram a
declaração de insolvência de Sociedade 1, Lda.».
B) O facto provado 11 está
incorrectamente julgado, pois o doc. 6 junto ao parecer de qualificação do
administrador, impunha que se considerasse globalmente o teor do documento
(comunicação da contabilista da insolvente de 03-01-2023) de modo a abranger os
elementos a favor do requerido e não apenas o aspecto aparentemente
desfavorável, devendo ser considerado provado que:
«- (…)
A Em relação aos elementos pedidos:
1. Credores da sociedade – no balancete estão reflectidos os
valores dos credores na contabilidade, mas alguns saldos poderão não ser reais,
uma vez que faltam facturas e documentos na contabilidade. Pode ter havido
pagamentos feitos pelo sócio através de contas pessoais ou em numerário que eu
não tenha conhecimento;
2. Devedores da sociedade – no balancete estão refletidos os
saldos dos devedores na contabilidade, no entanto alguns desses montantes podem
ter sido recebidos em numerário pelo sócio ou através de outra conta pessoal
que não tenha conhecimento;
3. Trabalhadores da sociedade insolvente – o único trabalhador
que, neste momento, está registado na Segurança Social é o sócio-gerente.
Continuámos a processar as retribuições até ao momento, pois nunca houve
comunicação do sócio-gerente em contrário;
4. Listagem dos bens patrimoniais da sociedade – envio em anexo
a listagem de activos da sociedade que estão registados na contabilidade. Não
tenho informação se alguns dos bens listados foram vendidos ou não. A listagem
de veículos registados actualmente em nome da sociedade está igualmente em
anexo.
5. Acesso ao Portal da AT – (…)
Acesso ao Portal da SS – (…)
6. IBANs da sociedade – envio em anexo o Mapa de Base de dados
de contas do Banco de Portugal;
7. Elementos contabilísticos dos 3 últimos anos:
a. Balancete analítico de Dezembro 2022;
b. Modelo 22 de 2019, 2020 e 2021;
c. IES de 2019, 2020 e 2021;
d. Modelo 10 de 2019, 2020 e 2021;
e. Anexo ao balanço e DR - Uma vez que a sociedade é
micro-empresa, está dispensada de ter anexo às demonstrações financeiras;
f. Listagem de stocks – desconheço se existe algum stock de
matéria-prima ou não;
g. Mapa de amortizações actual sem ainda as depreciações anuais
de 2022;
h. Relatório de gestão e acta de aprovação de contas - Uma vez
que a sociedade é micro-empresa, está dispensada de ter relatório de gestão. A
acta de aprovação de contas não foi assinada pelo gerente, pois nunca mais tive
contacto com ele.
i. Lista de contratos em vigor - Em relação aos contratos de
arrendamento, mantêm-se activos no Portal das Finanças, mas penso que já estão
cessados. Não tenho conhecimento de mais nenhum contrato.
j. Listagem de activos fixos tangíveis atuais.»
C) O facto provado 9 está
incorretamente julgado, pois o doc. 3 e doc. 4 do parecer, impunham que tivesse
sido julgado provado:
«Tendo entretanto apurado o endereço electrónico (...@....com) do
gerente da Insolvente registado na segurança social, o administrador da
insolvência remeteu e-mail para tal endereço com o conteúdo referido em 7- a
30.12.2022.»
D) O tribunal a quo devia ainda, porque têm interesse
para a decisão da causa, julgar provados os seguintes factos:
«16 – A Sociedade 1, Lda. tem como objecto social a “Mediação e
avaliação imobiliária; administração de imóveis por conta de outrem; gestão de
condomínios; serviços de limpeza e jardinagem, plantação e manutenção de
jardins; compra e venda de imóveis; compra para revenda de imóveis; promoção
imobiliária (desenvolvimento de projectos de edifícios); arrendamento de bens
imobiliários; actividades imobiliárias por conta de outrem; angariação
imobiliária; exploração turística de imóveis; alojamento local, hotelaria e
similares; exploração e administração de alojamento mobilado para turistas e turismo
rural, parques de campismo e outros locais de alojamento de curta e longa
duração; construção de edifícios; Demolição e preparação dos locais de
construção; recolha, tratamento e eliminação de resíduos não perigosos (...).»
