sábado, 16 de novembro de 2024

Critério temporal para o cálculo da parte do rendimento do insolvente excluída do rendimento disponível

Declaração de voto, como primeiro relator vencido, exarada no acórdão da Relação de Évora de 25.10.2024 (processo n.º 12/14.7T8GLG-F.E1):

Julgaria o recurso procedente, pelas razões constantes da fundamentação do projecto de acórdão por mim elaborado, que em seguida transcrevo. Igualmente transcrevo o respectivo sumário.

No despacho recorrido, o tribunal a quo começa por salientar que, «ao longo de todo o período de cessão (sendo que estamos já no período de prorrogação), o cálculo foi realizado mensalmente», pelo que estranha «que só agora a insolvente pugne pelo cálculo anual», «estando, pois, em causa um novo entendimento da insolvente quanto à forma de cálculo que, não obstante nos 4 anos anteriores ter sido realizado de forma mensal, entende agora a insolvente (findo o 1º ano de prorrogação da fidúcia) dever ser feito de forma anual.»

A recorrente contrapõe que o despacho recorrido menospreza a circunstância de o processo ter estado «sem fiduciário durante largo período (…), que os relatórios da fidúcia foram entregues “em bloco” nos autos em 12/08/2021 e que a insolvente, logo após, requereu a prorrogação desse período, tendo também impugnado (em Setembro de 2022) o modo de cálculo efectuado no relatório anual respectivo».

A discussão desta questão é inútil para a decisão a proferir. Até apresentar o requerimento sobre o qual recaiu o despacho recorrido, a recorrente nunca suscitou a questão do critério temporal de cálculo da parte dos seus rendimentos que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). Por seu turno, o tribunal a quo nunca se pronunciou, oficiosamente ou a requerimento de outro sujeito processual, sobre essa questão. Logo, inexiste decisão anterior à recorrida que se imponha com força de caso julgado formal. Daí que nada impedisse a recorrente de, a qualquer momento, suscitar a questão, como efectivamente suscitou, independentemente da forma como, bem ou mal, o seu rendimento tivesse sido anteriormente calculado pelo fiduciário. O requerimento sobre o qual o despacho recorrido se pronunciou é admissível e oportuno.

Resolvida esta questão prévia, avancemos.

A questão de saber qual deverá ser o critério temporal de cálculo da parte dos rendimentos do devedor que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), vem dividindo a jurisprudência. Sobre ela, o relator deste acórdão tomou anteriormente posição no sentido que a recorrente sustenta, em acórdão desta Relação, também por si relatado, proferido em 07.04.2022 (processo n.º 78/13.7TBMAC.E1). Daí que passemos a fundamentar o presente acórdão transcrevendo a parte pertinente da fundamentação daquele:

«O CIRE não impõe que o critério temporal de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), seja mensal.

Desde logo, inexiste norma expressa nesse sentido.

Pretender-se retirar implicitamente tal norma da referência, na parte final do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), ao triplo do salário mínimo nacional como constituindo, em regra, o limite máximo daquilo que é necessário para o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar, é errado. Tal referência visa exclusivamente a fixação de um limite quantitativo máximo (que admite excepções), não a consagração de um critério temporal de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i).

Tampouco o artigo 239.º, n.º 4, al. c), impõe que tal critério seja mensal. Esta norma estabelece que, durante o período da cessão, o insolvente fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão. Ora, a questão que nos ocupa coloca-se em momento logicamente anterior àquele a que a mesma norma se reporta, pois a parte dos rendimentos do insolvente que é objecto de cessão só fica determinada após a aplicação do critério que buscamos. Ou seja, primeiro, por aplicação deste critério, calcula-se a parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). Só após esta operação será possível saber se sobra alguma parte dos rendimentos do insolvente que possa ser integrada no rendimento disponível e entregue ao fiduciário, nos termos do n.º 2 daquele artigo, e, na hipótese afirmativa, o respectivo valor. Então sim, terá chegado o momento da aplicação do n.º 4, al. c), devendo o insolvente entregar imediatamente ao fiduciário a parte dos seus rendimentos que são objecto da cessão. Portanto, o regime estabelecido nesta última norma é compatível com qualquer dos critérios em discussão: mensal, anual ou outro.

À interpretação que acabamos de fazer do artigo 239.º, n.º 4, al. c), poderá objectar-se que a mesma ignora o segmento “quando por si recebida”. Numa primeira leitura, a referida norma parece impor a obrigação de, sempre que o insolvente receba algum rendimento, deverá, acto contínuo, proceder à sua entrega ao fiduciário.

Não é assim, fundamentalmente por duas razões.

Em primeiro lugar porque é impossível. É impossível, desde logo, na hipótese de o insolvente exercer uma actividade profissional que lhe proporcione rendimentos diários, ou quase diários (o que é vulgar quando se exerce uma actividade profissional por conta própria). Seria impraticável obrigá-lo a entregar imediatamente uma parte dessas quantias ao fiduciário, fosse ela qual fosse. E é, por outro lado, impossível, em qualquer hipótese, porque, antes da entrega, há que fazer contas, em função de um critério. Como a norma refere, a obrigação de entrega reporta-se apenas a uma parte dos rendimentos do insolvente, quando exista. Feito o cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que constitui objecto da cessão, então sim, a sua entrega ao fiduciário deverá ser imediata.

