sábado, 20 de julho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.07.2024

Processo n.º 2464/22.2T8STR.E1

*

Sumário:

Por via do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, ao ser proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, fica vedado, ao tribunal, tomar nova decisão sobre o valor excluído do rendimento disponível, salvo se se provar a verificação de uma alteração das circunstâncias em que aquele despacho foi proferido, nomeadamente um aumento dos encargos do agregado familiar do devedor.

*

AAA requereu a declaração da sua insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante.

Foi proferida sentença, que declarou a insolvência do requerente.

Na sequência da apresentação do relatório previsto no artigo 155.º do CIRE, foi proferido despacho de encerramento do processo, com fundamento na insuficiência da massa insolvente.

Em 17.05.2023, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, no qual se determinou o seguinte:

«Pelo exposto e decidindo, ao abrigo do art. 239.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE, determino que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão) o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se considera cedido a fiduciário, investindo-se nessa qualidade o Sr. Administrador de Insolvência nomeado nos autos, cuja remuneração e reembolso de despesas ficam a cargo do insolvente (arts. 240.º, n.º 1 e 60.º, n.º 1 do CIRE).

Considerando o agregado familiar do insolvente e o critério a que alude o art. 239.º, n.º 3 do CIRE, que exclui do rendimento disponível a afectar à satisfação dos créditos da insolvente o montante que constitua o sustento minimamente digno do devedor, determino que o rendimento disponível do devedor/insolvente, objecto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que àquele advenham, a qualquer título, com exclusão do correspondente ao montante de 1,25 salários mínimos nacionais, em cada um dos doze meses do ano.

As quantias auferidas pelo insolvente a título de subsídios, reembolsos ou outros ganhos pecuniários deverão ser somadas aos rendimentos laborais mensais, para efeitos de contabilização do rendimento disponível.»

Não foi interposto recurso deste despacho, tendo o mesmo transitado em julgado.

Invocando a insuficiência do valor excluído do rendimento disponível para fazer face às despesas mensais do seu agregado familiar, o devedor requereu, em 26.06.2023, «a revisão do rendimento fixado de modo a poder suportar as despesas mensais indispensáveis».

Este requerimento foi indeferido por despacho, proferido em 21.09.2023, no qual se escreveu, nomeadamente, o seguinte:

«O rendimento disponível fixado anteriormente apenas pode ser alterado por via de uma alteração superveniente das circunstâncias, sob pena de violação do princípio do caso julgado.

(…)

Revertendo novamente ao caso em apreço, inexiste qualquer alteração das circunstâncias que determinaram a fixação do rendimento indisponível no despacho de 17/5.

Pelo exposto, e com os fundamentos que antecedem, indefere-se ao requerido.»

Não foi interposto recurso deste despacho, tendo o mesmo transitado em julgado.

Em 21.02.2024, o devedor, invocando, de novo, a insuficiência do valor excluído do rendimento disponível para fazer face às despesas mensais do seu agregado familiar, requereu que o mesmo fosse aumentado para o equivalente a 3 salários mínimos, exceptuando subsídios de férias e de Natal, por só assim ficar salvaguardado o sustento minimamente digno daquele agregado.

Em 19.03.2024, foi proferido despacho mediante o qual se indeferiu o requerimento apresentado em 21.02.2024, com um duplo fundamento. Por um lado, considerou-se que os factos invocados e os documentos apresentados pelo devedor não justificavam o pretendido aumento do valor excluído do rendimento disponível. Por outro, considerou-se que «O rendimento disponível fixado anteriormente apenas pode ser alterado por via de uma alteração superveniente das circunstâncias, sob pena de violação do princípio do caso julgado» e que «do alegado pelo insolvente não se verifica qualquer alteração do agregado familiar do insolvente desde a prolação do despacho inicial.»

O devedor interpôs recurso deste último despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:

I) Andou mal o douto Tribunal a quo ao decidir manter o valor correspondente ao rendimento indisponível em 125% do SMN, o Tribunal, interpretando, erroneamente, o preceituado no art.º 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE: o rendimento disponível, nos termos do disposto no art.º 239.º n.º3 CIRE, é integrado pelos rendimentos que advenham por qualquer título ao devedor, com exclusão daquilo que “seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional”.

II) Pois, a exclusão do rendimento da cessão, consignada na subalínea i), deve ser apreciada, atendendo às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam aos devedores insolventes e ao seu agregado familiar, tendo de ficar de fora do rendimento disponível a ceder aos credores a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência e que não equivale, necessária e forçosamente, ao atribuído ao ora devedor.

III) Nem sequer foi tida em consideração o clima financeiro atual vincadamente desfavorável às famílias de classe baixa e média, marcado pelo aumento exponencial da inflação – aumentando de forma significativa o custo de vida – e agravado pelas circunstâncias geopolíticas internacionais e pelo pós-pandemia.

