Processo n.º 2464/22.2T8STR.E1
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Sumário:
Por via do princípio do
esgotamento do poder jurisdicional, ao ser proferido o despacho inicial de
exoneração do passivo restante, fica vedado, ao tribunal, tomar nova decisão
sobre o valor excluído do rendimento disponível, salvo se se provar a verificação
de uma alteração das circunstâncias em que aquele despacho foi proferido,
nomeadamente um aumento dos encargos do agregado familiar do devedor.
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AAA requereu a declaração da
sua insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante.
Foi proferida sentença, que
declarou a insolvência do requerente.
Na sequência da apresentação
do relatório previsto no artigo 155.º do CIRE, foi proferido despacho de
encerramento do processo, com fundamento na insuficiência da massa insolvente.
Em 17.05.2023, foi proferido
despacho inicial de exoneração do passivo restante, no qual se determinou o
seguinte:
«Pelo
exposto e decidindo, ao abrigo do art. 239.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE, determino que
durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência
(período de cessão) o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se
considera cedido a fiduciário, investindo-se nessa qualidade o Sr.
Administrador de Insolvência nomeado nos autos, cuja remuneração e reembolso de
despesas ficam a cargo do insolvente (arts. 240.º, n.º 1 e 60.º, n.º 1 do
CIRE).
Considerando
o agregado familiar do insolvente e o critério a que alude o art. 239.º, n.º 3
do CIRE, que exclui do rendimento disponível a afectar à satisfação dos
créditos da insolvente o montante que constitua o sustento minimamente digno do
devedor, determino que o rendimento disponível do devedor/insolvente, objecto
da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que àquele
advenham, a qualquer título, com exclusão do correspondente ao montante de 1,25
salários mínimos nacionais, em cada um dos doze meses do ano.
As
quantias auferidas pelo insolvente a título de subsídios, reembolsos ou outros
ganhos pecuniários deverão ser somadas aos rendimentos laborais mensais, para
efeitos de contabilização do rendimento disponível.»
Não foi interposto recurso
deste despacho, tendo o mesmo transitado em julgado.
Invocando a insuficiência do
valor excluído do rendimento disponível para fazer face às despesas mensais do
seu agregado familiar, o devedor requereu, em 26.06.2023, «a revisão do rendimento fixado de modo a poder suportar as despesas
mensais indispensáveis».
Este requerimento foi
indeferido por despacho, proferido em 21.09.2023, no qual se escreveu,
nomeadamente, o seguinte:
«O
rendimento disponível fixado anteriormente apenas pode ser alterado por via de
uma alteração superveniente das circunstâncias, sob pena de violação do
princípio do caso julgado.
(…)
Revertendo
novamente ao caso em apreço, inexiste qualquer alteração das circunstâncias que
determinaram a fixação do rendimento indisponível no despacho de 17/5.
Pelo
exposto, e com os fundamentos que antecedem, indefere-se ao requerido.»
Não foi interposto recurso
deste despacho, tendo o mesmo transitado em julgado.
Em 21.02.2024, o devedor,
invocando, de novo, a insuficiência do valor excluído do rendimento disponível
para fazer face às despesas mensais do seu agregado familiar, requereu que o
mesmo fosse aumentado para o equivalente a 3 salários mínimos, exceptuando
subsídios de férias e de Natal, por só assim ficar salvaguardado o sustento
minimamente digno daquele agregado.
Em 19.03.2024, foi proferido
despacho mediante o qual se indeferiu o requerimento apresentado em 21.02.2024,
com um duplo fundamento. Por um lado, considerou-se que os factos invocados e
os documentos apresentados pelo devedor não justificavam o pretendido aumento
do valor excluído do rendimento disponível. Por outro, considerou-se que «O rendimento disponível fixado
anteriormente apenas pode ser alterado por via de uma alteração superveniente
das circunstâncias, sob pena de violação do princípio do caso julgado» e
que «do alegado pelo insolvente não se
verifica qualquer alteração do agregado familiar do insolvente desde a prolação
do despacho inicial.»
