sábado, 20 de julho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.07.2024

Processo n.º 2464/22.2T8STR.E1

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Sumário:

Por via do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, ao ser proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, fica vedado, ao tribunal, tomar nova decisão sobre o valor excluído do rendimento disponível, salvo se se provar a verificação de uma alteração das circunstâncias em que aquele despacho foi proferido, nomeadamente um aumento dos encargos do agregado familiar do devedor.

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AAA requereu a declaração da sua insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante.

Foi proferida sentença, que declarou a insolvência do requerente.

Na sequência da apresentação do relatório previsto no artigo 155.º do CIRE, foi proferido despacho de encerramento do processo, com fundamento na insuficiência da massa insolvente.

Em 17.05.2023, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, no qual se determinou o seguinte:

«Pelo exposto e decidindo, ao abrigo do art. 239.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE, determino que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão) o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se considera cedido a fiduciário, investindo-se nessa qualidade o Sr. Administrador de Insolvência nomeado nos autos, cuja remuneração e reembolso de despesas ficam a cargo do insolvente (arts. 240.º, n.º 1 e 60.º, n.º 1 do CIRE).

Considerando o agregado familiar do insolvente e o critério a que alude o art. 239.º, n.º 3 do CIRE, que exclui do rendimento disponível a afectar à satisfação dos créditos da insolvente o montante que constitua o sustento minimamente digno do devedor, determino que o rendimento disponível do devedor/insolvente, objecto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que àquele advenham, a qualquer título, com exclusão do correspondente ao montante de 1,25 salários mínimos nacionais, em cada um dos doze meses do ano.

As quantias auferidas pelo insolvente a título de subsídios, reembolsos ou outros ganhos pecuniários deverão ser somadas aos rendimentos laborais mensais, para efeitos de contabilização do rendimento disponível.»

Não foi interposto recurso deste despacho, tendo o mesmo transitado em julgado.

Invocando a insuficiência do valor excluído do rendimento disponível para fazer face às despesas mensais do seu agregado familiar, o devedor requereu, em 26.06.2023, «a revisão do rendimento fixado de modo a poder suportar as despesas mensais indispensáveis».

Este requerimento foi indeferido por despacho, proferido em 21.09.2023, no qual se escreveu, nomeadamente, o seguinte:

«O rendimento disponível fixado anteriormente apenas pode ser alterado por via de uma alteração superveniente das circunstâncias, sob pena de violação do princípio do caso julgado.

(…)

Revertendo novamente ao caso em apreço, inexiste qualquer alteração das circunstâncias que determinaram a fixação do rendimento indisponível no despacho de 17/5.

Pelo exposto, e com os fundamentos que antecedem, indefere-se ao requerido.»

Não foi interposto recurso deste despacho, tendo o mesmo transitado em julgado.

Em 21.02.2024, o devedor, invocando, de novo, a insuficiência do valor excluído do rendimento disponível para fazer face às despesas mensais do seu agregado familiar, requereu que o mesmo fosse aumentado para o equivalente a 3 salários mínimos, exceptuando subsídios de férias e de Natal, por só assim ficar salvaguardado o sustento minimamente digno daquele agregado.

Em 19.03.2024, foi proferido despacho mediante o qual se indeferiu o requerimento apresentado em 21.02.2024, com um duplo fundamento. Por um lado, considerou-se que os factos invocados e os documentos apresentados pelo devedor não justificavam o pretendido aumento do valor excluído do rendimento disponível. Por outro, considerou-se que «O rendimento disponível fixado anteriormente apenas pode ser alterado por via de uma alteração superveniente das circunstâncias, sob pena de violação do princípio do caso julgado» e que «do alegado pelo insolvente não se verifica qualquer alteração do agregado familiar do insolvente desde a prolação do despacho inicial.»

O devedor interpôs recurso deste último despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:

I) Andou mal o douto Tribunal a quo ao decidir manter o valor correspondente ao rendimento indisponível em 125% do SMN, o Tribunal, interpretando, erroneamente, o preceituado no art.º 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE: o rendimento disponível, nos termos do disposto no art.º 239.º n.º3 CIRE, é integrado pelos rendimentos que advenham por qualquer título ao devedor, com exclusão daquilo que “seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional”.

II) Pois, a exclusão do rendimento da cessão, consignada na subalínea i), deve ser apreciada, atendendo às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam aos devedores insolventes e ao seu agregado familiar, tendo de ficar de fora do rendimento disponível a ceder aos credores a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência e que não equivale, necessária e forçosamente, ao atribuído ao ora devedor.

III) Nem sequer foi tida em consideração o clima financeiro atual vincadamente desfavorável às famílias de classe baixa e média, marcado pelo aumento exponencial da inflação – aumentando de forma significativa o custo de vida – e agravado pelas circunstâncias geopolíticas internacionais e pelo pós-pandemia.

IV) É certo que o devedor e o seu agregado familiar têm, presentemente e de forma previsível, como despesas mensais, as despesas correntes de habitação, água, telefone, deslocações, despesas médicas e medicamentosas, eletricidade e gás, no montante mensal de 900,00€, sem contabilizar as despesas de alimentação (que são avultadas, tendo em conta a dimensão do agregado familiar), bem assim, os gastos normais de vestuário e calçado (variáveis) e todos os outros gastos necessários à vivência humana e /ou despesa extraordinária e necessária, num total claramente de muito superior ao valor que o tribunal a quo lhe pretendia atribuir. sem contabilizar todos os outros gastos necessários à vivência humana e /ou despesa extraordinária e necessária.

V) As despesas que apresentou são perfeitamente enquadráveis no padrão de vida normal e necessário a uma vida com um mínimo de dignidade, com contenção de custos e com ausência de qualquer luxo.

VI) Face aos seus rendimentos e às despesas que comprovadamente alega, e que não se mostram descabidas ou desproporcionais a uma vivência condigna, é manifesto que ao Recorrente não pode ser imposta uma cessão do rendimento disponível em que apenas seja salvaguardado o valor mensal de um SMN, acrescido de 25%.

