Processo n.º 74/24.9T8LGA.E1
*
Sumário:
1 – A nulidade da sentença
prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC verifica-se, não só na
hipótese de absoluta
ausência de fundamentação, de facto ou de direito, mas também na de tal fundamentação
ser de tal modo incompleta que não permita a percepção das razões de facto e de
direito que determinaram o tribunal a decidir como decidiu.
2 – O processo de insolvência comporta duas fases:
uma primeira de natureza
declarativa, destinada a verificar se existe a situação de insolvência invocada
e, quando exista, a declará-la, e uma segunda visando a execução universal do
património do insolvente.
3 – Verifica-se uma
identidade de sujeitos, entre dois processos de insolvência, para o efeito de
delimitar as excepções de litispendência e de caso julgado, quando, na primeira
fase daqueles, o devedor e, se for o caso, o credor requerente, forem os
mesmos.
4 – A causa de pedir de um
processo de insolvência consiste numa determinada situação de insolvência em
que o devedor se encontra.
5 – Verificar-se-á uma
situação de identidade de causas de pedir se, em processos de insolvência
distintos, a situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas
pelo devedor for a mesma, ainda que o valor e a composição do passivo e do
activo (quando haja) apresente alguma diferença.
6 – Estaremos perante causas
de pedir distintas se a situação de impossibilidade de o devedor cumprir, em
determinado momento, as suas obrigações vencidas, se configure como distinta de
uma situação de impossibilidade de cumprimento anterior e não como um mero
prolongamento desta.
*
AAA e BBB, casados entre si,
requereram, em 18.04.2024, a declaração da sua insolvência, com pedido de
exoneração do passivo restante, alegando, em síntese, o seguinte:
- Os requerentes foram sócios-gerentes
de uma sociedade comercial declarada insolvente em Dezembro de 2010;
- Os requerentes eram avalistas da
sociedade, tendo sido, nessa qualidade, demandados em acções executivas
instauradas pelos credores daquela;
- Os requerentes ficaram desempregados,
sem rendimentos nem poupanças, pelo que tiveram de emigrar temporariamente para
França, onde arrendaram um apartamento;
- Os requerentes celebraram um contrato
de mútuo com hipoteca, destinado à aquisição de habitação própria e permanente
para o seu agregado familiar;
- O incumprimento deste contrato
originou uma acção executiva contra os requerentes;
- Em 03.10.2012, os requerentes
apresentaram-se à insolvência, tendo sido declarados insolventes;
- No âmbito do processo de insolvência,
os requerentes nunca foram informados, durante os 5 anos do período de cessão
de rendimentos, do valor a ceder à fidúcia;
- Só em 29.12.2022 os requerentes foram
surpreendidos pela informação, dada pelo fiduciário, do valor total em dívida à
fidúcia relativamente ao período de cessão, que teriam de pagar, na sua
totalidade, em poucos dias;
- Os requerentes não conseguiram pagar
esse valor, o que determinou a prolação, em 06.09.2023, de despacho de recusa
de exoneração do passivo restante;
- O processo de insolvência foi
encerrado em 15.03.2024;
- Os requerentes têm, respectivamente,
54 e 51 anos de idade, têm um filho com 8 anos de idade e residem em casa de
familiares;
- A requerente BBB foi diagnosticada, em
2008, com esclerose múltipla, que a incapacita permanentemente para o exercício
de quaisquer funções; encontra-se reformada por invalidez, auferindo uma pensão
média mensal de € 900;
- O requerente AAA foi diagnosticado com
cancro em Junho de 2022; trabalha como pedreiro, auferindo um rendimento médio
mensal de € 2.000;
- A título de renda de casa, os requerentes
pagam um valor mensal de € 590;
- Os requerentes são ajudados pela filha
mais velha do casal, com 29 anos de idade, que já é financeiramente independente;
- As despesas mensais essenciais para
que os requerentes e o seu filho menor possam ter uma vida minimamente condigna
totalizam € 3.090;
- Os requerentes encontram-se impossibilitados
de cumprir as suas obrigações vencidas [artigo 3.º, n.º 1, do CIRE];
- Verifica-se uma suspensão generalizada
do pagamento das obrigações vencidas dos requerentes [artigo 20.º, n.º 1,
alínea a) do CIRE];
- Os requerentes encontram-se em
incumprimento de grande parte das suas obrigações, não existindo qualquer
possibilidade de satisfazerem pontualmente a generalidade das mesmas [artigo
20.º, n.º 1, alínea b) do CIRE];
- A situação de insolvência dos requerentes
é actual, ao abrigo do disposto no artigo 23.º, n.º 2, alínea a) do CIRE;
- Os requerentes nunca beneficiaram da exoneração
do passivo restante (cf. artigo 238.º, n.º 1, alínea c) do C.I.R.E.).