Tal facto deveria ser
julgado provado pelos elementos constantes no processo, nomeadamente o ponto 8
dos factos alegados no parecer, não contestado, e certidão comercial (extrato)
da sociedade.
«17 – A Sociedade 1, Lda. laborava comercialmente com a
denominação/nome comercial «AAA», era titular da Licença de Mediação
Imobiliária IMPIC n.º (…) que foi cancelada em …/…/2022.»
tal facto deveria ser
julgado provado pelos doc.1 e doc. 2 juntos pelo requerido na sua oposição.
«18 – O crédito reconhecido sobre a insolvente id. em 14 i)
estava suspenso por pagamento em prestações.»
Tal facto deveria ser
julgado provado pelo doc. 7 do parecer.
«19 - Sob o crédito reconhecido sobre a insolvente id. em 14 ii)
não pendia execução fiscal para cobrança coerciva.»
Tal facto deveria ser
julgado provado pelo doc. 8 do parecer.
E) Mal decidiu o tribunal a quo da subsunção da alínea h) do n.º 2
do art. 186.º CIRE, pois o correcto julgamento do facto provado 11 (que se
impugnou) permite, só por si, uma conclusão distinta, isto é, existe
contabilidade organizada. Mais, os factos provados permitem concluir que não
existe incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter
contabilidade organizada.
F) Porque o AI teve acesso
a todos os elementos contabilísticos da insolvente relativos aos últimos três
anos, não sendo o facto da contabilista referir que verificou no sistema
e-factura a existência de faturas de despesas, das quais não tem o documento
físico, para concluir que não há contabilidade organizada, pois a declaração
fiscal das despesas de uma sociedade comercial é opcional e a contabilista da
insolvente enviou com o doc. 6 do parecer de qualificação a «listagem de facturas que estão em falta na
contabilidade», cujo teor foi ignorado para avaliar o valor económico do
facto e ponderar o impacto nas contas globais da sociedade.
G) Decidiu mal o tribunal a quo na subsunção da alínea i) do n.º 2
do art. 186.º CIRE, pois o dever de colaboração somente é violado nos termos do
art. 83.º CIRE quando o administrador for regularmente contactado e não cumprir
com as obrigações impostas pela citada norma legal, in casu sendo a única morada física e electrónica a da sociedade
insolvente, que é um espaço exclusivamente comercial e o facto provado 17
revela que a sociedade cessou a actividade de mediação imobiliária ainda antes de
ser requerida e decretada a insolvência, não foi feita prova de que as
comunicações do administrador de insolvência chegaram ao conhecimento do
requerido, nem existe presunção legal nesse sentido, não pode ter-se por
assente que as mesmas lhe foram entregues ou chegaram ao seu conhecimento.
H) Contra o assim
decidido, os factos provados não evidenciam uma recusa reiterada de
colaboração, inexistindo fundamento para que se faça da conduta do
administrador uma valoração que justifique a qualificação da insolvência como
culposa.
I) Decidiu mal o tribunal a quo da subsunção da alínea a) do n.º3
do art. 186.º CIRE, pois não foi feita prova que a sociedade estivesse em
pré-insolvência no final de 2020, nem no final do ano 2021, pois não é a
circunstância do facto provado 12 e 13, que coloca a sociedade em situação de
insolvência, a sociedade estava em mora nas suas obrigações, mas não em
incumprimento, veja-se que a sociedade insolvente não estava em incumprimento
com nenhum credor no pagamento das suas obrigações.
J) O requerido não violou
a obrigação de requerer a declaração de insolvência, pois os anos 2020 a 2022
ficaram marcados pela crise pandémica, com os consequentes efeitos na actividade
comercial das empresas e das famílias, não foi feita prova que a sociedade
tivesse continuado a assumir responsabilidade perante terceiros, nomeadamente,
a dívida global à AT é € 13.363,59 sendo que desses € 7.789,37 são relativos a
IVA liquidado do 1.º trimestre de 2022, vencido a partir de 25-05-2022 e € 3.760,44
do 2.º trimestre de 2022, vencido a partir de 21-09-2022, e conforme facto
provado 18, a cobrança estava suspensa por pagamento em prestações.