VII) O valor estabelecido no despacho recorrido como rendimento indisponível é claramente insuficiente para assegurar uma sobrevivência condigna ao insolvente.

VIII) O limite mínimo para aferição do montante a excluir do rendimento disponível, em termos de mínimo de sobrevivência terá de ser encontrado pelo Tribunal face aos singulares contornos de cada caso, sendo, pois, perante a aplicação do critério da dignidade da pessoa humana, e decorrente sustentabilidade e razoabilidade (salvaguarda de um padrão de vida condigna), às circunstâncias do caso concreto, que se poderá determinar, a final, o quantum a reservar para o sustento do devedor e agregado.

IX) A exclusão do rendimento da cessão, consignada na subalínea i), deve ser apreciada atendendo às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu agregado familiar, tendo de ficar de fora do rendimento disponível a ceder aos credores a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência e que não equivale, necessária e forçosamente, a um salário mínimo nacional.

X) Na fixação do montante a excluir do rendimento disponível, para razoavelmente garantir o sustento minimamente digno do devedor, deverá atender-se às suas condições e despesas – situação em concreto – ponderando, designadamente, a fase da sua vida e a composição do seu agregado familiar, tudo no quadro da necessária conciliação entre o interesse do devedor, tal como prosseguido no instituto da exoneração do passivo, e o interesse dos credores em verem satisfeitos os seus créditos.

XI) Impõe-se que seja excluído do rendimento disponível a ceder ao fiduciário um valor nunca inferior a 3 SMN, atendendo às despesas que tem de suportar e imprescindíveis à economia doméstica do agregado familiar composto por quatro pessoas, sendo que tem uma filha menor e um enteado, ambos a estudar.

XII) Aliás, com o montante atribuído de 1,25 SMN, sendo o único meio de subsistência a um agregado familiar composto por quatro pessoas, renda, alimentação, vestuário, higiene, combustível para ir trabalhar e todos os demais custos, não poderia o devedor insolvente providenciar uma habitação condigna e fazer face às mais elementares despesas do seu agregado, nem proporcionar uma alimentação digna aos filhos.

XIII) Apoiando-nos no critério do bonus pater familias, frisa-se que é insustentável exigir ao insolvente (e ao seu agregado familiar) que viva com o rendimento que lhe foi determinado, uma vez que o rendimento necessário para fazer face às suas necessidades básicas, permitindo-lhes o sustento minimamente digno – limite mínimo para a determinação do rendimento disponível! –, é significativamente superior.

XIX) Pelas razões aduzidas, deverá concluir-se pela exclusão dos proventos auferidos pelo Recorrente do rendimento indisponível correspondente a três salários mínimos nacionais, em razão das despesas invocadas e comprovadas e que não foram tidas em conta pelo tribunal recorrido, apenas devendo ser cedido ao fiduciário, o que exceda esse rendimento.

XX) E, em consequência, pede que se revogue o despacho recorrido e, nessa medida, substituindo-o por outro que, impondo a cessão do rendimento disponível do Recorrente, exclua desse montante o valor correspondente a três salários mínimos nacionais, de forma a permitir-lhe uma vida minimamente digna.

XXI) Bem assim, a consagrar-se uma compatibilização prática entre os princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção da família com as garantias patrimoniais dos credores.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deve ser revogada a deliberação recorrida, que deve ser substituída por outra que determine que o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar não poderá ser fixado em quantia inferior três salários mínimos nacionais, nos termos do disposto no artigo 239º, nº3, alínea b, subalínea iii), do CIRE.

Questão a resolver: Se, no momento processual em que foi proferido o despacho recorrido e atenta a fundamentação do requerimento sob apreciação, seria admissível o tribunal a quo determinar um aumento do valor excluído do rendimento disponível.

Factos a considerar para a resolução desta questão: Os que acima enunciámos.

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Através do despacho recorrido, o tribunal a quo indeferiu o pedido de aumento do valor excluído do rendimento disponível com dois fundamentos:

1 – O valor excluído do rendimento disponível que foi fixado no despacho inicial de exoneração do passivo restante apenas poderia ser modificado por via de uma alteração superveniente das circunstâncias, sob pena de violação do princípio do caso julgado; não tendo o recorrente alegado nem provado a verificação de tal alteração, aquele valor teria de se manter;

2 – Independentemente do referido em 1, os factos invocados e os documentos apresentados pelo recorrente nunca justificariam a alteração requerida.

Cada um destes fundamentos surge, no despacho recorrido, como suficiente para, por si só, determinar o indeferimento do requerimento apresentado pelo recorrente. Não obstante, nas suas alegações de recurso, o recorrente ataca unicamente o segundo fundamento, procurando demonstrar que o valor excluído do rendimento disponível é insuficiente para assegurar o sustento minimamente digno do seu agregado familiar. Sobre o primeiro fundamento, nem uma palavra.

Basta isto para que o recurso esteja votado ao insucesso. Ainda que o segundo fundamento caísse por via do recurso, subsistiria o primeiro, cuja sindicância pelo tribunal ad quem o recorrente não solicitou. Sendo certo, repetimos, que o primeiro fundamento, de natureza processual, é, na lógica do despacho recorrido, suficiente para determinar o indeferimento da pretensão do recorrente.

Ainda assim, diremos que o primeiro argumento do tribunal a quo é inatacável.

O n.º 1 do artigo 613.º do CPC estabelece que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Esta regra é aplicável aos despachos, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo. Consagra-se, assim, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional.

Sendo assim, ao proferir o despacho inicial, o tribunal a quo ficou impedido de tomar nova decisão sobre o valor excluído do rendimento disponível, salvo se se provasse a verificação de uma alteração das circunstâncias em que aquele despacho foi proferido.

Com o trânsito em julgado do despacho inicial, não foi só o tribunal a quo que ficou impedido de proferir nova decisão sobre a mesma matéria. Por via da inadmissibilidade de recurso ordinário, tal impedimento estendeu-se ao tribunal que seria competente para o conhecimento desse recurso.

