sábado, 21 de maio de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 28.04.2022

Processo n.º 115/21.1T8LGA.E1

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Sumário:

1 – Sendo dois insolventes casados entre si, a circunstância de o despacho inicial de exoneração do passivo restante ter fixado individualmente o montante do rendimento de cada um deles excluído da cessão nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, não obsta à reponderação, na hipótese de morte de um deles, do montante do rendimento daquele que sobreviveu que fica excluído da mesma cessão.

2 – Sendo o agregado familiar constituído pela insolvente sobreviva e pela filha de ambos e mantendo-se as despesas fixas, aquela reponderação impõe-se.

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Em 27.10.2021, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante mediante o qual foi determinado que, durante os 5 anos subsequentes ao encerramento do processo, cada um dos insolventes, LQ e SQ, casados entre si, entregasse, ao fiduciário, o valor do seu rendimento anual que excedesse o correspondente a 1,25 da retribuição mínima mensal garantida por mês.

Posteriormente, a insolvente informou o tribunal de que seu marido faleceu no dia 28.11.2021 e, com esse fundamento, requereu a reponderação do montante do seu rendimento excluído da cessão nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, de forma a fixar-se o mesmo em montante não inferior a 2,5 salários mínimos nacionais.

Foi proferido despacho indeferindo este requerimento.

A insolvente interpôs recurso de apelação deste despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) Mal andou a decisão recorrida ao indeferir a requerida alteração do rendimento disponível fundamentando na diminuição das despesas inerentes ao ora falecido porquanto, analisadas todas as despesas elencadas nos artigos 41.º a 46.º da petição inicial, resulta claro que daquelas apenas os consumos domésticos poderão vir a sofrer uma redução por via do decesso do insolvente marido, mantendo-se todas as demais, sem qualquer alteração ou impacto no seu valor, todavia agora suportadas exclusivamente pela recorrente, desacompanhada do apoio económico do falecido cônjuge.

B) A manutenção do valor fixado a título de rendimento disponível, que não pondera a relevante alteração das condições pessoais e familiares da recorrente, viola o critério da dignidade da pessoa humana, bem como os critérios da adequação, proporcionalidade e da necessidade.

C) Os rendimentos auferidos a título de pensão de sobrevivência por morte do marido da recorrente em nada relevam para a operação de revisão do rendimento disponível porquanto, independentemente do valor destes subsídios, não se operando aquela (revisão), todos e quaisquer rendimentos, de qualquer natureza ou regularidade, terão sempre de ser cedidos a favor da massa insolvente na parte em que excederem o montante fixado.

D) É incontroverso que é materialmente distinta a situação de um casal insolvente que dispunha de um rendimento disponível mensal fixado em 2,5 salários mínimos nacionais, da situação de um único membro desse casal que, pelo decesso do seu cônjuge, passou a dispor de 1,25 salários mínimos nacionais para fazer face à sua subsistência, suportando sozinha a totalidade das despesas fixas, designadamente aquelas em que o número de membros não gera qualquer impacto no seu valor ou consumo, tal como a renda, ou aquelas umbilicalmente ligadas à pessoa do cônjuge sobrevivo, tais como despesas de saúde para debelar a sua doença oncológica.

E) É, pois, manifesto que a ocorrência posterior – decesso do insolvente marido – impõe uma reponderação e revisão do rendimento disponível a fixar à recorrente, enquanto cônjuge sobrevivo.

F) O despacho recorrido realizou uma incorrecta apreciação e aplicação do direito, devendo ser substituído por douto acórdão que proceda à revisão do rendimento indisponível fixado à recorrente à razão do superveniente decesso do seu cônjuge, fixando-se o rendimento disponível em montante mensal nunca inferior a 2,5 salários mínimos nacionais, o que se toma por equilibrado e proporcional à salvaguarda dos interesses e valores em confronto, nomeadamente de modo a permitir o sustento minimamente digno da devedora.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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Questão a resolver: se, em face do óbito do insolvente marido, deverá proceder-se a um reajustamento do montante do rendimento da recorrente excluído da cessão nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, e, na hipótese afirmativa, em que medida.

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Para a decisão do recurso, importa ter em consideração os seguintes factos, julgados provados no despacho inicial:

- A recorrente, nascida em 04.07.1970, era casada com o insolvente LQ;

- O agregado familiar era constituído por ambos e uma filha maior de idade, estudante;

- O salário do insolvente LQ era de € 639,11 por mês;

- O salário da recorrente era de € 665 por mês;

- O agregado familiar não dispunha de outros rendimentos;

- A renda da habitação era de € 400 por mês.