Em segundo lugar porque, se o segmento “quando por si recebida” tivesse uma conotação temporal, seria redundante relativamente à primeira parte da norma. A obrigação de entrega imediata ao fiduciário, se entendida em sentido naturalístico, só poderia reportar-se àquilo que o insolvente tivesse acabado de receber, como é óbvio.

A única interpretação possível do segmento “quando por si recebida” é destituída de qualquer conotação temporal. Estabelece-se, antes, uma condição. Há obrigação de entrega imediata, nos termos acima expostos, se o insolvente tiver recebido rendimentos de montante suficiente para que uma parte deles seja objecto de cessão.

Assim interpretado, o artigo 239.º, n.º 4, al. c), é, como anteriormente concluímos, compatível com qualquer dos critérios temporais de aferição do montante dos rendimentos do insolvente para o efeito de determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do n.º 3, al. b), do mesmo artigo.

Podemos, portanto, assentar numa primeira conclusão: o CIRE não impõe que o critério em causa seja mensal. Não o fazendo, abre a porta a que o juiz estabeleça, no despacho inicial, o critério que melhor se ajuste às particularidades de cada caso concreto, tendo especialmente em vista o objectivo estabelecido pelo artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i) (garantia, através da exclusão do rendimento disponível, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar), emanação da consagração, logo no artigo 1.º da Constituição, do princípio fundamental segundo o qual Portugal é uma república soberana baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Por razões de segurança e certeza jurídicas, a fixação do referido critério no despacho inicial, aliás alterável em qualquer momento do período da cessão em função de alterações relevantes de circunstâncias que no decurso dele se verifiquem, seria, no nosso entendimento, conveniente.

Quando tal fixação seja feita (assim aconteceu numa situação apreciada num colectivo em que o relator foi o mesmo deste acórdão e o então 2.º adjunto é agora o 1.º adjunto, através de acórdão proferido em 25.02.2021, no processo n.º 90/16.4T8ORQ.E1, publicado em http://www.dgsi.pt/), há que respeitá-la, como é evidente.

Quando tal fixação não é feita, como aconteceu no caso dos autos, a dúvida persiste. O CIRE não estabelece qualquer critério e o juiz também o não fez. Como resolver o problema?

Terão de intervir, neste ponto, os princípios constitucionais do respeito pela dignidade da pessoa humana e da igualdade.

Vimos anteriormente que o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição, impõe a salvaguarda constante do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i): Fica excluído do rendimento disponível o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. Na concretização deste regime legal, iluminado por aquele princípio constitucional, o juiz não pode fixar uma quantia exígua, que não garanta aquele sustento minimamente digno. A jurisprudência tem entendido, pacificamente, que o montante do salário mínimo nacional constitui um mínimo inultrapassável nesta matéria.

Do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, decorre, nomeadamente, aquilo que, sem exagero, pode considerar-se a essência do conceito de justiça: deve tratar-se igualmente aquilo que é igual e diferenciadamente aquilo que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Subjaz a este princípio uma ideia de proibição do arbítrio, concretizável, nomeadamente, na inadmissibilidade de diferenciação de tratamento sem fundamento material bastante, isto é, sem justificação razoável à luz dos valores que enformam a nossa ordem jurídica, encimados por aqueles que emanam da Constituição.

Tendo em conta os princípios enunciados, analisemos a concreta questão que se nos coloca começando por imaginar duas situações em que, para simplificar, os insolventes são os únicos membros dos seus agregados familiares e o montante excluído do rendimento disponível ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), é de € 750 mensais. Para evitar as especificidades decorrentes da legislação laboral, suponhamos que ambos exercem actividades económicas por conta própria. Num determinado ano civil, um dos insolventes auferiu um rendimento mensal de € 750 durante os 12 meses do ano e o outro auferiu € 300 em Janeiro, € 900 em Fevereiro, € 700 em Março, € 2.000 em Abril, € 1.500 em Maio, € 600 em Junho, € 0 em Julho e Agosto, € 500 em Setembro, € 500 em Outubro, € 1.000 em Novembro e 1.000 em Dezembro. No ano em causa, qualquer destes dois insolventes auferiu, no total, € 9.000. Todavia, a seguir-se o critério mensal de aferição do montante dos rendimentos para o efeito de determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), o primeiro não terá de entregar qualquer quantia ao fiduciário, a título de cessão de rendimento disponível, ao passo que o segundo terá de entregar € 2.650. O exercício a que vimos procedendo poderá ficar ainda mais expressivo imaginando um insolvente que tenha auferido € 4.500 em Janeiro e € 4.500 em Setembro (ainda que como contrapartida por trabalho desenvolvido ao longo dos meses anteriores, em que nada recebeu), o qual, de acordo com o critério mensal, teria de entregar ao fiduciário € 7.500. A desigualdade de tratamento destes três insolventes é patente e, dado terem auferido, no período de 1 ano, rendimentos idênticos, tem de considerar-se inadmissível. Não há, com efeito, fundamento material para a exposta desigualdade de tratamento.