O tribunal de 1.ª instância
proferiu despacho de indeferimento liminar do requerimento inicial, que se
transcreve na parte relevante para a decisão do recurso:
«Exceção
de caso julgado:
(…)
Os
requerentes apresentam-se à insolvência alegando encontrarem-se
impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas. Sucede que os mesmos
devedores já se haviam apresentado à insolvência e foram declarados insolventes
em 19 de Outubro de 2012, no processo n.º 2721/12.6TBLLE.
Impõe-se
averiguar se esta ação importa uma repetição daquela outra que foi decidida no
referido processo n.º 2721/12.6TBLLE.
Estabelece
o artigo 580º do Código de Processo Civil que:
1.
As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma
causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à
litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido
decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção
do caso julgado.
2.
Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que
o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma
decisão anterior.(…)
E
o artigo 581º do mesmo Código que:
1.
Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos
sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2.
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista
da sua qualidade jurídica.
3.
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo
efeito jurídico.
4.
Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações
procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto
jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é
o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito
pretendido.
A
exceção de caso julgado tem por efeito a inadmissibilidade da segunda ação, por
constituir uma repetição da primeira, e pressupõe sempre a identidade de
sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
O
requerente pretende ser declarado insolvente, pretensão igual à que deduziu no
processo n.º 2721/12.6TBLLE.
No
que respeita aos sujeitos processuais, há que atentar em que o processo de
insolvência é um processo de natureza complexa, que comporta essencialmente
duas fases: uma primeira fase, de natureza declarativa, onde se afere o estado
de insolvência do devedor, ou a requerimento de um credor ou do próprio
devedor; e uma fase executiva, de liquidação do património do devedor para
pagamento aos credores.
Os
sujeitos processuais no processo de insolvência são, pois, o devedor e os
credores.
Quando
o processo é desencadeado pelo devedor, a sentença é proferida sem
contraditório dos credores - artigos 24º, 27º e 28 do Código da Insolvência e
da Recuperação de Empresas – pelo que até à citação dos credores, que ocorre
depois de proferida a sentença, não existe parte contrária, propriamente dita.
De todo o modo, o devedor está obrigado a indicar todos seus credores – artigo
24º, n.º 1 alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas -
pelo que a identidade dos sujeitos, para efeitos de apreciação da exceção de
caso julgado, afere-se face aos credores indicados pelo devedor.
Se
atentarmos na lista de credores indicada pelos devedores e às datas de
vencimento dos créditos, verificamos que os credores são substancialmente os
mesmos do processo n.º 2721/12.6TBLLE.
A
causa de pedir, que constitui o facto jurídico do qual emerge a pretensão do
autor, é, no processo de insolvência, a impossibilidade de o devedor cumprir as
suas obrigações – artigo 3.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação
de Empresas.
A
impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações resulta da sua situação
patrimonial e do seu passivo. Se o devedor mantém o passivo que já tinha
aquando da declaração de insolvência anterior e persistindo a impossibilidade
de o pagar, nada de novo consta da causa de pedir que justifique uma nova ação.