IV) É certo que o devedor e o seu agregado familiar têm, presentemente e de forma previsível, como despesas mensais, as despesas correntes de habitação, água, telefone, deslocações, despesas médicas e medicamentosas, eletricidade e gás, no montante mensal de 900,00€, sem contabilizar as despesas de alimentação (que são avultadas, tendo em conta a dimensão do agregado familiar), bem assim, os gastos normais de vestuário e calçado (variáveis) e todos os outros gastos necessários à vivência humana e /ou despesa extraordinária e necessária, num total claramente de muito superior ao valor que o tribunal a quo lhe pretendia atribuir. sem contabilizar todos os outros gastos necessários à vivência humana e /ou despesa extraordinária e necessária.

V) As despesas que apresentou são perfeitamente enquadráveis no padrão de vida normal e necessário a uma vida com um mínimo de dignidade, com contenção de custos e com ausência de qualquer luxo.

VI) Face aos seus rendimentos e às despesas que comprovadamente alega, e que não se mostram descabidas ou desproporcionais a uma vivência condigna, é manifesto que ao Recorrente não pode ser imposta uma cessão do rendimento disponível em que apenas seja salvaguardado o valor mensal de um SMN, acrescido de 25%.

VII) O valor estabelecido no despacho recorrido como rendimento indisponível é claramente insuficiente para assegurar uma sobrevivência condigna ao insolvente.

VIII) O limite mínimo para aferição do montante a excluir do rendimento disponível, em termos de mínimo de sobrevivência terá de ser encontrado pelo Tribunal face aos singulares contornos de cada caso, sendo, pois, perante a aplicação do critério da dignidade da pessoa humana, e decorrente sustentabilidade e razoabilidade (salvaguarda de um padrão de vida condigna), às circunstâncias do caso concreto, que se poderá determinar, a final, o quantum a reservar para o sustento do devedor e agregado.

IX) A exclusão do rendimento da cessão, consignada na subalínea i), deve ser apreciada atendendo às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu agregado familiar, tendo de ficar de fora do rendimento disponível a ceder aos credores a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência e que não equivale, necessária e forçosamente, a um salário mínimo nacional.

X) Na fixação do montante a excluir do rendimento disponível, para razoavelmente garantir o sustento minimamente digno do devedor, deverá atender-se às suas condições e despesas – situação em concreto – ponderando, designadamente, a fase da sua vida e a composição do seu agregado familiar, tudo no quadro da necessária conciliação entre o interesse do devedor, tal como prosseguido no instituto da exoneração do passivo, e o interesse dos credores em verem satisfeitos os seus créditos.

XI) Impõe-se que seja excluído do rendimento disponível a ceder ao fiduciário um valor nunca inferior a 3 SMN, atendendo às despesas que tem de suportar e imprescindíveis à economia doméstica do agregado familiar composto por quatro pessoas, sendo que tem uma filha menor e um enteado, ambos a estudar.

XII) Aliás, com o montante atribuído de 1,25 SMN, sendo o único meio de subsistência a um agregado familiar composto por quatro pessoas, renda, alimentação, vestuário, higiene, combustível para ir trabalhar e todos os demais custos, não poderia o devedor insolvente providenciar uma habitação condigna e fazer face às mais elementares despesas do seu agregado, nem proporcionar uma alimentação digna aos filhos.

XIII) Apoiando-nos no critério do bonus pater familias, frisa-se que é insustentável exigir ao insolvente (e ao seu agregado familiar) que viva com o rendimento que lhe foi determinado, uma vez que o rendimento necessário para fazer face às suas necessidades básicas, permitindo-lhes o sustento minimamente digno – limite mínimo para a determinação do rendimento disponível! –, é significativamente superior.

XIX) Pelas razões aduzidas, deverá concluir-se pela exclusão dos proventos auferidos pelo Recorrente do rendimento indisponível correspondente a três salários mínimos nacionais, em razão das despesas invocadas e comprovadas e que não foram tidas em conta pelo tribunal recorrido, apenas devendo ser cedido ao fiduciário, o que exceda esse rendimento.

XX) E, em consequência, pede que se revogue o despacho recorrido e, nessa medida, substituindo-o por outro que, impondo a cessão do rendimento disponível do Recorrente, exclua desse montante o valor correspondente a três salários mínimos nacionais, de forma a permitir-lhe uma vida minimamente digna.

XXI) Bem assim, a consagrar-se uma compatibilização prática entre os princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção da família com as garantias patrimoniais dos credores.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deve ser revogada a deliberação recorrida, que deve ser substituída por outra que determine que o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar não poderá ser fixado em quantia inferior três salários mínimos nacionais, nos termos do disposto no artigo 239º, nº3, alínea b, subalínea iii), do CIRE.

Questão a resolver: Se, no momento processual em que foi proferido o despacho recorrido e atenta a fundamentação do requerimento sob apreciação, seria admissível o tribunal a quo determinar um aumento do valor excluído do rendimento disponível.