Não obstante, o recorrente apresentou, em 26.06.2023, um primeiro requerimento de aumento do valor excluído do rendimento disponível, com fundamento na alegada insuficiência daquele que fora fixado no despacho inicial para o sustento minimamente digno do seu agregado familiar, sem alegar qualquer facto posterior à data da prolação deste despacho.

Em 21.09.2023, o tribunal a quo proferiu despacho mediante o qual indeferiu o requerimento de 26.06.2023. Logo aí, o tribunal a quo consignou que o valor excluído do rendimento disponível «apenas pode ser alterado por via de uma alteração superveniente das circunstâncias» e que «inexiste qualquer alteração das circunstâncias que determinaram a fixação do rendimento indisponível no despacho de 17/5». Também este despacho transitou em julgado.

Não obstante, em 21.02.2024, o recorrente apresentou novo requerimento de aumento do valor excluído do rendimento disponível, mais uma vez sem alegar qualquer facto relevante ocorrido posteriormente à data da prolação do despacho inicial. Todos os factos então alegados, a serem reais, já se verificavam à data da prolação deste último, pelo que o recorrente tinha o ónus de os alegar e provar em devido tempo. O recorrente não alegou a superveniência de um único facto com fundamento no qual fosse possível concluir que as necessidades do seu agregado familiar tivessem crescido, como seria o nascimento de um filho ou um problema grave de saúde de um dos membros desse agregado que requeresse a realização de novas despesas. Em vez disso, limitou-se a tentar demonstrar que o valor excluído do rendimento disponível no despacho inicial era, ab initio, insuficiente.

Perante tudo isto, este segundo requerimento do recorrente não podia deixar de ser indeferido. Com a prolação do despacho inicial, ficou esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo para fixar o valor excluído do rendimento disponível com fundamento nos mesmos pressupostos. Com a prolação do despacho de 21.09.2023, o tribunal a quo reconheceu que lhe estava vedado rever aquele valor sem que fosse alegada e provada uma alteração das circunstâncias. É por demais evidente a inadmissibilidade de o recorrente insistir em pretensão idêntica, tentando levar o tribunal a quo a alterar o despacho inicial em violação do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 613.º do CPC.

Concluindo, o tribunal a quo decidiu acertadamente, devendo o recurso ser julgado improcedente.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

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Évora, 11.07.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)


domingo, 14 de julho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.07.2024

Processo n.º 185/22.5T8LGA-B.E1

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Qualificação da insolvência.

Incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada.

Incumprimento do dever de colaboração.

Incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência.

Citação.

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Sumário:

1 – Sendo função da contabilidade de uma sociedade comercial possibilitar um rigoroso apuramento da situação patrimonial e financeira desta através da sua consulta, a mesma não é cumprida por uma contabilidade que não evidencia, com um mínimo de rigor, as despesas realizadas em nome da sociedade a que respeita, os bens de que esta é titular e os seus créditos e débitos.

2 – Encontrando-se uma sociedade citada, nos termos do artigo 246.º, n.ºs 2 e 4, do CPC, numa acção em que é pedida a declaração da sua insolvência, tem de se considerar que o seu único sócio e gerente, nessa qualidade e para todos os efeitos, tomou conhecimento da propositura daquela acção.

3 – Nas circunstâncias referidas em 2, se o único sócio e gerente da sociedade, entretanto declarada insolvente, se colocar na situação de incontactável, nada fazendo no sentido de receber a correspondência que o administrador da insolvência lhe dirige, não prestando as informações que o administrador da insolvência lhe solicita, por via postal e correio electrónico, e ausentando-se para parte incerta, assim se esquivando a prestar toda e qualquer informação ou colaboração, verifica-se uma violação evidente e reiterada do dever de colaboração previsto no artigo 83.º do CIRE, preenchendo-se assim a previsão do artigo 186.º, n.º 2, al. i), do mesmo código.

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Carlos Machado interpôs recurso de apelação da sentença que, julgando procedente o presente incidente de qualificação da insolvência:

a) Qualificou a insolvência da Sociedade 1, Lda. como culposa, considerando que esta actuou com culpa grave;

b) Declarou Carlos Machado afectado pela qualificação da insolvência de Sociedade 1, Lda. como culposa, em virtude de actuação com culpa grave;

c) Declarou Carlos Machado inibido para administrar patrimónios de terceiros durante um período de três anos;

d) Declarou Carlos Machado inibido para o exercício do comércio durante um período de três anos, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;

d) Determinou a perda de quaisquer créditos de Carlos Machado sobre a insolvente e sobre a massa insolvente;

e) Condenou Carlos Machado a indemnizar os credores da insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, a liquidar.

Conclusões do recurso:

A) O facto provado 1 está incorrectamente julgado, pois resulta dos autos que o requerimento de insolvência foi apresentado em 16.09.2022 e não na data indicada na sentença, devendo ser considerado provado que:

«A 16.09.2022, Fernando Lopes e Isabel Gomes requereram a declaração de insolvência de Sociedade 1, Lda.».

B) O facto provado 11 está incorrectamente julgado, pois o doc. 6 junto ao parecer de qualificação do administrador, impunha que se considerasse globalmente o teor do documento (comunicação da contabilista da insolvente de 03-01-2023) de modo a abranger os elementos a favor do requerido e não apenas o aspecto aparentemente desfavorável, devendo ser considerado provado que:

«- (…)

A Em relação aos elementos pedidos:

1. Credores da sociedade – no balancete estão reflectidos os valores dos credores na contabilidade, mas alguns saldos poderão não ser reais, uma vez que faltam facturas e documentos na contabilidade. Pode ter havido pagamentos feitos pelo sócio através de contas pessoais ou em numerário que eu não tenha conhecimento;

2. Devedores da sociedade – no balancete estão refletidos os saldos dos devedores na contabilidade, no entanto alguns desses montantes podem ter sido recebidos em numerário pelo sócio ou através de outra conta pessoal que não tenha conhecimento;

3. Trabalhadores da sociedade insolvente – o único trabalhador que, neste momento, está registado na Segurança Social é o sócio-gerente. Continuámos a processar as retribuições até ao momento, pois nunca houve comunicação do sócio-gerente em contrário;

4. Listagem dos bens patrimoniais da sociedade – envio em anexo a listagem de activos da sociedade que estão registados na contabilidade. Não tenho informação se alguns dos bens listados foram vendidos ou não. A listagem de veículos registados actualmente em nome da sociedade está igualmente em anexo.