Pois
é o que sucede nestes autos: os aqui requerentes, em 2012, requereu e viram
declarada a sua situação de insolvência perante o passivo que na altura
apresentavam. Passivo que se mantém, pelo menos parcialmente, mantendo-se,
segundo alegam, a sua incapacidade de pagamento.
Estão,
assim, reunidos os pressupostos legais da exceção de caso julgado.
Não
procede a alegação dos requerentes de que pretende beneficiar da exoneração do
passivo, e, com esse fundamento, obviar à exceção de caso julgado.
A
exoneração do passivo constitui um incidente do processo de insolvência, e só é
admissível caso haja processo de insolvência validamente instaurado e
insolvência declarada. Não havendo fundamento legal para a abertura do próprio
processo de insolvência, antes um impedimento legal à sua instauração, a
intenção de deduzir o incidente não lhe atribui tal fundamento.
Acresce
que, os aqui requerentes deduziram o incidente de exoneração no processo n.º
2721/12.6TBLLE, mas veio-lhe a ser recusada a exoneração. Pelo que, o próprio
incidente seria uma repetição do anterior.
Em
face do exposto, de harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 580º,
581º, 577º, alínea i), 578º e 278º, n.º 1 alínea e), do Código de Processo
Civil, aplicáveis por remissão do artigo 17º do Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas, e artigo 27º, n.º 1, alínea a), deste código, indefiro
liminarmente o pedido de insolvência formulado pelos requerentes.
(…)»
Os requerentes interpuseram
recurso de apelação deste despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida, nos termos da
qual o tribunal a quo julgou
verificada a exceção de caso julgado e indeferiu liminarmente o pedido de
declaração de insolvência dos recorrentes, padece de nulidade e consiste numa
interpretação e aplicação erradas da lei.
- Da nulidade da sentença por violação
do dever de fundamentação:
2. Impunha-se que o tribunal a quo tivesse identificado, de forma
precisa, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir subjacentes tanto ao primeiro
processo de insolvência (processo n.º 2721/12.6TBLLE), como ao presente
processo de insolvência, para poder aferir da existência (ou não) de repetição
da ação.
3. Quando o tribunal a quo, de forma genérica, afirma, por
referência à anterior insolvência, que o passivo (sem identificar qual) se
manteria pelo menos parcialmente o mesmo, limita-se a fazer um juízo meramente
conclusivo e mostra-se totalmente omisso sobre a composição concreta do passivo
existente na altura da apresentação à primeira insolvência em 2012 e sobre o
concreto passivo que o tribunal a quo
terá considerado ter-se mantido na apresentação à presente insolvência.
4. O tribunal a quo não podia concluir – como erradamente fez – que os credores e
as datas de vencimento, indicados na presente ação, seriam substancialmente as
mesmas do processo anterior, se nada refere, na sentença recorrida, sobre os credores
e as datas de vencimento subjacentes à anterior ação de insolvência (cfr.
sentença datada de 20/05/2024, da qual ora se recorre).
5. O tribunal a quo não indica nenhum facto integrador da causa de pedir
subjacente à anterior ação de insolvência, não descrevendo, por exemplo, a
situação económica subjacente a essa primeira insolvência que consubstancia,
necessariamente, o ponto de partida para depois se poder chegar à conclusão da
existência (ou não) de uma situação de similitude qualificadora de caso
julgado.
6. O tribunal a quo nada diz sobre factos que tenha eventualmente considerado
assentes provenientes do anterior processo de insolvência dos recorrentes, nem
consta dos autos que o tribunal a quo
tenha chegado a consultar o anterior processo de insolvência dos recorrentes.
7. A falta de fundamentação impede os recorrentes
de conhecer as razões que motivaram a decisão do tribunal a quo, vendo-se, por conseguinte, impedidos de atacá-la no presente
recurso, designadamente por desconhecerem a que factos a alegada repetição da
ação se reporta na perspetiva do tribunal.