Questões a
decidir:
1 – Impugnação da decisão
sobre a matéria de facto;
2 – Incumprimento da
obrigação de manter contabilidade organizada;
3 – Incumprimento do dever
de colaboração;
4 – Incumprimento do dever
de requerer a declaração de insolvência.
Factos
julgados provados pelo tribunal a quo:
1 – A 10.09.2020, Fernando
Lopes e Isabel Gomes requereram a declaração de insolvência de Sociedade 1,
Lda..
2 – A Sociedade 1, Lda.
não deduziu oposição a tal pedido e a sua insolvência veio a ser declarada por
sentença de 07.11.2022, transitada em julgado.
3 – A Sociedade 1, Lda. é
uma sociedade comercial por quotas, com o NIPC (…), e com sede na Rua (…), (…),
(…).
4 – A Sociedade 1, Lda.
foi constituída em 15.12.2016.
5 – Desde 06.04.2020, a Sociedade
1, Lda. tem como único gerente Carlos Machado.
6 – Desde 22.09.2020, a Sociedade
1, Lda. tem como único sócio Carlos Machado.
7 – Após a declaração de
insolvência, concretamente a 16.12.2022, o administrador da insolvência remeteu
comunicação postal registada, com aviso de recepção para o gerente da
Insolvente – Carlos Machado – a solicitar um conjunto de informações para o
processo, designadamente: contactos actualizados da gerência; identificação de
todas as acções e execuções pendentes contra a sociedade; identificação de
todos os credores da sociedade, incluindo nome, morada, NIF/NIPC e valor de
crédito; identificação de todos os devedores da sociedade incluindo nome,
morada, NIF/NIPC e valor de débito; relação de trabalhadores da sociedade e
respectivos dados de identificação; identificação do(a) contabilista
certificado(a) e respectivos contactos; listagem de bens patrimoniais da
sociedade, incluindo os detidos em regime de arrendamento, aluguer, locação
financeira ou venda com reserva de propriedade (matrículas de viaturas,
descrições prediais e os números de identificação de pessoas coletivas - caso
detenha participações em sociedades); dados de acesso ao portal da Autoridade
Tributária e ao portal da Segurança Social Direta; identificação de todas as
contas domiciliadas em bancos nacionais ou estrangeiros, devendo ser indicada
qual a conta principal da sociedade; e elementos contabilísticos da sociedade,
referentes aos 3 últimos exercícios.
8 – Tal carta não foi
recebida na sede da sociedade e foi devolvida com a indicação «Objecto não reclamado».
9 – Tendo entretanto
apurado o endereço electrónico do gerente da insolvente registado na segurança
social, o administrador da insolvência remeteu e-mail para tal endereço com o
conteúdo referido em 7, a 30.12.2022.
10 – O administrador da
insolvência não obteve qualquer resposta do gerente da insolvente.
11 – A 02.01.2023 foi
remetida notificação à contabilista da insolvente, a Sr.ª Dr.ª Sandra, a qual
veio responder a 03.01.2023, remetendo a informação solicitada e acrescentando
o seguinte: «informo que nunca mais tive
contacto com o sócio-gerente e que há imenso tempo que não me é entregue
nenhuma documentação da empresa. Faltam-me imensas faturas de gastos da empresa
que consigo verificar que existem através do e-fatura, mas não os tenho
refletidos na contabilidade, pois não me foram entregues nenhumas facturas.
(...) Neste momento existe em dívida para connosco um montante de 1.549,80€
relativo a facturas das nossas avenças até agosto. Deixamos de facturar mais,
pois perdemos o contacto com o sócio e não quisemos aumentar mais ainda a
dívida existente.»
12 – No período compreendido
entre 2019 e 2021, a insolvente apresenta uma diminuição dos seus resultados
operacionais que, no ano 2021, registam valores negativos (€ -13.103,04).
13 – No período
compreendido entre 2019 e 2021, o indicador EBITDA (Earnings before Interest,
Taxes, Depreciation and Amortization/Resultados antes de Juros, Impostos,
Depreciações e Amortizações) – que mede a performance e eficiência operacional –
tem vindo a diminuir, sendo que, em 2021, apresenta valores negativos (€ -9.024,23).