5. Acesso ao Portal da AT – (…)

Acesso ao Portal da SS – (…)

6. IBANs da sociedade – envio em anexo o Mapa de Base de dados de contas do Banco de Portugal;

7. Elementos contabilísticos dos 3 últimos anos:

a. Balancete analítico de Dezembro 2022;

b. Modelo 22 de 2019, 2020 e 2021;

c. IES de 2019, 2020 e 2021;

d. Modelo 10 de 2019, 2020 e 2021;

e. Anexo ao balanço e DR - Uma vez que a sociedade é micro-empresa, está dispensada de ter anexo às demonstrações financeiras;

f. Listagem de stocks – desconheço se existe algum stock de matéria-prima ou não;

g. Mapa de amortizações actual sem ainda as depreciações anuais de 2022;

h. Relatório de gestão e acta de aprovação de contas - Uma vez que a sociedade é micro-empresa, está dispensada de ter relatório de gestão. A acta de aprovação de contas não foi assinada pelo gerente, pois nunca mais tive contacto com ele.

i. Lista de contratos em vigor - Em relação aos contratos de arrendamento, mantêm-se activos no Portal das Finanças, mas penso que já estão cessados. Não tenho conhecimento de mais nenhum contrato.

j. Listagem de activos fixos tangíveis atuais.»

C) O facto provado 9 está incorretamente julgado, pois o doc. 3 e doc. 4 do parecer, impunham que tivesse sido julgado provado:

«Tendo entretanto apurado o endereço electrónico (...@....com) do gerente da Insolvente registado na segurança social, o administrador da insolvência remeteu e-mail para tal endereço com o conteúdo referido em 7- a 30.12.2022.»

D) O tribunal a quo devia ainda, porque têm interesse para a decisão da causa, julgar provados os seguintes factos:

«16 – A Sociedade 1, Lda. tem como objecto social a “Mediação e avaliação imobiliária; administração de imóveis por conta de outrem; gestão de condomínios; serviços de limpeza e jardinagem, plantação e manutenção de jardins; compra e venda de imóveis; compra para revenda de imóveis; promoção imobiliária (desenvolvimento de projectos de edifícios); arrendamento de bens imobiliários; actividades imobiliárias por conta de outrem; angariação imobiliária; exploração turística de imóveis; alojamento local, hotelaria e similares; exploração e administração de alojamento mobilado para turistas e turismo rural, parques de campismo e outros locais de alojamento de curta e longa duração; construção de edifícios; Demolição e preparação dos locais de construção; recolha, tratamento e eliminação de resíduos não perigosos (...).»

Tal facto deveria ser julgado provado pelos elementos constantes no processo, nomeadamente o ponto 8 dos factos alegados no parecer, não contestado, e certidão comercial (extrato) da sociedade.

«17 – A Sociedade 1, Lda. laborava comercialmente com a denominação/nome comercial «AAA», era titular da Licença de Mediação Imobiliária IMPIC n.º (…) que foi cancelada em …/…/2022.»

tal facto deveria ser julgado provado pelos doc.1 e doc. 2 juntos pelo requerido na sua oposição.

«18 – O crédito reconhecido sobre a insolvente id. em 14 i) estava suspenso por pagamento em prestações.»

Tal facto deveria ser julgado provado pelo doc. 7 do parecer.

«19 - Sob o crédito reconhecido sobre a insolvente id. em 14 ii) não pendia execução fiscal para cobrança coerciva.»

Tal facto deveria ser julgado provado pelo doc. 8 do parecer.

E) Mal decidiu o tribunal a quo da subsunção da alínea h) do n.º 2 do art. 186.º CIRE, pois o correcto julgamento do facto provado 11 (que se impugnou) permite, só por si, uma conclusão distinta, isto é, existe contabilidade organizada. Mais, os factos provados permitem concluir que não existe incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada.

F) Porque o AI teve acesso a todos os elementos contabilísticos da insolvente relativos aos últimos três anos, não sendo o facto da contabilista referir que verificou no sistema e-factura a existência de faturas de despesas, das quais não tem o documento físico, para concluir que não há contabilidade organizada, pois a declaração fiscal das despesas de uma sociedade comercial é opcional e a contabilista da insolvente enviou com o doc. 6 do parecer de qualificação a «listagem de facturas que estão em falta na contabilidade», cujo teor foi ignorado para avaliar o valor económico do facto e ponderar o impacto nas contas globais da sociedade.

G) Decidiu mal o tribunal a quo na subsunção da alínea i) do n.º 2 do art. 186.º CIRE, pois o dever de colaboração somente é violado nos termos do art. 83.º CIRE quando o administrador for regularmente contactado e não cumprir com as obrigações impostas pela citada norma legal, in casu sendo a única morada física e electrónica a da sociedade insolvente, que é um espaço exclusivamente comercial e o facto provado 17 revela que a sociedade cessou a actividade de mediação imobiliária ainda antes de ser requerida e decretada a insolvência, não foi feita prova de que as comunicações do administrador de insolvência chegaram ao conhecimento do requerido, nem existe presunção legal nesse sentido, não pode ter-se por assente que as mesmas lhe foram entregues ou chegaram ao seu conhecimento.

H) Contra o assim decidido, os factos provados não evidenciam uma recusa reiterada de colaboração, inexistindo fundamento para que se faça da conduta do administrador uma valoração que justifique a qualificação da insolvência como culposa.