8. Além disso, ainda que este douto tribunal
vislumbrasse algum fundamento de facto e/ou de direito no âmbito do despacho
ora recorrido – o que apenas se admite por mero dever de patrocínio – sempre
tal pretensa fundamentação seria terrivelmente medíocre e insuficiente, em
termos tais que inviabilizam a possibilidade dos recorrentes em compreender as
razões que levaram o tribunal a quo a
decidir de uma maneira e não de outra, o que é igualmente passível de gerar
nulidade da decisão (cfr. neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de
Coimbra, de 17/04/2012, acima parcialmente transcrito).
9. Ora, impõe a lei o dever de
fundamentação das decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou
sobre alguma dúvida suscitada no processo (dever de motivação) (cfr. art.º
154.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE e art.º 205.º da Constituição).
10. Por conseguinte, faltando os
fundamentos de facto e de direito da decisão sempre seria o despacho ora
recorrido nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC ex vi artigo 17.º, n.º 1 do CIRE, o que
se argui.
- Da interpretação e aplicação erradas
da lei:
11. Contrariamente ao que foi julgado
pelo tribunal a quo, não se verifica
a identidade da ação quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir e,
consequentemente, não há exceção de caso julgado (cfr. art.º 581.º, n.º 1, 2, 3
e 4 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CPC).
12. As partes da ação no anterior
processo de insolvência e as partes da ação no presente processo de insolvência
não são as mesmas, desde logo porque há credores (e créditos) diferentes, tendo
sido relacionados, agora, credores (e créditos) adicionais que não tinham
intervindo no primeiro processo e vice-versa.
13. Há credores que o eram no âmbito do
anterior processo de insolvência e que, entretanto, deixaram de o ser, a saber:
AOF 4 SARL; Banco Efisa, S.A.; Banco Santander Consumer Portugal, S.A.; Banif -
Banco Internacional do Funchal, S.A.; Prime Credit 3, SARL; e Sofinloc -
Instituição Financeira e de Crédito, S.A..
14. Por outro lado, são novos credores:
a Oitante, S.A. e a Autoridade Tributária e Aduaneira - Serviço de Finanças de
Loulé 1 no que se refere a uma nova dívida relativa às custas provenientes do
anterior processo de insolvência, no valor de EUR 492,00, entretanto remetida
para execução fiscal.
15. Deixou, também, de constar na lista
de ações pendentes contra os recorrentes, a ação executiva n.º 2515/09.6TBFAR.
16. Além disso, enquanto o valor total
do passivo dos recorrentes relacionado no âmbito do anterior processo de
insolvência correspondia a EUR 618.003,07 (tendo sido reclamado o valor de EUR
470.642,56), já no âmbito do presente processo de insolvência, o passivo
relacionado não passa do valor de EUR 274.408,30.
17. Tanto a relação de credores, como o
valor dos créditos e, ainda, a lista de ações executivas pendentes contra os recorrentes
não coincidem integralmente num e noutro processo.
18. O tribunal a quo errou ao considerar que o passivo relacionado pelos recorrentes
no âmbito destes novos autos de insolvência seria o mesmo existente à data do
proferimento da anterior decisão de declaração de insolvência.
19. Tendo em conta que a situação
patrimonial de um indivíduo é forçosamente dinâmica (e não estática), as
circunstâncias conducentes à respetiva situação de insolvência num e noutro
momento são necessariamente diferentes (cfr. decisão proferida pelo Tribunal da
Relação de Lisboa de 22/02/2024, acima parcialmente transcrita).