14 – Foram reconhecidos
créditos sobre a insolvente, no valor total de € 46 107,71, entre os quais:
i) Crédito da Autoridade
Tributária e Aduaneira no valor total de € 13.363,59, relativo a prestações de
IUC, IRS e IVA, vencidas desde 2022 e não pagas;
ii) Crédito do Instituto
da Segurança Social IP, relativo a contribuições vencidas desde 2020 e não
pagas, no valor total de € 5.115,78.
15 – Não foi possível
citar o gerente da insolvente Carlos Machado em nenhuma das suas moradas
inscritas nas bases de dados públicas, nem na sede da insolvente.
*
1 –
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
1.1. Tal como
o recorrente sustenta, a data mencionada no facto 1 não é correcta. Resulta do
processo principal que a petição inicial foi apresentada no dia 16.09.2022.
1.2. A
transcrição integral, no enunciado dos factos provados, da mensagem enviada
pela contabilista da insolvente ao administrador da insolvência, proporciona
uma imagem mais completa sobre o estado da contabilidade daquela sociedade.
Consequentemente, o facto n.º 11 será alterado em conformidade.
1.3. O recorrente pretende que o seu endereço electrónico seja
mencionado no facto 9, sem justificar em que medida tal alteração poderia ter
relevância para a decisão da causa. É evidente a inexistência de tal
relevância, pelo que a redacção daquele ponto do enunciado da matéria de facto
provada deverá manter-se.
1.4. Os factos que o recorrente pretende ver acrescentados ao
enunciado da matéria de facto provada sob os n.ºs 16 e 17 (objecto e designação
comercial da insolvente, titularidade de licença de mediação imobiliária e data
do cancelamento desta) não têm qualquer relevância para a decisão da causa. Também
aqui, o recorrente limitou-se a formular a pretensão de aditamento dos factos,
sem especificar em que medida estes poderiam influir na decisão da causa,
nomeadamente em seu benefício. Atenta a referida irrelevância, tal aditamento
não terá lugar.
1.5. O recorrente pretende que seja julgado provado que o
crédito referido em i) do n.º 14 do enunciado dos factos provados se encontrava
«suspenso por pagamento em prestações».
Este facto, que é relevante para a apreciação da situação financeira da
insolvente, encontra-se certificado no documento junto ao parecer do
administrador da insolvência sob o n.º 7, pelo que deverá ser aditado àquele
enunciado.
1.6. O recorrente pretende que seja julgado provado que, sobre o
crédito referido em ii) do n.º 14 do enunciado dos factos provados, não pendia
execução fiscal para cobrança coerciva, alegando que tal facto resulta do
documento junto ao parecer do administrador da insolvência sob o n.º 8. Porém,
em parte alguma deste documento se certifica tal facto. Consequentemente, não
poderá o mesmo ser aditado àquele enunciado.
1.7. Pelo
exposto em 1.1 a 1.6, determina-se o seguinte:
- O n.º 1 do enunciado da
matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção:
«A 16.09.2022, Fernando Lopes e Isabel Gomes requereram a
declaração de insolvência de Sociedade 1, Lda..»
- O n.º 11 do enunciado da
matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção:
«Em 02.01.2023, foi remetida notificação à contabilista da
insolvente, a Sr.ª Dr.ª Sandra, a qual respondeu, em 03.01.2023, nos seguintes
termos:
Exmo. Sr. Administrador de execução,
Relativamente ao solicitado, informo que nunca mais tive
contacto com o sócio-gerente e que há imenso tempo que não me é entregue
nenhuma documentação da empresa. Faltam-me imensas facturas de gastos da
empresa que consigo verificar que existem através do e-fatura, mas não os tenho
reflectidos na contabilidade, pois não me foram entregues nenhumas facturas.
Envio em anexo a listagem de facturas que estão em falta na contabilidade.
Neste momento existe em dívida para connosco um montante de
1.549,80€ relativo a facturas das nossas avenças até agosto. Deixámos de
facturar mais, pois perdemos o contacto com o sócio e não quisemos aumentar
mais ainda a dívida existente.
