Processo n.º 115/21.1T8LGA.E1
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Sumário:
1
– Sendo dois insolventes casados entre si, a circunstância de o despacho
inicial de exoneração do passivo restante ter fixado individualmente o montante
do rendimento de cada um deles excluído da cessão nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al.
b), ponto i), do CIRE, não obsta à reponderação, na
hipótese de morte de um deles, do montante do rendimento daquele que sobreviveu
que fica excluído da mesma cessão.
2
– Sendo o agregado familiar constituído pela insolvente sobreviva e pela filha
de ambos e mantendo-se as despesas fixas, aquela reponderação impõe-se.
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Em
27.10.2021, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante
mediante o qual foi determinado que, durante os 5 anos subsequentes ao
encerramento do processo, cada um dos insolventes, LQ e SQ, casados entre si, entregasse,
ao fiduciário, o valor do seu rendimento anual que excedesse o correspondente a
1,25 da retribuição mínima mensal garantida por mês.
Posteriormente,
a insolvente informou o tribunal de que seu marido faleceu no dia 28.11.2021 e,
com esse fundamento, requereu a reponderação do montante do seu rendimento
excluído da cessão nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do
CIRE, de forma a fixar-se o mesmo em montante não inferior a 2,5 salários
mínimos nacionais.
Foi
proferido despacho indeferindo este requerimento.
A
insolvente interpôs recurso de apelação deste despacho, tendo formulado as
seguintes conclusões:
A) Mal
andou a decisão recorrida ao indeferir a requerida alteração do rendimento
disponível fundamentando na diminuição das despesas inerentes ao ora falecido
porquanto, analisadas todas as despesas elencadas nos artigos 41.º a 46.º da
petição inicial, resulta claro que daquelas apenas os consumos domésticos
poderão vir a sofrer uma redução por via do decesso do insolvente marido,
mantendo-se todas as demais, sem qualquer alteração ou impacto no seu valor,
todavia agora suportadas exclusivamente pela recorrente, desacompanhada do
apoio económico do falecido cônjuge.
B) A
manutenção do valor fixado a título de rendimento disponível, que não pondera a
relevante alteração das condições pessoais e familiares da recorrente, viola o
critério da dignidade da pessoa humana, bem como os critérios da adequação,
proporcionalidade e da necessidade.
C) Os
rendimentos auferidos a título de pensão de sobrevivência por morte do marido
da recorrente em nada relevam para a operação de revisão do rendimento
disponível porquanto, independentemente do valor destes subsídios, não se
operando aquela (revisão), todos e quaisquer rendimentos, de qualquer natureza
ou regularidade, terão sempre de ser cedidos a favor da massa insolvente na
parte em que excederem o montante fixado.
D) É
incontroverso que é materialmente distinta a situação de um casal insolvente
que dispunha de um rendimento disponível mensal fixado em 2,5 salários mínimos
nacionais, da situação de um único membro desse casal que, pelo decesso do seu
cônjuge, passou a dispor de 1,25 salários mínimos nacionais para fazer face à
sua subsistência, suportando sozinha a totalidade das despesas fixas,
designadamente aquelas em que o número de membros não gera qualquer impacto no
seu valor ou consumo, tal como a renda, ou aquelas umbilicalmente ligadas à
pessoa do cônjuge sobrevivo, tais como despesas de saúde para debelar a sua
doença oncológica.
E) É,
pois, manifesto que a ocorrência posterior – decesso do insolvente marido –
impõe uma reponderação e revisão do rendimento disponível a fixar à recorrente,
enquanto cônjuge sobrevivo.
F) O
despacho recorrido realizou uma incorrecta apreciação e aplicação do direito,
devendo ser substituído por douto acórdão que proceda à revisão do rendimento
indisponível fixado à recorrente à razão do superveniente decesso do seu
cônjuge, fixando-se o rendimento disponível em montante mensal nunca inferior a
2,5 salários mínimos nacionais, o que se toma por equilibrado e proporcional à
salvaguarda dos interesses e valores em confronto, nomeadamente de modo a
permitir o sustento minimamente digno da devedora.
Não
foram apresentadas contra-alegações.
O
recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente
devolutivo.
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Questão
a resolver: se, em face do óbito do insolvente marido, deverá proceder-se a um
reajustamento do montante do rendimento da recorrente excluído da cessão nos
termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, e, na hipótese
afirmativa, em que medida.
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Para
a decisão do recurso, importa ter em consideração os seguintes factos, julgados
provados no despacho inicial:
- A
recorrente, nascida em 04.07.1970, era casada com o insolvente LQ;
- O
agregado familiar era constituído por ambos e uma filha maior de idade,
estudante;
- O salário
do insolvente LQ era de € 639,11 por mês;
- O
salário da recorrente era de € 665 por mês;
- O
agregado familiar não dispunha de outros rendimentos;
- A
renda da habitação era de € 400 por mês.