20. No caso, a apresentação dos recorrentes
à presente nova insolvência foi determinada por factos concretos novos (causa
de pedir distinta da subjacente ao anterior processo de insolvência),
designadamente:
- Alteração substancial do agregado
familiar dos recorrentes, que foram, entretanto, pais, em 2015, de mais uma
criança, atualmente com 8 anos de idade;
- Alteração dos rendimentos: o recorrente
marido passou a auferir o valor mensal bruto de cerca de EUR 2.000,00
(pedreiro) e a recorrente mulher passou a auferir o valor mensal de cerca de
EUR 900,00 (pensão por invalidez);
- Aumento das despesas mensais do
agregado familiar, dada o surgimento de um novo elemento (um filho) e as
inerentes despesas (designadamente, com alimentação, higiene, vestuário,
calçado, educação, saúde e transportes);
- Aumento das despesas mensais do
agregado familiar relacionadas com o surgimento de doenças graves porquanto o recorrente
marido foi recentemente diagnosticado com um cancro, além de a recorrente
mulher ter sido declarada inválida por esclerose múltipla;
- Surgimento de responsabilidades e
dívidas novas constituídas depois da anterior insolvência;
- Remanescente das dívidas que
permaneceu por satisfazer em resultado da insuficiência do valor do património
liquidado no âmbito do anterior processo de insolvência e em decorrência da aí
recusa da concessão da exoneração do passivo restante;
- Alteração substancial da situação
patrimonial, uma vez que o património que os recorrentes detinham foi todo
apreendido e liquidado no processo de insolvência anterior, apresentando-se,
desta vez, à insolvência sem qualquer património, o que representa um
agravamento relativamente à situação anterior.
21. Resulta evidente que os recorrentes
não estão nas mesmas circunstâncias de vida que estavam há 12 anos atrás (2012)
quando se apresentaram, pela primeira vez, à insolvência, pois, agora, não têm
quaisquer bens e têm outras e maiores responsabilidades, desde logo, com o novo
filho menor e estudante, além de se defrontarem com um cancro do recorrente
marido, com a invalidez da recorrente mulher por esclerose múltipla e com
montantes de rendimentos e de dívidas diferentes.
22. O tribunal a quo errou ao exigir a eliminação do passivo anterior como
requisito de acesso a um novo processo de insolvência, pois tal exigência não
tem qualquer base legal.
23. Certo é que os recorrentes se
encontram em situação de insolvência (na medida em que se encontram
impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas), e não estão na mesma
situação de há 12 anos atrás quando se apresentaram, pela primeira vez, à
insolvência (cfr. art.º 3.º, n.º 1 do CIRE).
24. Os recorrentes estão novamente
insolventes porque não conseguem na data de hoje cumprir as suas obrigações
vencidas e não porque o não conseguiram fazer há 12 anos atrás!!
25. Em suma, ao julgar verificada a
exceção de caso julgado e ao indeferir liminarmente o pedido de declaração de
insolvência dos recorrentes, o tribunal a
quo violou as disposições conjugadas do artigo 3.º, n.º 1 e do artigo 27.º,
n.º 1, al. a), ambos do CIRE, bem como dos artigos 580.º, n.º 1 e 581.º, ambos
do CPC ex vi artigo 17.º, n.º 1 do CIRE, porquanto deveriam as normas jurídicas
decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas pelo tribunal
a quo no sentido de deferir o pedido
de declaração de insolvência dos recorrentes.
26. Razão pela qual deverá a decisão,
objeto do presente recurso, ser substituída por outra que declare a insolvência
dos recorrentes, conforme à correta interpretação das acima referidas normas.
*
As questões a decidir são as
seguintes:
- Nulidade da decisão recorrida;
- Excepção de caso julgado.
*
1 – Nulidade da decisão
recorrida:
Os recorrentes sustentam que
a decisão recorrida padece da nulidade prevista no artigo artigo 615.º, n.º 1,
alínea b), do CPC, porquanto não se encontra fundamentada, nem de facto, nem de
direito.