Em relação à entrega das declarações relativas ao ano de 2022,
caso seja eu a entregar, aproveito para questionar acerca do pagamento dos meus
honorários para esse serviço e o mesmo em relação às declarações de 2023.
É que dificilmente existem bens para pagar todas as dívidas da
sociedade ao Estado, quanto mais aos credores.
Em relação aos elementos pedidos:
1. Credores da sociedade – no balancete estão reflectidos os
valores dos credores na contabilidade, mas alguns saldos poderão não ser reais,
uma vez que faltam faturas e documentos na contabilidade. Pode ter havido
pagamentos feitos pelo sócio através de contas pessoais ou em numerário que eu
não tenha conhecimento;
2. Devedores da sociedade – no balancete estão reflectidos os
saldos dos devedores na contabilidade, no entanto alguns desses montantes podem
ter sido recebidos em numerário pelo sócio ou através de outra conta pessoal
que não tenha conhecimento;
3. Trabalhadores da sociedade insolvente – o único trabalhador
que, neste momento, está registado na Segurança Social é o sócio-gerente.
Continuámos a processar as retribuições até ao momento, pois nunca houve
comunicação do sócio-gerente em contrário;
4. Listagem dos bens patrimoniais da sociedade – envio em anexo
a listagem de activos da sociedade que estão registados na contabilidade. Não
tenho informação se alguns dos bens listados foram vendidos ou não. A listagem
de veículos registados actualmente em nome da sociedade está igualmente em
anexo.
5. Acesso ao Portal da AT – (…)
Acesso ao Portal da SS – (…)
6. IBANs da sociedade – envio em anexo o Mapa de Base de dados
de contas do Banco de Portugal;
7. Elementos contabilísticos dos 3 últimos anos:
a. Balancete analítico de Dezembro 2022;
b. Modelo 22 de 2019, 2020 e 2021;
c. IES de 2019, 2020 e 2021;
d. Modelo 10 de 2019, 2020 e 2021;
e. Anexo ao balanço e DR - Uma vez que a sociedade é
micro-empresa, está dispensada de ter anexo às demonstrações financeiras;
f. Listagem de stocks – desconheço se existe algum stock de matéria-prima
ou não;
g. Mapa de amortizações actual sem ainda as depreciações anuais
de 2022;
h. Relatório de gestão e acta de aprovação de contas - Uma vez
que a sociedade é micro-empresa, está dispensada de ter relatório de gestão. A
acta de aprovação de contas não foi assinada pelo gerente, pois nunca mais tive
contacto com ele.
i. Lista de contratos em vigor - Em relação aos contratos de
arrendamento, mantêm-se activos no Portal das Finanças, mas penso que já estão
cessados. Não tenho conhecimento de mais nenhum contrato.
j. Listagem de activos fixos tangíveis actuais.
Caso seja necessário mais alguma coisa, estou ao seu inteiro
dispor.»
- É aditado, ao enunciado
da matéria de facto provada, o seguinte:
«16 – O crédito referido em 14/i) encontrava-se suspenso por
pagamento em prestações.»
2 –
Incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada:
O artigo
186.º, n.º 1, do CIRE (diploma ao qual pertencem as normas doravante
referenciadas sem menção da sua origem), estabelece que a insolvência é culposa
quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação,
dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito
ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Resulta da al.
h) do n.º 2 do mesmo artigo que se considera sempre culposa a insolvência do
devedor que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de
direito ou de facto, tenham incumprido, em termos substanciais, a obrigação de
manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma
dupla contabilidade, ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a
compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
O tribunal a quo considerou «que a Insolvente deixou de manter contabilidade organizada, na medida
em que não enviou à contabilista um número significativo de facturas, que foram
emitidas pois constam do portal e-factura, mas que não estão reflectidas na
contabilidade, o que impede de manter uma visão real e rigorosa sobre a
situação contabilística e financeira da sociedade», pelo que se encontra
preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 2, al. h).
O recorrente sustenta
que o correcto julgamento do facto provado n.º 11 impõe a conclusão de que a
insolvente tinha contabilidade organizada. Tanto assim é, diz o recorrente, que
a contabilista enviou, ao administrador da insolvência, todos os elementos
contabilísticos da insolvente relativos aos últimos três anos (incluindo
balancetes, modelos 22, modelo 10, credores e devedores, etc.), bem como uma
lista das facturas de despesa em falta na contabilidade, da qual tomou
conhecimento através da consulta do sistema «E-Factura».