I) Decidiu mal o tribunal a quo da subsunção da alínea a) do n.º3 do art. 186.º CIRE, pois não foi feita prova que a sociedade estivesse em pré-insolvência no final de 2020, nem no final do ano 2021, pois não é a circunstância do facto provado 12 e 13, que coloca a sociedade em situação de insolvência, a sociedade estava em mora nas suas obrigações, mas não em incumprimento, veja-se que a sociedade insolvente não estava em incumprimento com nenhum credor no pagamento das suas obrigações.

J) O requerido não violou a obrigação de requerer a declaração de insolvência, pois os anos 2020 a 2022 ficaram marcados pela crise pandémica, com os consequentes efeitos na actividade comercial das empresas e das famílias, não foi feita prova que a sociedade tivesse continuado a assumir responsabilidade perante terceiros, nomeadamente, a dívida global à AT é € 13.363,59 sendo que desses € 7.789,37 são relativos a IVA liquidado do 1.º trimestre de 2022, vencido a partir de 25-05-2022 e € 3.760,44 do 2.º trimestre de 2022, vencido a partir de 21-09-2022, e conforme facto provado 18, a cobrança estava suspensa por pagamento em prestações.

Questões a decidir:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada;

3 – Incumprimento do dever de colaboração;

4 – Incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1 – A 10.09.2020, Fernando Lopes e Isabel Gomes requereram a declaração de insolvência de Sociedade 1, Lda..

2 – A Sociedade 1, Lda. não deduziu oposição a tal pedido e a sua insolvência veio a ser declarada por sentença de 07.11.2022, transitada em julgado.

3 – A Sociedade 1, Lda. é uma sociedade comercial por quotas, com o NIPC (…), e com sede na Rua (…), (…), (…).

4 – A Sociedade 1, Lda. foi constituída em 15.12.2016.

5 – Desde 06.04.2020, a Sociedade 1, Lda. tem como único gerente Carlos Machado.

6 – Desde 22.09.2020, a Sociedade 1, Lda. tem como único sócio Carlos Machado.

7 – Após a declaração de insolvência, concretamente a 16.12.2022, o administrador da insolvência remeteu comunicação postal registada, com aviso de recepção para o gerente da Insolvente – Carlos Machado – a solicitar um conjunto de informações para o processo, designadamente: contactos actualizados da gerência; identificação de todas as acções e execuções pendentes contra a sociedade; identificação de todos os credores da sociedade, incluindo nome, morada, NIF/NIPC e valor de crédito; identificação de todos os devedores da sociedade incluindo nome, morada, NIF/NIPC e valor de débito; relação de trabalhadores da sociedade e respectivos dados de identificação; identificação do(a) contabilista certificado(a) e respectivos contactos; listagem de bens patrimoniais da sociedade, incluindo os detidos em regime de arrendamento, aluguer, locação financeira ou venda com reserva de propriedade (matrículas de viaturas, descrições prediais e os números de identificação de pessoas coletivas - caso detenha participações em sociedades); dados de acesso ao portal da Autoridade Tributária e ao portal da Segurança Social Direta; identificação de todas as contas domiciliadas em bancos nacionais ou estrangeiros, devendo ser indicada qual a conta principal da sociedade; e elementos contabilísticos da sociedade, referentes aos 3 últimos exercícios.

8 – Tal carta não foi recebida na sede da sociedade e foi devolvida com a indicação «Objecto não reclamado».

9 – Tendo entretanto apurado o endereço electrónico do gerente da insolvente registado na segurança social, o administrador da insolvência remeteu e-mail para tal endereço com o conteúdo referido em 7, a 30.12.2022.

10 – O administrador da insolvência não obteve qualquer resposta do gerente da insolvente.

11 – A 02.01.2023 foi remetida notificação à contabilista da insolvente, a Sr.ª Dr.ª Sandra, a qual veio responder a 03.01.2023, remetendo a informação solicitada e acrescentando o seguinte: «informo que nunca mais tive contacto com o sócio-gerente e que há imenso tempo que não me é entregue nenhuma documentação da empresa. Faltam-me imensas faturas de gastos da empresa que consigo verificar que existem através do e-fatura, mas não os tenho refletidos na contabilidade, pois não me foram entregues nenhumas facturas. (...) Neste momento existe em dívida para connosco um montante de 1.549,80€ relativo a facturas das nossas avenças até agosto. Deixamos de facturar mais, pois perdemos o contacto com o sócio e não quisemos aumentar mais ainda a dívida existente.»

12 – No período compreendido entre 2019 e 2021, a insolvente apresenta uma diminuição dos seus resultados operacionais que, no ano 2021, registam valores negativos (€ -13.103,04).

13 – No período compreendido entre 2019 e 2021, o indicador EBITDA (Earnings before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization/Resultados antes de Juros, Impostos, Depreciações e Amortizações) – que mede a performance e eficiência operacional – tem vindo a diminuir, sendo que, em 2021, apresenta valores negativos (€ -9.024,23).

14 – Foram reconhecidos créditos sobre a insolvente, no valor total de € 46 107,71, entre os quais:

i) Crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira no valor total de € 13.363,59, relativo a prestações de IUC, IRS e IVA, vencidas desde 2022 e não pagas;

ii) Crédito do Instituto da Segurança Social IP, relativo a contribuições vencidas desde 2020 e não pagas, no valor total de € 5.115,78.

15 – Não foi possível citar o gerente da insolvente Carlos Machado em nenhuma das suas moradas inscritas nas bases de dados públicas, nem na sede da insolvente.

*

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

1.1. Tal como o recorrente sustenta, a data mencionada no facto 1 não é correcta. Resulta do processo principal que a petição inicial foi apresentada no dia 16.09.2022.

1.2. A transcrição integral, no enunciado dos factos provados, da mensagem enviada pela contabilista da insolvente ao administrador da insolvência, proporciona uma imagem mais completa sobre o estado da contabilidade daquela sociedade. Consequentemente, o facto n.º 11 será alterado em conformidade.

1.3. O recorrente pretende que o seu endereço electrónico seja mencionado no facto 9, sem justificar em que medida tal alteração poderia ter relevância para a decisão da causa. É evidente a inexistência de tal relevância, pelo que a redacção daquele ponto do enunciado da matéria de facto provada deverá manter-se.