Importa
ter ainda em consideração, naturalmente, o facto superveniente do óbito de LQ, ocorrido
no dia 28.11.2021 (cópia do assento de
óbito junto pela recorrente com o requerimento indeferido pelo despacho
recorrido).
O
teor do despacho recorrido é, na parte que nos interessa, o seguinte:
“O rendimento indisponível foi fixado
separadamente para cada um dos insolventes. O falecimento de um deles não
impõe, só por si, a revisão do valor fixado. Pois se é certo que deixou de
haver o contributo da retribuição do falecido para a economia doméstica, esta
também deixou de abranger as despesas inerentes a esse membro entretanto
falecido, além de que, para uma reponderação da situação importaria que a
requerente esclarecesse o valor das pensões por morte que terão sido atribuídas
a si e à filha menor, o que não faz.
Em face do alegado, e pelas razões
expostas, por falta de fundamento, indefere-se o requerido.”
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O
despacho recorrido não poderá manter-se, pelas razões que passamos a expor.
É
certo que o montante do rendimento excluído da cessão nos termos do artigo
239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, foi fixado separadamente para cada um
dos insolventes. Contudo, daí não resulta que o óbito de um destes seja
irrelevante sob o ponto de vista do montante do rendimento do cônjuge sobrevivo
que fica excluído da cessão. Seria assim se cada um dos insolventes vivesse na
sua casa e não houvesse filhos em comum que deles dependessem. Todavia, a
realidade é outra. Os dois insolventes formavam, juntamente com a filha de
ambos, um agregado familiar, pelo que o óbito de um deles tem, necessariamente,
forte repercussão na economia desse agregado. Daí ter inteira justificação uma
reponderação do montante do rendimento da recorrente excluído da cessão.
Tal
como é referido no despacho recorrido, o óbito do insolvente LQ determinou a
cessação das despesas com a pessoa deste último, razão suficiente para que o
montante do rendimento da recorrente excluído da cessão não possa ser de 2,5
salários mínimos nacionais, como esta pretende. Tendo aquela exclusão por
objectivo a garantia do sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado
familiar, não faria sentido que o montante global objecto da mesma exclusão se
mantivesse não obstante a diminuição das despesas do agregado familiar.
Forçosamente, tal montante deverá baixar.
Contudo,
as únicas despesas do agregado familiar que desapareceram foram as pessoais do
insolvente falecido. Mantêm-se as despesas pessoais da recorrente e da filha de
ambos, bem como as despesas fixas – recorde-se que só a renda da habitação é de
€ 400 por mês – do agregado familiar. Daí que o montante do rendimento da
recorrente excluído da cessão tenha de aumentar, sob pena de ficar em causa o
seu sustento minimamente digno, bem como o de sua filha, ainda a estudar.
Para
se proceder à reponderação do montante do rendimento da recorrente excluído da
cessão é irrelevante o valor de uma pensão por morte do marido que ela
eventualmente venha a receber. Tal reponderação deverá ser feita em função das
necessidades da recorrente e do seu agregado familiar e não do montante dos seus
rendimentos, actuais ou futuros. Estes integrarão o rendimento disponível na
medida em que excedam o montante que resultar da referida reponderação.
Também
é irrelevante, neste momento, o valor de uma pensão por morte do insolvente LQ que
eventualmente venha a ser atribuída à filha deste e da recorrente. Tanto quanto
resulta dos autos, trata-se de um facto futuro e incerto, pelo que não pode
obstar ao imediato reajustamento do montante do rendimento da recorrente que
fica excluído da cessão, o qual, pelas razões apontadas, se impõe.
Resta
fixar o montante que fica excluído da cessão. Como anteriormente referimos, as
únicas despesas que deixaram de ser efectuadas foram aquelas que se
relacionavam directamente com a pessoa do insolvente falecido. Mantêm-se as
despesas pessoais da recorrente e da filha de ambos, bem como as despesas
fixas, nestas avultado a renda da habitação. Tudo ponderado, deverá o montante
excluído da cessão ser fixado em 2,25 salários mínimos nacionais.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso parcialmente procedente, revogando-se o despacho
recorrido e determinando-se que,
durante o tempo restante do período da cessão, a recorrente entregue, ao
fiduciário, o valor do seu rendimento anual que exceda o montante correspondente
a 2,25 salários mínimos nacionais.
A recorrente é responsável pelas custas
na proporção do seu decaimento, que se fixa em 20%.
Notifique.
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Évora, 28.04.2022
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª adjunta