O recorrente
não tem razão.
A nova
redacção do n.º 11 do enunciado dos factos provados não é mais favorável ao
recorrente que a anterior, pois evidencia que a insolvente incumpriu, em termos
substanciais, a obrigação de manter contabilidade organizada. Atente-se nos
seguintes factos, relatados pela contabilista da insolvente na mensagem que
enviou ao administrador da insolvência: 1) Faltam «imensas» facturas de despesas realizadas em nome da insolvente,
não estando as mesmas, em consequência disso, reflectidas na contabilidade
desta; 2) No balancete, estão reflectidos os valores dos credores na
contabilidade, mas alguns saldos poderão não ser reais, uma vez que faltam
facturas e documentos; 3) No balancete, estão reflectidos os saldos dos
devedores na contabilidade, mas alguns desses montantes podem ter sido
recebidos, pelo recorrente, em numerário ou através de uma conta pessoal; 4)
Verifica-se uma situação de incerteza sobre se alguns dos bens constantes da
listagem dos bens da insolvente foram vendidos, bem como sobre a subsistência
dos contratos de arrendamento.
Ao contrário
do que o recorrente pretende, uma contabilidade neste estado não pode ser
considerada organizada. Sendo função da contabilidade de uma sociedade
comercial possibilitar um rigoroso apuramento da situação patrimonial e
financeira desta através da sua consulta, a mesma não é assegurada por uma
contabilidade que não evidencia, com um mínimo de rigor, as despesas realizadas
em nome da insolvente, os bens de que esta é titular e os seus créditos e
débitos. A contabilidade da insolvente apresenta-se extremamente deficiente,
não cumprindo, de forma evidente, aquela função. Daí a conclusão, que acima
antecipámos, de que a insolvente incumpriu, em termos substanciais, a obrigação
de manter contabilidade organizada.
Sendo assim, o
tribunal a quo decidiu acertadamente
ao considerar preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 2, al. h).
3 –
Incumprimento do dever de colaboração:
Resulta da al.
i) do n.º 2 do artigo 186.º que se considera sempre culposa a insolvência do
devedor que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de
direito ou de facto, tenham incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de
apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração
do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º.
O artigo 83.º
estabelece, na parte que nos interessa, que o devedor insolvente fica obrigado
a fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam
solicitadas pelo administrador da insolvência [al. a) do n.º 1] e a prestar, a
este, toda a colaboração que lhe seja requerida para efeitos do desempenho das
suas funções [al. c) do n.º 1]. Estabelece ainda que a recusa de prestação de
informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente
para efeitos de qualificação da insolvência como culposa (n.º 3), e que o
disposto nos números anteriores é aplicável aos administradores do devedor (n.º
4).
O tribunal a quo considerou que a situação dos
autos preenche a previsão da al. i) do n.º 2 do artigo 186.º, porquanto, ao
colocar-se na situação de incontactável, o recorrente inviabilizou a sua
colaboração, quer com o administrador da insolvência, quer com o tribunal. Sendo
certo que qualquer responsável por uma sociedade comercial deve permanecer
contactável, ao menos para o efeito de cumprir as suas obrigações perante as
entidades públicas.
O recorrente
discorda deste entendimento, argumentando que a violação do dever de
colaboração previsto no artigo 83.º pressupõe que o administrador seja
regularmente contactado, o que não aconteceu consigo. Segundo o recorrente, «a única morada física e electrónica é a da
sociedade insolvente, que é um espaço exclusivamente comercial. O facto provado
17 revela que a sociedade cessou a actividade de mediação imobiliária ainda
antes de ser requerida e decretada a insolvência, termos em que a morada do
insolvente que também é a morada do gerente, ora recorrente, deixou de ser a
efectiva até antes da insolvência. Não foi feita prova de que as comunicações
do Administrador de Insolvência chegaram ao conhecimento do Requerido, ora
recorrente, nem existe presunção legal nesse sentido, não pode ter-se por
assente que as mesmas lhe foram entregues ou chegaram ao seu conhecimento.