1.4. Os factos que o recorrente pretende ver acrescentados ao enunciado da matéria de facto provada sob os n.ºs 16 e 17 (objecto e designação comercial da insolvente, titularidade de licença de mediação imobiliária e data do cancelamento desta) não têm qualquer relevância para a decisão da causa. Também aqui, o recorrente limitou-se a formular a pretensão de aditamento dos factos, sem especificar em que medida estes poderiam influir na decisão da causa, nomeadamente em seu benefício. Atenta a referida irrelevância, tal aditamento não terá lugar.

1.5. O recorrente pretende que seja julgado provado que o crédito referido em i) do n.º 14 do enunciado dos factos provados se encontrava «suspenso por pagamento em prestações». Este facto, que é relevante para a apreciação da situação financeira da insolvente, encontra-se certificado no documento junto ao parecer do administrador da insolvência sob o n.º 7, pelo que deverá ser aditado àquele enunciado.

1.6. O recorrente pretende que seja julgado provado que, sobre o crédito referido em ii) do n.º 14 do enunciado dos factos provados, não pendia execução fiscal para cobrança coerciva, alegando que tal facto resulta do documento junto ao parecer do administrador da insolvência sob o n.º 8. Porém, em parte alguma deste documento se certifica tal facto. Consequentemente, não poderá o mesmo ser aditado àquele enunciado.

1.7. Pelo exposto em 1.1 a 1.6, determina-se o seguinte:

- O n.º 1 do enunciado da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção:

«A 16.09.2022, Fernando Lopes e Isabel Gomes requereram a declaração de insolvência de Sociedade 1, Lda..»

- O n.º 11 do enunciado da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção:

«Em 02.01.2023, foi remetida notificação à contabilista da insolvente, a Sr.ª Dr.ª Sandra, a qual respondeu, em 03.01.2023, nos seguintes termos:

Exmo. Sr. Administrador de execução,

Relativamente ao solicitado, informo que nunca mais tive contacto com o sócio-gerente e que há imenso tempo que não me é entregue nenhuma documentação da empresa. Faltam-me imensas facturas de gastos da empresa que consigo verificar que existem através do e-fatura, mas não os tenho reflectidos na contabilidade, pois não me foram entregues nenhumas facturas. Envio em anexo a listagem de facturas que estão em falta na contabilidade.

Neste momento existe em dívida para connosco um montante de 1.549,80€ relativo a facturas das nossas avenças até agosto. Deixámos de facturar mais, pois perdemos o contacto com o sócio e não quisemos aumentar mais ainda a dívida existente.

Em relação à entrega das declarações relativas ao ano de 2022, caso seja eu a entregar, aproveito para questionar acerca do pagamento dos meus honorários para esse serviço e o mesmo em relação às declarações de 2023.

É que dificilmente existem bens para pagar todas as dívidas da sociedade ao Estado, quanto mais aos credores.

Em relação aos elementos pedidos:

1. Credores da sociedade – no balancete estão reflectidos os valores dos credores na contabilidade, mas alguns saldos poderão não ser reais, uma vez que faltam faturas e documentos na contabilidade. Pode ter havido pagamentos feitos pelo sócio através de contas pessoais ou em numerário que eu não tenha conhecimento;

2. Devedores da sociedade – no balancete estão reflectidos os saldos dos devedores na contabilidade, no entanto alguns desses montantes podem ter sido recebidos em numerário pelo sócio ou através de outra conta pessoal que não tenha conhecimento;

3. Trabalhadores da sociedade insolvente – o único trabalhador que, neste momento, está registado na Segurança Social é o sócio-gerente. Continuámos a processar as retribuições até ao momento, pois nunca houve comunicação do sócio-gerente em contrário;

4. Listagem dos bens patrimoniais da sociedade – envio em anexo a listagem de activos da sociedade que estão registados na contabilidade. Não tenho informação se alguns dos bens listados foram vendidos ou não. A listagem de veículos registados actualmente em nome da sociedade está igualmente em anexo.

5. Acesso ao Portal da AT – (…)

Acesso ao Portal da SS – (…)

6. IBANs da sociedade – envio em anexo o Mapa de Base de dados de contas do Banco de Portugal;

7. Elementos contabilísticos dos 3 últimos anos:

a. Balancete analítico de Dezembro 2022;

b. Modelo 22 de 2019, 2020 e 2021;

c. IES de 2019, 2020 e 2021;

d. Modelo 10 de 2019, 2020 e 2021;

e. Anexo ao balanço e DR - Uma vez que a sociedade é micro-empresa, está dispensada de ter anexo às demonstrações financeiras;

f. Listagem de stocks – desconheço se existe algum stock de matéria-prima ou não;

g. Mapa de amortizações actual sem ainda as depreciações anuais de 2022;

h. Relatório de gestão e acta de aprovação de contas - Uma vez que a sociedade é micro-empresa, está dispensada de ter relatório de gestão. A acta de aprovação de contas não foi assinada pelo gerente, pois nunca mais tive contacto com ele.

i. Lista de contratos em vigor - Em relação aos contratos de arrendamento, mantêm-se activos no Portal das Finanças, mas penso que já estão cessados. Não tenho conhecimento de mais nenhum contrato.

j. Listagem de activos fixos tangíveis actuais.

Caso seja necessário mais alguma coisa, estou ao seu inteiro dispor.»

- É aditado, ao enunciado da matéria de facto provada, o seguinte:

«16 – O crédito referido em 14/i) encontrava-se suspenso por pagamento em prestações.»

2 – Incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada:

O artigo 186.º, n.º 1, do CIRE (diploma ao qual pertencem as normas doravante referenciadas sem menção da sua origem), estabelece que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Resulta da al. h) do n.º 2 do mesmo artigo que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido, em termos substanciais, a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade, ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

O tribunal a quo considerou «que a Insolvente deixou de manter contabilidade organizada, na medida em que não enviou à contabilista um número significativo de facturas, que foram emitidas pois constam do portal e-factura, mas que não estão reflectidas na contabilidade, o que impede de manter uma visão real e rigorosa sobre a situação contabilística e financeira da sociedade», pelo que se encontra preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 2, al. h).