Importa ter ainda em consideração, naturalmente, o facto superveniente do óbito de LQ, ocorrido no dia 28.11.2021 (cópia do assento de óbito junto pela recorrente com o requerimento indeferido pelo despacho recorrido).

O teor do despacho recorrido é, na parte que nos interessa, o seguinte:

“O rendimento indisponível foi fixado separadamente para cada um dos insolventes. O falecimento de um deles não impõe, só por si, a revisão do valor fixado. Pois se é certo que deixou de haver o contributo da retribuição do falecido para a economia doméstica, esta também deixou de abranger as despesas inerentes a esse membro entretanto falecido, além de que, para uma reponderação da situação importaria que a requerente esclarecesse o valor das pensões por morte que terão sido atribuídas a si e à filha menor, o que não faz.

Em face do alegado, e pelas razões expostas, por falta de fundamento, indefere-se o requerido.”

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O despacho recorrido não poderá manter-se, pelas razões que passamos a expor.

É certo que o montante do rendimento excluído da cessão nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, foi fixado separadamente para cada um dos insolventes. Contudo, daí não resulta que o óbito de um destes seja irrelevante sob o ponto de vista do montante do rendimento do cônjuge sobrevivo que fica excluído da cessão. Seria assim se cada um dos insolventes vivesse na sua casa e não houvesse filhos em comum que deles dependessem. Todavia, a realidade é outra. Os dois insolventes formavam, juntamente com a filha de ambos, um agregado familiar, pelo que o óbito de um deles tem, necessariamente, forte repercussão na economia desse agregado. Daí ter inteira justificação uma reponderação do montante do rendimento da recorrente excluído da cessão.

Tal como é referido no despacho recorrido, o óbito do insolvente LQ determinou a cessação das despesas com a pessoa deste último, razão suficiente para que o montante do rendimento da recorrente excluído da cessão não possa ser de 2,5 salários mínimos nacionais, como esta pretende. Tendo aquela exclusão por objectivo a garantia do sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não faria sentido que o montante global objecto da mesma exclusão se mantivesse não obstante a diminuição das despesas do agregado familiar. Forçosamente, tal montante deverá baixar.

Contudo, as únicas despesas do agregado familiar que desapareceram foram as pessoais do insolvente falecido. Mantêm-se as despesas pessoais da recorrente e da filha de ambos, bem como as despesas fixas – recorde-se que só a renda da habitação é de € 400 por mês – do agregado familiar. Daí que o montante do rendimento da recorrente excluído da cessão tenha de aumentar, sob pena de ficar em causa o seu sustento minimamente digno, bem como o de sua filha, ainda a estudar.

Para se proceder à reponderação do montante do rendimento da recorrente excluído da cessão é irrelevante o valor de uma pensão por morte do marido que ela eventualmente venha a receber. Tal reponderação deverá ser feita em função das necessidades da recorrente e do seu agregado familiar e não do montante dos seus rendimentos, actuais ou futuros. Estes integrarão o rendimento disponível na medida em que excedam o montante que resultar da referida reponderação.

Também é irrelevante, neste momento, o valor de uma pensão por morte do insolvente LQ que eventualmente venha a ser atribuída à filha deste e da recorrente. Tanto quanto resulta dos autos, trata-se de um facto futuro e incerto, pelo que não pode obstar ao imediato reajustamento do montante do rendimento da recorrente que fica excluído da cessão, o qual, pelas razões apontadas, se impõe.

Resta fixar o montante que fica excluído da cessão. Como anteriormente referimos, as únicas despesas que deixaram de ser efectuadas foram aquelas que se relacionavam directamente com a pessoa do insolvente falecido. Mantêm-se as despesas pessoais da recorrente e da filha de ambos, bem como as despesas fixas, nestas avultado a renda da habitação. Tudo ponderado, deverá o montante excluído da cessão ser fixado em 2,25 salários mínimos nacionais.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso parcialmente procedente, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se que, durante o tempo restante do período da cessão, a recorrente entregue, ao fiduciário, o valor do seu rendimento anual que exceda o montante correspondente a 2,25 salários mínimos nacionais.

A recorrente é responsável pelas custas na proporção do seu decaimento, que se fixa em 20%.

Notifique.

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Évora, 28.04.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta

 

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