Contra o assim decidido, os factos provados não evidenciam uma recusa reiterada
de colaboração, inexistindo fundamento para que se faça da conduta do
administrador uma valoração que justifique a qualificação da insolvência como
culposa.»
O recorrente
não tem razão.
A insolvente
foi regularmente citada para a insolvência, nos termos do artigo 246.º, n.ºs 2
e 4, do CPC, e não deduziu oposição. Sendo o recorrente o único sócio e gerente
da insolvente, tem de se considerar que ele, nessa qualidade e para todos os
efeitos, tomou conhecimento da propositura daquela acção. É este o efeito de se
considerar a citação efectuada. Não faria sentido considerar-se a citação para
a insolvência efectuada ao abrigo do disposto naquelas normas legais e,
concomitantemente, que o recorrente, na qualidade de sócio e gerente único da
insolvente, continuou a desconhecer a propositura dessa acção depois dessa
citação. Cabia ao recorrente cuidar de receber e tomar efectivo conhecimento da
correspondência recebida na sede da insolvente, independentemente de ainda lá
exercer, ou não, alguma actividade económica, em vez de se esquivar a ser
contactado ausentando-se para parte incerta.
Após a
insolvência ter sido declarada, o administrador da insolvência remeteu, para a
morada da sede da insolvente, comunicação postal registada com aviso de
recepção, solicitando as informações referidas no n.º 7 do enunciado da matéria
de facto provada. Essa carta foi devolvida com a indicação «objecto não reclamado». Ou seja, não foi recebida porque o recorrente
não cumpriu o seu dever de permanecer contactável naquela morada, já que não
forneceu outra ao tribunal nem ao administrador da insolvência.
Tendo,
entretanto, apurado o endereço electrónico do recorrente (enquanto único sócio
e gerente da insolvente) que estava registado na segurança social, o
administrador da insolvência remeteu um e-mail para tal endereço, com o
conteúdo referido no mesmo n.º 7. O recorrente não respondeu a este mail, sendo
certo que, como é óbvio, para o receber, não precisava de se encontrar
fisicamente na sede da insolvente.
Resulta do
exposto que, por via da citação da insolvente para a acção de insolvência, o
recorrente, na qualidade de sócio e gerente único daquela, tomou conhecimento
da propositura daquela acção. Não obstante, nada fez para receber a
correspondência que o administrador da insolvência lhe dirigiu, nunca prestou as
informações que o administrador da insolvência lhe solicitou, por via postal e
correio electrónico, e ausentou-se para parte incerta, assim se esquivando a
prestar toda e qualquer informação ou colaboração.
Esta conduta
consubstancia uma violação evidente e reiterada, por parte do recorrente, do
dever de colaboração previsto no artigo 83.º, pelo que o tribunal a quo decidiu acertadamente ao
considerar preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 2, al. i).
4 –
Incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência:
De acordo com
a al. a) do n.º 3 do artigo 186.º, presume-se a existência de culpa grave
quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma
pessoa singular, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de
insolvência.
O n.º 1 do
artigo 18.º estabelece que o devedor deve requerer a declaração da sua
insolvência dentro dos trinta dias seguintes à data do conhecimento da situação
de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que
devesse conhecê-la.
O n.º 1 do artigo
3.º estabelece que é considerado em situação de insolvência o devedor que se
encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
O tribunal a quo considerou que a situação dos
autos preenche a previsão da al. a) do n.º 3 do artigo 186.º, porquanto a Sociedade
1, Lda. estaria já em situação de, pelo menos, pré-insolvência, no final do ano
de 2020, pelo que o recorrente devia tê-la apresentado à insolvência até meados
do ano de 2021. Porém, o recorrente não o fez, continuando aquela sociedade a
assumir responsabilidades perante terceiros, apesar de já não ser previsível
poder cumpri-las, o que agravou a situação de insolvência. O que é bem patente
no facto de uma parte das dívidas perante a Autoridade Tributária se ter
vencido em 2022, ano em que a sociedade já estava em situação de insolvência.