O recorrente sustenta que o correcto julgamento do facto provado n.º 11 impõe a conclusão de que a insolvente tinha contabilidade organizada. Tanto assim é, diz o recorrente, que a contabilista enviou, ao administrador da insolvência, todos os elementos contabilísticos da insolvente relativos aos últimos três anos (incluindo balancetes, modelos 22, modelo 10, credores e devedores, etc.), bem como uma lista das facturas de despesa em falta na contabilidade, da qual tomou conhecimento através da consulta do sistema «E-Factura».

O recorrente não tem razão.

A nova redacção do n.º 11 do enunciado dos factos provados não é mais favorável ao recorrente que a anterior, pois evidencia que a insolvente incumpriu, em termos substanciais, a obrigação de manter contabilidade organizada. Atente-se nos seguintes factos, relatados pela contabilista da insolvente na mensagem que enviou ao administrador da insolvência: 1) Faltam «imensas» facturas de despesas realizadas em nome da insolvente, não estando as mesmas, em consequência disso, reflectidas na contabilidade desta; 2) No balancete, estão reflectidos os valores dos credores na contabilidade, mas alguns saldos poderão não ser reais, uma vez que faltam facturas e documentos; 3) No balancete, estão reflectidos os saldos dos devedores na contabilidade, mas alguns desses montantes podem ter sido recebidos, pelo recorrente, em numerário ou através de uma conta pessoal; 4) Verifica-se uma situação de incerteza sobre se alguns dos bens constantes da listagem dos bens da insolvente foram vendidos, bem como sobre a subsistência dos contratos de arrendamento.

Ao contrário do que o recorrente pretende, uma contabilidade neste estado não pode ser considerada organizada. Sendo função da contabilidade de uma sociedade comercial possibilitar um rigoroso apuramento da situação patrimonial e financeira desta através da sua consulta, a mesma não é assegurada por uma contabilidade que não evidencia, com um mínimo de rigor, as despesas realizadas em nome da insolvente, os bens de que esta é titular e os seus créditos e débitos. A contabilidade da insolvente apresenta-se extremamente deficiente, não cumprindo, de forma evidente, aquela função. Daí a conclusão, que acima antecipámos, de que a insolvente incumpriu, em termos substanciais, a obrigação de manter contabilidade organizada.

Sendo assim, o tribunal a quo decidiu acertadamente ao considerar preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 2, al. h).

3 – Incumprimento do dever de colaboração:

Resulta da al. i) do n.º 2 do artigo 186.º que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º.

O artigo 83.º estabelece, na parte que nos interessa, que o devedor insolvente fica obrigado a fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência [al. a) do n.º 1] e a prestar, a este, toda a colaboração que lhe seja requerida para efeitos do desempenho das suas funções [al. c) do n.º 1]. Estabelece ainda que a recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeitos de qualificação da insolvência como culposa (n.º 3), e que o disposto nos números anteriores é aplicável aos administradores do devedor (n.º 4).

O tribunal a quo considerou que a situação dos autos preenche a previsão da al. i) do n.º 2 do artigo 186.º, porquanto, ao colocar-se na situação de incontactável, o recorrente inviabilizou a sua colaboração, quer com o administrador da insolvência, quer com o tribunal. Sendo certo que qualquer responsável por uma sociedade comercial deve permanecer contactável, ao menos para o efeito de cumprir as suas obrigações perante as entidades públicas.

O recorrente discorda deste entendimento, argumentando que a violação do dever de colaboração previsto no artigo 83.º pressupõe que o administrador seja regularmente contactado, o que não aconteceu consigo. Segundo o recorrente, «a única morada física e electrónica é a da sociedade insolvente, que é um espaço exclusivamente comercial. O facto provado 17 revela que a sociedade cessou a actividade de mediação imobiliária ainda antes de ser requerida e decretada a insolvência, termos em que a morada do insolvente que também é a morada do gerente, ora recorrente, deixou de ser a efectiva até antes da insolvência. Não foi feita prova de que as comunicações do Administrador de Insolvência chegaram ao conhecimento do Requerido, ora recorrente, nem existe presunção legal nesse sentido, não pode ter-se por assente que as mesmas lhe foram entregues ou chegaram ao seu conhecimento. Contra o assim decidido, os factos provados não evidenciam uma recusa reiterada de colaboração, inexistindo fundamento para que se faça da conduta do administrador uma valoração que justifique a qualificação da insolvência como culposa.»

O recorrente não tem razão.

A insolvente foi regularmente citada para a insolvência, nos termos do artigo 246.º, n.ºs 2 e 4, do CPC, e não deduziu oposição. Sendo o recorrente o único sócio e gerente da insolvente, tem de se considerar que ele, nessa qualidade e para todos os efeitos, tomou conhecimento da propositura daquela acção. É este o efeito de se considerar a citação efectuada. Não faria sentido considerar-se a citação para a insolvência efectuada ao abrigo do disposto naquelas normas legais e, concomitantemente, que o recorrente, na qualidade de sócio e gerente único da insolvente, continuou a desconhecer a propositura dessa acção depois dessa citação. Cabia ao recorrente cuidar de receber e tomar efectivo conhecimento da correspondência recebida na sede da insolvente, independentemente de ainda lá exercer, ou não, alguma actividade económica, em vez de se esquivar a ser contactado ausentando-se para parte incerta.

Após a insolvência ter sido declarada, o administrador da insolvência remeteu, para a morada da sede da insolvente, comunicação postal registada com aviso de recepção, solicitando as informações referidas no n.º 7 do enunciado da matéria de facto provada. Essa carta foi devolvida com a indicação «objecto não reclamado». Ou seja, não foi recebida porque o recorrente não cumpriu o seu dever de permanecer contactável naquela morada, já que não forneceu outra ao tribunal nem ao administrador da insolvência.