O devedor interpôs recurso
deste último despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:
I) Andou mal o douto Tribunal a quo ao decidir manter o valor
correspondente ao rendimento indisponível em 125% do SMN, o Tribunal,
interpretando, erroneamente, o preceituado no art.º 239.º, n.º 3, al. b), i) do
CIRE: o rendimento disponível, nos termos do disposto no art.º 239.º n.º3 CIRE,
é integrado pelos rendimentos que advenham por qualquer título ao devedor, com
exclusão daquilo que “seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente
digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão
fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional”.
II) Pois, a exclusão do rendimento da
cessão, consignada na subalínea i), deve ser apreciada, atendendo às
necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam aos devedores
insolventes e ao seu agregado familiar, tendo de ficar de fora do rendimento
disponível a ceder aos credores a parte suficiente e indispensável a poder
suportar economicamente a sua existência e que não equivale, necessária e
forçosamente, ao atribuído ao ora devedor.
III) Nem sequer foi tida em consideração
o clima financeiro atual vincadamente desfavorável às famílias de classe baixa
e média, marcado pelo aumento exponencial da inflação – aumentando de forma
significativa o custo de vida – e agravado pelas circunstâncias geopolíticas
internacionais e pelo pós-pandemia.
IV) É certo que o devedor e o seu
agregado familiar têm, presentemente e de forma previsível, como despesas
mensais, as despesas correntes de habitação, água, telefone, deslocações,
despesas médicas e medicamentosas, eletricidade e gás, no montante mensal de
900,00€, sem contabilizar as despesas de alimentação (que são avultadas, tendo
em conta a dimensão do agregado familiar), bem assim, os gastos normais de
vestuário e calçado (variáveis) e todos os outros gastos necessários à vivência
humana e /ou despesa extraordinária e necessária, num total claramente de muito
superior ao valor que o tribunal a quo lhe pretendia atribuir. sem contabilizar
todos os outros gastos necessários à vivência humana e /ou despesa
extraordinária e necessária.
V) As despesas que apresentou são
perfeitamente enquadráveis no padrão de vida normal e necessário a uma vida com
um mínimo de dignidade, com contenção de custos e com ausência de qualquer
luxo.
VI) Face aos seus rendimentos e às
despesas que comprovadamente alega, e que não se mostram descabidas ou
desproporcionais a uma vivência condigna, é manifesto que ao Recorrente não
pode ser imposta uma cessão do rendimento disponível em que apenas seja
salvaguardado o valor mensal de um SMN, acrescido de 25%.
VII) O valor estabelecido no despacho
recorrido como rendimento indisponível é claramente insuficiente para assegurar
uma sobrevivência condigna ao insolvente.
VIII) O limite mínimo para aferição do
montante a excluir do rendimento disponível, em termos de mínimo de
sobrevivência terá de ser encontrado pelo Tribunal face aos singulares
contornos de cada caso, sendo, pois, perante a aplicação do critério da
dignidade da pessoa humana, e decorrente sustentabilidade e razoabilidade (salvaguarda
de um padrão de vida condigna), às circunstâncias do caso concreto, que se
poderá determinar, a final, o quantum a reservar para o sustento do devedor e
agregado.
IX) A exclusão do rendimento da cessão,
consignada na subalínea i), deve ser apreciada atendendo às necessidades e
exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu
agregado familiar, tendo de ficar de fora do rendimento disponível a ceder aos
credores a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a
sua existência e que não equivale, necessária e forçosamente, a um salário
mínimo nacional.