O recorrente
discorda deste entendimento, argumentando que «Não foi feita prova que a sociedade estivesse em pré-insolvência no
final de 2020, nem no final do ano 2021, pois não é a circunstância do facto
provado 12 e 13, que coloca a sociedade em situação de insolvência. Se bem que
a sociedade estava em mora nas suas obrigações, mas não em incumprimento,
veja-se que a sociedade insolvente não estava em incumprimento com nenhum
credor no pagamento das suas obrigações. Não obstante parecer já longe, não
esqueçamos o facto dos anos 2020 a 2022 o mundo padecer da crise pandémica, com
os consequentes efeitos na actividade comercial das empresas e das famílias.
Igualmente não foi feita prova que a sociedade tivesse continuado a assumir
responsabilidade perante terceiros, a quem? Qual o valor? Ora a dívida global à
AT é 13.363,59 €, sendo que desses 7.789,37 € são relativos a IVA liquidado do
1.º trimestre de 2022, vencido a partir de 25-05-2022 e 3.760,44 € do 2.º
trimestre de 2022, vencido a partir de 21-09-2022, e conforme Facto Provado 18,
a cobrança estava suspensa por pagamento em prestações.»
O recorrente
não tem razão.
A existência
da crise pandémica é irrelevante neste contexto, pois aquilo que se encontra em
avaliação é se se verificava uma situação objectiva: em 16.09.2022, data em que
dois credores requereram a sua declaração como insolvente, a Sociedade 1, Lda.
encontrava-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas havia mais
de trinta dias?
Foram
reconhecidos créditos sobre a insolvente no valor total de € 46.107,71. O
crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira, no montante de € 13.363,59, encontrava-se
suspenso por pagamento em prestações, mas o mesmo não se passava com os
restantes, nomeadamente com o crédito de que é titular o Instituto da Segurança
Social, IP, relativo a contribuições vencidas desde 2020 e não pagas, no valor
total de € 5.115,78. Na perspectiva passiva, tratava-se de dívidas vencidas,
encontrando-se a Sociedade 1, Lda. em mora no seu pagamento.
O recorrente
reconhece que a Sociedade 1, Lda. «estava
em mora nas suas obrigações». Contudo, afirma que esta sociedade «não estava em incumprimento com nenhum
credor no pagamento das suas obrigações». A contradição é evidente. O
devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja
imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido
(artigo 804.º, n.º 2, do CC). A mora é uma modalidade de incumprimento das
obrigações, contrapondo-se, dentro desta categoria, ao incumprimento
definitivo.
Ao não
requerer a declaração da sua insolvência dentro do prazo estabelecido no n.º 1
do artigo 18.º, não obstante encontrar-se em mora perante a generalidade dos
seus credores, a Sociedade 1, Lda. continuou a acumular dívidas. O recorrente
põe em causa esta asserção, mas sem razão. Pelo menos perante a Segurança
Social, a referida acumulação decorre do simples decurso do tempo sem que se
declare a cessação da actividade.
É, assim,
evidente a situação de insolvência da Sociedade 1, Lda. desde momento muito
anterior aos trinta dias que precederam a propositura da acção de insolvência.
Sintomaticamente, como o próprio recorrente reconhece (embora, como vimos em 3,
com o intuito de demonstrar que não violou o seu dever de colaboração), aquela
sociedade deixou de ter actividade e encerrou as suas instalações em data
anterior àquela em que a sua insolvência foi requerida. O recorrente, por seu
turno, colocou-se na situação de incontactável. As dívidas da sociedade ficaram
por pagar. Perante tudo isto, a tese do recorrente é insustentável.
Sendo assim, o
tribunal a quo decidiu acertadamente
ao considerar preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 3, al. a). A Sociedade
1, Lda. incumpriu o seu dever de requerer a declaração de insolvência.
5.
Conclusão:
São válidos
todos os fundamentos pelos quais o tribunal a
quo qualificou a insolvência da Sociedade 1, Lda. como culposa. Deverá,
pois, a sentença recorrida manter-se na íntegra e o recurso ser julgado
improcedente.
*
Dispositivo:
Delibera-se,
pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença
recorrida.
Custas a cargo
do recorrente.
Notifique.
*
Évora,
11.07.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.ª adjunta)