A al. b) do n.º 1 do artigo
615.º do CPC estabelece que a sentença é nula quando não especifique os
fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. É recorrente a
afirmação de que esta nulidade só se verifica na hipótese de absoluta ausência
de fundamentação. A esta hipótese, vem a melhor jurisprudência equiparando a de
a fundamentação, de facto ou de direito, ser de tal modo incompleta que torne a
decisão incompreensível, isto é, que não permita, aos seus destinatários, a
percepção das razões de facto e/ou de direito que determinaram o tribunal a
decidir em determinado sentido – cfr. os acórdãos do STJ de 02.03.2011 (Sérgio
Poças) e da RP de 06.09.2021 (Carlos Gil).
No caso dos autos, nem
sequer à luz desta concepção mais ampla se verifica a nulidade em questão, pois
a decisão recorrida encontra-se fundamentada, quer de facto, quer de direito.
Os factos em que o tribunal a quo se
baseou encontram-se referidos na decisão, o mesmo acontecendo com os
fundamentos jurídicos desta. Isto resulta, com toda a clareza, da simples leitura
da decisão recorrida.
Se os factos em que a decisão
recorrida se baseou não se encontram demonstrados nos autos ou são
insuficientes para fundamentar a decisão tomada, ou se foram juridicamente
valorados de forma incorrecta, são questões que não contendem com a validade
daquela decisão. Em qualquer dessas hipóteses, aquilo que se verificará é um
erro de julgamento, não a nulidade da decisão.
2 – Excepção de caso
julgado:
Os recorrentes sustentam
que, contrariamente ao que foi julgado pelo tribunal a quo, não se verifica a excepção de caso julgado porquanto
inexiste identidade de sujeitos e de causa de pedir entre o anterior e o
presente processo de insolvência.
Analisemos se se verificam estes
dois pressupostos da excepção de caso julgado, decorrentes dos artigos 580.º e
581.º do CPC.
2.1. O n.º 2 do artigo 581.º
do CPC dispõe que há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob
o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Segundo os recorrentes, esta
identidade não se verifica porquanto não existe coincidência entre os credores
que intervieram no processo anterior e aqueles que agora foram relacionados.
A seguir-se a tese dos
recorrentes, seria fácil contornar as limitações decorrentes da consagração das
excepções de litispendência e de caso julgado e, dessa forma, frustrar a finalidade
referida no n.º 2 do artigo 580.º do CPC, a saber, evitar que o tribunal seja
colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Bastaria, ao devedor, conseguir que, entre o encerramento do primeiro processo
de insolvência e a propositura do segundo, alguém lhe emprestasse dinheiro para
pagar a um credor, ainda que se tratasse de uma dívida de valor insignificante.
Desapareceria o primeiro credor e passaria a existir um novo credor. Todavia, a
situação do devedor seria substancialmente a mesma, não fazendo sentido
considerar-se que os sujeitos do segundo processo de insolvência seriam diferentes
dos do primeiro e, assim, permitir-se uma verdadeira repetição de causas.
Atentas as inadmissíveis
consequências da tese dos recorrentes, terá de ser outro o critério de aferição
da identidade de sujeitos, que atenda às especificidades do processo de
insolvência.
Para encontrarmos esse
critério, teremos de distinguir duas fases no processo de insolvência. A primeira
fase tem natureza declarativa, destinando-se a verificar se existe a situação
de insolvência invocada e, quando exista, a declará-la. A segunda fase consiste
numa execução universal do património do insolvente.
Na primeira fase, «o processo desenrola-se apenas entre o
devedor e o credor requerente ou apenas com a intervenção do devedor quando é
este que se apresenta à insolvência – cfr. artigos 27.º a 35.º – e, se terminar
com uma sentença que indefira o pedido de declaração de insolvência, não haverá
intervenção de outros credores, importando notar que, em conformidade com o
disposto no artigo 45.º, apenas o requerente pode reagir (mediante recurso)
contra essa sentença.»
Na segunda fase, posterior à
declaração de insolvência, então sim, poderão intervir no processo os credores
do insolvente, assumindo a qualidade de partes processuais.
Portanto, na fase inicial do
processo de insolvência, os credores não são partes, com a única excepção daquele
que, eventualmente, tenha requerido a declaração de insolvência do devedor.