X) Na fixação do montante a excluir do
rendimento disponível, para razoavelmente garantir o sustento minimamente digno
do devedor, deverá atender-se às suas condições e despesas – situação em
concreto – ponderando, designadamente, a fase da sua vida e a composição do seu
agregado familiar, tudo no quadro da necessária conciliação entre o interesse
do devedor, tal como prosseguido no instituto da exoneração do passivo, e o
interesse dos credores em verem satisfeitos os seus créditos.
XI) Impõe-se que seja excluído do
rendimento disponível a ceder ao fiduciário um valor nunca inferior a 3 SMN,
atendendo às despesas que tem de suportar e imprescindíveis à economia
doméstica do agregado familiar composto por quatro pessoas, sendo que tem uma
filha menor e um enteado, ambos a estudar.
XII) Aliás, com o montante atribuído de
1,25 SMN, sendo o único meio de subsistência a um agregado familiar composto
por quatro pessoas, renda, alimentação, vestuário, higiene, combustível para ir
trabalhar e todos os demais custos, não poderia o devedor insolvente
providenciar uma habitação condigna e fazer face às mais elementares despesas
do seu agregado, nem proporcionar uma alimentação digna aos filhos.
XIII) Apoiando-nos no critério do bonus pater familias, frisa-se que é
insustentável exigir ao insolvente (e ao seu agregado familiar) que viva com o
rendimento que lhe foi determinado, uma vez que o rendimento necessário para fazer
face às suas necessidades básicas, permitindo-lhes o sustento minimamente digno
– limite mínimo para a determinação do rendimento disponível! –, é
significativamente superior.
XIX) Pelas razões aduzidas, deverá
concluir-se pela exclusão dos proventos auferidos pelo Recorrente do rendimento
indisponível correspondente a três salários mínimos nacionais, em razão das
despesas invocadas e comprovadas e que não foram tidas em conta pelo tribunal
recorrido, apenas devendo ser cedido ao fiduciário, o que exceda esse
rendimento.
XX) E, em consequência, pede que se
revogue o despacho recorrido e, nessa medida, substituindo-o por outro que,
impondo a cessão do rendimento disponível do Recorrente, exclua desse montante
o valor correspondente a três salários mínimos nacionais, de forma a
permitir-lhe uma vida minimamente digna.
XXI) Bem assim, a consagrar-se uma
compatibilização prática entre os princípios da dignidade da pessoa humana e da
proteção da família com as garantias patrimoniais dos credores.
Nestes termos, deve ser dado provimento
ao presente recurso, em consequência do que deve ser revogada a deliberação
recorrida, que deve ser substituída por outra que determine que o sustento
minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar não poderá ser fixado
em quantia inferior três salários mínimos nacionais, nos termos do disposto no
artigo 239º, nº3, alínea b, subalínea iii), do CIRE.
Questão a resolver: Se, no
momento processual em que foi proferido o despacho recorrido e atenta a
fundamentação do requerimento sob apreciação, seria admissível o tribunal a quo determinar um aumento do valor
excluído do rendimento disponível.
Factos a considerar para a
resolução desta questão: Os que acima enunciámos.
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Através do despacho
recorrido, o tribunal a quo indeferiu
o pedido de aumento do valor excluído do rendimento disponível com dois
fundamentos:
1 – O valor excluído do rendimento
disponível que foi fixado no despacho inicial de exoneração do passivo restante
apenas poderia ser modificado por via de uma alteração superveniente das
circunstâncias, sob pena de violação do princípio do caso julgado; não tendo o
recorrente alegado nem provado a verificação de tal alteração, aquele valor teria
de se manter;
2 – Independentemente do referido em 1,
os factos invocados e os documentos apresentados pelo recorrente nunca
justificariam a alteração requerida.
Cada um destes fundamentos
surge, no despacho recorrido, como suficiente para, por si só, determinar o
indeferimento do requerimento apresentado pelo recorrente. Não obstante, nas
suas alegações de recurso, o recorrente ataca unicamente o segundo fundamento,
procurando demonstrar que o valor excluído do rendimento disponível é
insuficiente para assegurar o sustento minimamente digno do seu agregado
familiar. Sobre o primeiro fundamento, nem uma palavra.