Factos a considerar para a resolução desta questão: Os que acima enunciámos.

*

Através do despacho recorrido, o tribunal a quo indeferiu o pedido de aumento do valor excluído do rendimento disponível com dois fundamentos:

1 – O valor excluído do rendimento disponível que foi fixado no despacho inicial de exoneração do passivo restante apenas poderia ser modificado por via de uma alteração superveniente das circunstâncias, sob pena de violação do princípio do caso julgado; não tendo o recorrente alegado nem provado a verificação de tal alteração, aquele valor teria de se manter;

2 – Independentemente do referido em 1, os factos invocados e os documentos apresentados pelo recorrente nunca justificariam a alteração requerida.

Cada um destes fundamentos surge, no despacho recorrido, como suficiente para, por si só, determinar o indeferimento do requerimento apresentado pelo recorrente. Não obstante, nas suas alegações de recurso, o recorrente ataca unicamente o segundo fundamento, procurando demonstrar que o valor excluído do rendimento disponível é insuficiente para assegurar o sustento minimamente digno do seu agregado familiar. Sobre o primeiro fundamento, nem uma palavra.

Basta isto para que o recurso esteja votado ao insucesso. Ainda que o segundo fundamento caísse por via do recurso, subsistiria o primeiro, cuja sindicância pelo tribunal ad quem o recorrente não solicitou. Sendo certo, repetimos, que o primeiro fundamento, de natureza processual, é, na lógica do despacho recorrido, suficiente para determinar o indeferimento da pretensão do recorrente.

Ainda assim, diremos que o primeiro argumento do tribunal a quo é inatacável.

O n.º 1 do artigo 613.º do CPC estabelece que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Esta regra é aplicável aos despachos, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo. Consagra-se, assim, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional.

Sendo assim, ao proferir o despacho inicial, o tribunal a quo ficou impedido de tomar nova decisão sobre o valor excluído do rendimento disponível, salvo se se provasse a verificação de uma alteração das circunstâncias em que aquele despacho foi proferido.

Com o trânsito em julgado do despacho inicial, não foi só o tribunal a quo que ficou impedido de proferir nova decisão sobre a mesma matéria. Por via da inadmissibilidade de recurso ordinário, tal impedimento estendeu-se ao tribunal que seria competente para o conhecimento desse recurso.

Não obstante, o recorrente apresentou, em 26.06.2023, um primeiro requerimento de aumento do valor excluído do rendimento disponível, com fundamento na alegada insuficiência daquele que fora fixado no despacho inicial para o sustento minimamente digno do seu agregado familiar, sem alegar qualquer facto posterior à data da prolação deste despacho.

Em 21.09.2023, o tribunal a quo proferiu despacho mediante o qual indeferiu o requerimento de 26.06.2023. Logo aí, o tribunal a quo consignou que o valor excluído do rendimento disponível «apenas pode ser alterado por via de uma alteração superveniente das circunstâncias» e que «inexiste qualquer alteração das circunstâncias que determinaram a fixação do rendimento indisponível no despacho de 17/5». Também este despacho transitou em julgado.

Não obstante, em 21.02.2024, o recorrente apresentou novo requerimento de aumento do valor excluído do rendimento disponível, mais uma vez sem alegar qualquer facto relevante ocorrido posteriormente à data da prolação do despacho inicial. Todos os factos então alegados, a serem reais, já se verificavam à data da prolação deste último, pelo que o recorrente tinha o ónus de os alegar e provar em devido tempo. O recorrente não alegou a superveniência de um único facto com fundamento no qual fosse possível concluir que as necessidades do seu agregado familiar tivessem crescido, como seria o nascimento de um filho ou um problema grave de saúde de um dos membros desse agregado que requeresse a realização de novas despesas. Em vez disso, limitou-se a tentar demonstrar que o valor excluído do rendimento disponível no despacho inicial era, ab initio, insuficiente.

Perante tudo isto, este segundo requerimento do recorrente não podia deixar de ser indeferido. Com a prolação do despacho inicial, ficou esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo para fixar o valor excluído do rendimento disponível com fundamento nos mesmos pressupostos. Com a prolação do despacho de 21.09.2023, o tribunal a quo reconheceu que lhe estava vedado rever aquele valor sem que fosse alegada e provada uma alteração das circunstâncias. É por demais evidente a inadmissibilidade de o recorrente insistir em pretensão idêntica, tentando levar o tribunal a quo a alterar o despacho inicial em violação do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 613.º do CPC.

Concluindo, o tribunal a quo decidiu acertadamente, devendo o recurso ser julgado improcedente.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

*

Évora, 11.07.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)


Acórdão da Relação de Évora de 11.07.2024

Processo n.º 2464/22.2T8STR.E1 * Sumário: Por via do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, ao ser proferido o despacho inic...