Ora, para conseguirmos obter
um conceito operativo de identidade de sujeitos para o efeito de delimitar as
excepções de litispendência e caso julgado, é precisamente na fase inicial do
processo de insolvência que teremos de nos concentrar. Haverá identidade de
sujeitos sempre que o devedor e, se for o caso, o credor requerente, forem os
mesmos nos dois processos. Não faria sentido, por exemplo, considerar que não
existe identidade de sujeitos em dois processos de insolvência requeridos pelo
mesmo devedor porque, se fosse declarada a insolvência no segundo processo,
neste poderia passar a intervir um credor que o não tivesse feito no primeiro
processo. Com excepção daquele que eventualmente tenha requerido a declaração
de insolvência, não são os credores, cuja intervenção a lei admite apenas na
segunda fase do processo, que definem subjectivamente a acção. São, sim, o
devedor e o eventual credor requerente da declaração de insolvência.
Sendo assim, verifica-se o
pressuposto da identidade de sujeitos. Quer este processo de insolvência, quer
o anterior, foram requeridos pelos ora recorrentes, visando a declaração da sua
própria insolvência.
2.2. O n.º 4 do artigo 581.º
do CPC dispõe que há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida
nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
Os recorrentes sustentam que
a causa de pedir desta acção não é idêntica à da anterior porquanto:
- O valor total do passivo dos
recorrentes relacionado no âmbito do anterior processo de insolvência era de €
618.003,07 (tendo sido reclamado o valor de € 470.642,56); nesta insolvência, o
passivo relacionado tem o valor de € 274.408,30;
- As listas de acções executivas
pendentes contra os recorrentes não coincidem integralmente num e noutro
processos;
- Em 2015, nasceu um filho aos
recorrentes, o que determinou um aumento das despesas do agregado familiar;
- O recorrente marido passou a auferir
um salário mensal bruto de cerca de € 2.000 pelo exercício da profissão de
pedreiro e a recorrente mulher passou a auferir um valor mensal de cerca de €
900 a título de pensão por invalidez;
- Em 2022, foi diagnosticado um cancro
ao recorrente marido, o que determinou novo aumento das despesas do agregado
familiar;
- Surgiram «responsabilidades e dívidas novas constituídas depois da anterior
insolvência»;
- O património que os recorrentes
detinham foi todo apreendido e liquidado no processo de insolvência anterior,
apresentando-se, desta vez, à insolvência sem qualquer património, o que
representa um agravamento relativamente à situação anterior;
- Subsiste o remanescente das dívidas
que ficou por satisfazer em resultado da insuficiência do valor do património
liquidado no âmbito do anterior processo de insolvência e em decorrência da aí
recusa da concessão da exoneração do passivo restante;
- Pelo que os recorrentes não estão nas
mesmas circunstâncias de vida em que se encontravam em 2012, quando se
apresentaram à insolvência pela primeira vez.
Mais uma vez, a tese dos
recorrentes conduziria a resultados absurdos. Se a identidade de causa de pedir
entre dois processos de insolvência requeresse a coincidência de todos os
elementos que acabámos de enumerar, seria quase impossível a verificação das
excepções de litispendência e de caso julgado em processos de insolvência, ainda
que fosse proposto um novo processo todos os meses visando a declaração de
insolvência do mesmo devedor. A razão é a referida pelos próprios recorrentes
na conclusão 19: a situação patrimonial das pessoas é essencialmente dinâmica,
alterando-se continuamente.
É evidente que o critério de
aferição da identidade ou diversidade das causas de pedir de dois processos de
insolvência relativos ao mesmo devedor terá de ser outro. Num e noutro
processos, a composição e o valor do activo e do passivo do devedor podem não
coincidir e a composição, os encargos e as fontes de rendimento do agregado
familiar do devedor podem ter-se alterado, sem que deixemos de nos encontrar
perante a mesma causa de pedir.