Tendo, entretanto, apurado o endereço electrónico do recorrente (enquanto único sócio e gerente da insolvente) que estava registado na segurança social, o administrador da insolvência remeteu um e-mail para tal endereço, com o conteúdo referido no mesmo n.º 7. O recorrente não respondeu a este mail, sendo certo que, como é óbvio, para o receber, não precisava de se encontrar fisicamente na sede da insolvente.

Resulta do exposto que, por via da citação da insolvente para a acção de insolvência, o recorrente, na qualidade de sócio e gerente único daquela, tomou conhecimento da propositura daquela acção. Não obstante, nada fez para receber a correspondência que o administrador da insolvência lhe dirigiu, nunca prestou as informações que o administrador da insolvência lhe solicitou, por via postal e correio electrónico, e ausentou-se para parte incerta, assim se esquivando a prestar toda e qualquer informação ou colaboração.

Esta conduta consubstancia uma violação evidente e reiterada, por parte do recorrente, do dever de colaboração previsto no artigo 83.º, pelo que o tribunal a quo decidiu acertadamente ao considerar preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 2, al. i).

4 – Incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência:

De acordo com a al. a) do n.º 3 do artigo 186.º, presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.

O n.º 1 do artigo 18.º estabelece que o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos trinta dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la.

O n.º 1 do artigo 3.º estabelece que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.

O tribunal a quo considerou que a situação dos autos preenche a previsão da al. a) do n.º 3 do artigo 186.º, porquanto a Sociedade 1, Lda. estaria já em situação de, pelo menos, pré-insolvência, no final do ano de 2020, pelo que o recorrente devia tê-la apresentado à insolvência até meados do ano de 2021. Porém, o recorrente não o fez, continuando aquela sociedade a assumir responsabilidades perante terceiros, apesar de já não ser previsível poder cumpri-las, o que agravou a situação de insolvência. O que é bem patente no facto de uma parte das dívidas perante a Autoridade Tributária se ter vencido em 2022, ano em que a sociedade já estava em situação de insolvência.

O recorrente discorda deste entendimento, argumentando que «Não foi feita prova que a sociedade estivesse em pré-insolvência no final de 2020, nem no final do ano 2021, pois não é a circunstância do facto provado 12 e 13, que coloca a sociedade em situação de insolvência. Se bem que a sociedade estava em mora nas suas obrigações, mas não em incumprimento, veja-se que a sociedade insolvente não estava em incumprimento com nenhum credor no pagamento das suas obrigações. Não obstante parecer já longe, não esqueçamos o facto dos anos 2020 a 2022 o mundo padecer da crise pandémica, com os consequentes efeitos na actividade comercial das empresas e das famílias. Igualmente não foi feita prova que a sociedade tivesse continuado a assumir responsabilidade perante terceiros, a quem? Qual o valor? Ora a dívida global à AT é 13.363,59 €, sendo que desses 7.789,37 € são relativos a IVA liquidado do 1.º trimestre de 2022, vencido a partir de 25-05-2022 e 3.760,44 € do 2.º trimestre de 2022, vencido a partir de 21-09-2022, e conforme Facto Provado 18, a cobrança estava suspensa por pagamento em prestações.»

O recorrente não tem razão.

A existência da crise pandémica é irrelevante neste contexto, pois aquilo que se encontra em avaliação é se se verificava uma situação objectiva: em 16.09.2022, data em que dois credores requereram a sua declaração como insolvente, a Sociedade 1, Lda. encontrava-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas havia mais de trinta dias?

Foram reconhecidos créditos sobre a insolvente no valor total de € 46.107,71. O crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira, no montante de € 13.363,59, encontrava-se suspenso por pagamento em prestações, mas o mesmo não se passava com os restantes, nomeadamente com o crédito de que é titular o Instituto da Segurança Social, IP, relativo a contribuições vencidas desde 2020 e não pagas, no valor total de € 5.115,78. Na perspectiva passiva, tratava-se de dívidas vencidas, encontrando-se a Sociedade 1, Lda. em mora no seu pagamento.

O recorrente reconhece que a Sociedade 1, Lda. «estava em mora nas suas obrigações». Contudo, afirma que esta sociedade «não estava em incumprimento com nenhum credor no pagamento das suas obrigações». A contradição é evidente. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido (artigo 804.º, n.º 2, do CC). A mora é uma modalidade de incumprimento das obrigações, contrapondo-se, dentro desta categoria, ao incumprimento definitivo.

Ao não requerer a declaração da sua insolvência dentro do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 18.º, não obstante encontrar-se em mora perante a generalidade dos seus credores, a Sociedade 1, Lda. continuou a acumular dívidas. O recorrente põe em causa esta asserção, mas sem razão. Pelo menos perante a Segurança Social, a referida acumulação decorre do simples decurso do tempo sem que se declare a cessação da actividade.

É, assim, evidente a situação de insolvência da Sociedade 1, Lda. desde momento muito anterior aos trinta dias que precederam a propositura da acção de insolvência. Sintomaticamente, como o próprio recorrente reconhece (embora, como vimos em 3, com o intuito de demonstrar que não violou o seu dever de colaboração), aquela sociedade deixou de ter actividade e encerrou as suas instalações em data anterior àquela em que a sua insolvência foi requerida. O recorrente, por seu turno, colocou-se na situação de incontactável. As dívidas da sociedade ficaram por pagar. Perante tudo isto, a tese do recorrente é insustentável.

Sendo assim, o tribunal a quo decidiu acertadamente ao considerar preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 3, al. a). A Sociedade 1, Lda. incumpriu o seu dever de requerer a declaração de insolvência.

5. Conclusão:

São válidos todos os fundamentos pelos quais o tribunal a quo qualificou a insolvência da Sociedade 1, Lda. como culposa. Deverá, pois, a sentença recorrida manter-se na íntegra e o recurso ser julgado improcedente.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

*

Évora, 11.07.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.ª adjunta)


Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2024

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