Basta isto para que o
recurso esteja votado ao insucesso. Ainda que o segundo fundamento caísse por
via do recurso, subsistiria o primeiro, cuja sindicância pelo tribunal ad quem o recorrente não solicitou. Sendo
certo, repetimos, que o primeiro fundamento, de natureza processual, é, na
lógica do despacho recorrido, suficiente para determinar o indeferimento da
pretensão do recorrente.
Ainda assim, diremos que o
primeiro argumento do tribunal a quo
é inatacável.
O n.º 1 do artigo 613.º do
CPC estabelece que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder
jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Esta regra é aplicável aos
despachos, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo. Consagra-se, assim, o princípio
do esgotamento do poder jurisdicional.
Sendo assim, ao proferir o
despacho inicial, o tribunal a quo
ficou impedido de tomar nova decisão sobre o valor excluído do rendimento
disponível, salvo se se provasse a verificação de uma alteração das
circunstâncias em que aquele despacho foi proferido.
Com o trânsito em julgado do
despacho inicial, não foi só o tribunal a
quo que ficou impedido de proferir nova decisão sobre a mesma matéria. Por
via da inadmissibilidade de recurso ordinário, tal impedimento estendeu-se ao
tribunal que seria competente para o conhecimento desse recurso.
Não obstante, o recorrente
apresentou, em 26.06.2023, um primeiro requerimento de aumento do valor
excluído do rendimento disponível, com fundamento na alegada insuficiência
daquele que fora fixado no despacho inicial para o sustento minimamente digno
do seu agregado familiar, sem alegar qualquer facto posterior à data da
prolação deste despacho.
Em 21.09.2023, o tribunal a quo proferiu despacho mediante o qual
indeferiu o requerimento de 26.06.2023. Logo aí, o tribunal a quo consignou que o valor excluído do
rendimento disponível «apenas pode ser
alterado por via de uma alteração superveniente das circunstâncias» e que «inexiste qualquer alteração das
circunstâncias que determinaram a fixação do rendimento indisponível no
despacho de 17/5». Também este despacho transitou em julgado.
Não obstante, em 21.02.2024,
o recorrente apresentou novo requerimento de aumento do valor excluído do
rendimento disponível, mais uma vez sem alegar qualquer facto relevante ocorrido
posteriormente à data da prolação do despacho inicial. Todos os factos então
alegados, a serem reais, já se verificavam à data da prolação deste último,
pelo que o recorrente tinha o ónus de os alegar e provar em devido tempo. O
recorrente não alegou a superveniência de um único facto com fundamento no qual
fosse possível concluir que as necessidades do seu agregado familiar tivessem
crescido, como seria o nascimento de um filho ou um problema grave de saúde de
um dos membros desse agregado que requeresse a realização de novas despesas. Em
vez disso, limitou-se a tentar demonstrar que o valor excluído do rendimento
disponível no despacho inicial era, ab
initio, insuficiente.
Perante tudo isto, este
segundo requerimento do recorrente não podia deixar de ser indeferido. Com a
prolação do despacho inicial, ficou esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo para fixar o valor excluído do
rendimento disponível com fundamento nos mesmos pressupostos. Com a prolação do
despacho de 21.09.2023, o tribunal a quo
reconheceu que lhe estava vedado rever aquele valor sem que fosse alegada e
provada uma alteração das circunstâncias. É por demais evidente a
inadmissibilidade de o recorrente insistir em pretensão idêntica, tentando
levar o tribunal a quo a alterar o
despacho inicial em violação do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 613.º do CPC.
Concluindo, o tribunal a quo decidiu acertadamente, devendo o
recurso ser julgado improcedente.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo do
recorrente.
Notifique.
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Évora,
11.07.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.º adjunto)
(2.ª adjunta)