O n.º 1 do artigo 3.º do
CIRE estabelece que é considerado em situação de insolvência o devedor que se
encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. É esta a causa
de pedir no processo de insolvência: uma determinada situação de insolvência em
que o devedor se encontra. Essa situação consubstancia-se num complexo de
factos: vinculação do devedor a um determinado conjunto de dívidas vencidas
que, atenta a composição e o valor do seu activo (quando exista), se encontra
impossibilitado de cumprir. Quando a acção for proposta por um credor com
fundamento na alegação de algum dos factos indiciários de uma situação de
insolvência do devedor enumerados no n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, «a causa de pedir não deixará de
corresponder à concreta impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas
que é evidenciada/presumida pelo facto em questão (…). A causa de pedir do
pedido de declaração de insolvência corresponderá, portanto, à concreta impossibilidade
de satisfação das obrigações vencidas que se configure em determinado momento, seja
ela invocada mediante alegação expressa dos factos que a evidenciam ou mediante
alegação de um facto que, nos termos do art.º 20.º, a faz presumir.»
Sendo esta a causa de pedir
no processo de insolvência, verificar-se-á uma situação de identidade de causas
de pedir se, em processos distintos, a situação de impossibilidade de
cumprimento das dívidas vencidas pelo devedor for a mesma, ainda que o valor e
a composição do passivo e do activo (quando haja) apresente, como é quase
inevitável, alguma diferença.
Já estaremos perante causas
de pedir distintas se a situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas
vencidas pelo devedor for diversa. Isso acontecerá se a primeira situação de
impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas tiver sido sanada,
nomeadamente com recurso ao mecanismo da exoneração do passivo restante, e,
posteriormente, o devedor, mercê da assunção de novo passivo que não consegue
cumprir na época do seu vencimento, cair numa nova situação de impossibilidade
de cumprimento das dívidas vencidas.
Foi este o entendimento do
tribunal a quo, ao qual os
recorrentes contrapõem que este «errou ao
exigir a eliminação do passivo anterior como requisito de acesso a um novo
processo de insolvência, pois tal exigência não tem qualquer base legal»
(conclusão 22). Porém, sem razão. Não se trata propriamente de exigir que o
passivo anterior seja eliminado, mas sim que a situação de impossibilidade de o
devedor o cumprir, na parte vencida, em determinado momento, se configure como
distinta da anterior e não como um mero prolongamento desta.
Os recorrentes argumentam
que «se encontram em situação de
insolvência (na medida em que se encontram impossibilitados de cumprir as suas
obrigações vencidas), e não estão na mesma situação de há 12 anos atrás quando
se apresentaram, pela primeira vez, à insolvência» (conclusão 23). Mais uma
vez, não têm razão. A situação de impossibilidade de cumprimento das suas
dívidas vencidas por parte dos recorrentes é a mesma que se verificava aquando
da sua primeira apresentação à insolvência, em 2012, ainda que a sua situação
patrimonial não tenha exactamente os mesmos contornos, o que, por aquilo que
acima afirmámos acerca do carácter essencialmente dinâmico daquela, seria,
senão impossível, pelo menos extremamente improvável. Ao longo do primeiro
processo de insolvência, que apenas foi encerrado em 15.03.2024, nunca os
recorrentes deixaram de estar impossibilitados de cumprir as suas obrigações
vencidas e era nessa mesma situação de insolvência que eles se encontravam
quando, em 18.04.2024 (ou seja, apenas um mês e três dias depois), se
apresentaram novamente à insolvência.
Concluímos, assim, que
também se verifica uma identidade das causas de pedir do anterior processo de
insolvência e do actual.
2.3. Sendo os sujeitos, o
pedido e a causa de pedir deste processo de insolvência idênticos aos do
anterior, concluímos, como o tribunal a
quo, que se verifica a excepção de caso julgado. Consequentemente, o
recurso terá de improceder.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do
recorrente.
Notifique.
*
Évora, 25.10.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª
adjunta)
(2.ª
adjunta)