Analisando as situações expostas sob o ponto de vista do princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana, a conclusão a que chegamos é idêntica. Enquanto o primeiro insolvente pôde afectar ao seu sustento a quantia mensal de € 750 e anual de € 9.000, superior ao salário mínimo nacional, o segundo e o terceiro apenas puderam afectar ao mesmo fim, respectivamente, as quantias mensais de € 519,17 e € 125 e anuais de € 6.350 e € 1.500. Ou seja, os segundo e terceiro insolventes ficaram abaixo daquilo que é razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno e isso aconteceu, sublinhamos, por efeito do funcionamento do critério mensal de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). O segundo e, de forma ainda mais evidente, o terceiro insolvente, ficaram, em consequência da rigidez do critério mensal, impedidos de fazer aquilo que qualquer pessoa diligente faz para assegurar o seu sustento minimamente digno nas circunstâncias descritas: poupar quando ganha mais com vista a poder gastar quando ganha menos, ou nada ganha. 

Isto demonstra a inadequação do critério mensal. A sua rigidez torna-o cego em relação a situações em que, como as descritas, os rendimentos do insolvente são variáveis, impedindo este último de fazer uma coisa tão simples como poupar em meses melhores para poder gastar em meses piores e assim pondo em causa o sustento minimamente digno daquele e do seu agregado familiar.

Não se pense que o critério mensal apenas produz resultados inadmissíveis quando os rendimentos do insolvente provenham de trabalho por conta própria. Também o rendimento mensal de um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode variar. Mesmo pondo de lado a questão resultante da percepção dos subsídios de Natal e de férias (cuja análise, tendo em conta a abundante jurisprudência existente sobre a matéria, nos levaria longe demais, tendo em conta o objecto deste recurso), um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode ver o seu salário variar de mês para mês em função de situações como, por exemplo, períodos de desemprego ou de baixa por doença, a prestação de trabalho suplementar ou salários em atraso. Imaginemos, por exemplo, um insolvente a quem não são pagos os salários durante 3 meses seguidos, sendo esse pagamento efectuado no mês seguinte, juntamente com o salário que a esse mês respeita. Em consequência de um facto que, em si mesmo, é altamente penalizador para um trabalhador como é ter salários em atraso, a situação do insolvente poderia ser agravada pela circunstância, a que ele é alheio e que em nada o beneficiou, de receber 4 salários num só mês e ver uma parte desse rendimento integrada no rendimento disponível.

Analisando o problema pelo lado dos credores da insolvência, resulta do artigo 241.º que estes em nada são prejudicados se se adoptar o critério anual ou, eventualmente, outro que não exceda o período de 1 ano. O n.º 1 daquele artigo estabelece que o fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los e afecta os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão, nomeadamente, nos termos da al. d), à distribuição pelos credores da insolvência. Logo, a circunstância de o critério ser mensal, anual ou outro inferior a 1 ano é indiferente do ponto de vista do interesse destes últimos: em qualquer hipótese, só anualmente receberão as quantias a que tiverem direito.

Concluindo, na ausência de fixação de critério diverso pelo juiz, no despacho inicial ou, na hipótese de alteração relevante das circunstâncias, em despacho posterior, o critério anual deverá ser adoptado para o cálculo do montante dos rendimentos do insolvente com vista a determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). Em casos como o dos autos, apenas esse critério permite soluções conformes com os princípios constitucionais acima referidos.

Na jurisprudência, já encontramos acórdãos que admitem a adopção do critério anual: Relação de Évora de 17.01.2019 (Maria João Sousa e Faro), Relação de Lisboa de 22.09.2020 (Amélia Sofia Rebelo) e Relação de Guimarães de 22.04.2021 (António Sobrinho).»

Concluímos, assim, que a recorrente tem razão. Para o efeito previsto no artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), o seu rendimento deverá ser calculado de acordo com um critério anual e não mensal. Independentemente do que tiver acontecido relativamente ao período de cessão anterior, que não foi objecto do requerimento indeferido pelo despacho recorrido nem, logicamente, do presente recurso, assim deverá ser relativamente ao período de prorrogação do prazo da cessão. Deverá, pois, o fiduciário reformular o cálculo, a que procedeu, relativo ao primeiro dos três anos em que o período de cessão foi prorrogado, em conformidade com o referido critério anual.

O recurso deverá, pois, ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e deferindo-se o requerimento apresentado pela recorrida sobre o qual aquele foi proferido.

*

Sumário:

1 – O CIRE não impõe que o critério temporal para o cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, seja mensal.

2 – Esse cálculo deverá ser feito em conformidade com o critério temporal que tenha sido fixado pelo juiz.

3 – Na falta dessa fixação, deverá o mesmo cálculo ser feito segundo um critério anual, tendo como referência cada um dos anos do período da cessão.


Acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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