Declaração de voto, como primeiro relator vencido, exarada no acórdão da Relação de Évora de 25.10.2024 (processo n.º 12/14.7T8GLG-F.E1):
Julgaria o recurso
procedente, pelas razões constantes da fundamentação do projecto de acórdão por
mim elaborado, que em seguida transcrevo. Igualmente transcrevo o respectivo
sumário.
No despacho recorrido, o tribunal a quo começa por salientar que, «ao longo de todo o período de cessão (sendo
que estamos já no período de prorrogação), o cálculo foi realizado mensalmente»,
pelo que estranha «que só agora a
insolvente pugne pelo cálculo anual», «estando,
pois, em causa um novo entendimento da insolvente quanto à forma de cálculo
que, não obstante nos 4 anos anteriores ter sido realizado de forma mensal,
entende agora a insolvente (findo o 1º ano de prorrogação da fidúcia) dever ser
feito de forma anual.»
A recorrente contrapõe que o despacho
recorrido menospreza a circunstância de o processo ter estado «sem fiduciário durante largo período (…),
que os relatórios da fidúcia foram entregues “em bloco” nos autos em 12/08/2021
e que a insolvente, logo após, requereu a prorrogação desse período, tendo
também impugnado (em Setembro de 2022) o modo de cálculo efectuado no relatório
anual respectivo».
A discussão desta questão é inútil para
a decisão a proferir. Até apresentar o requerimento sobre o qual recaiu o
despacho recorrido, a recorrente nunca suscitou a questão do critério temporal
de cálculo da parte dos seus rendimentos que fica excluída do rendimento
disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). Por seu turno,
o tribunal a quo nunca se pronunciou,
oficiosamente ou a requerimento de outro sujeito processual, sobre essa
questão. Logo, inexiste decisão anterior à recorrida que se imponha com força
de caso julgado formal. Daí que nada impedisse a recorrente de, a qualquer
momento, suscitar a questão, como efectivamente suscitou, independentemente da
forma como, bem ou mal, o seu rendimento tivesse sido anteriormente calculado
pelo fiduciário. O requerimento sobre o qual o despacho recorrido se pronunciou
é admissível e oportuno.
Resolvida esta questão prévia,
avancemos.
A questão de saber qual deverá ser o critério temporal
de cálculo da parte dos rendimentos do devedor que fica excluída do rendimento
disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), vem dividindo a
jurisprudência. Sobre ela, o relator deste acórdão tomou anteriormente posição
no sentido que a recorrente sustenta, em acórdão desta Relação, também por si
relatado, proferido em 07.04.2022 (processo n.º 78/13.7TBMAC.E1). Daí que
passemos a fundamentar o presente acórdão transcrevendo a parte pertinente da
fundamentação daquele:
«O CIRE
não impõe que o critério temporal de cálculo da parte dos
rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos
do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), seja mensal.
Desde
logo, inexiste norma expressa nesse sentido.
Pretender-se
retirar implicitamente tal norma da referência, na parte final do artigo 239.º,
n.º 3, al. b), ponto i), ao triplo do salário mínimo nacional como constituindo,
em regra, o limite máximo daquilo que é necessário para o sustento minimamente
digno do insolvente e do seu agregado familiar, é errado. Tal referência visa
exclusivamente a fixação de um limite quantitativo máximo (que admite
excepções), não a consagração de um critério temporal
de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do
rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i).
Tampouco
o artigo 239.º, n.º 4, al. c), impõe que tal critério seja mensal. Esta norma
estabelece que, durante o período da cessão, o insolvente fica obrigado a
entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus
rendimentos objecto de cessão. Ora, a questão que nos ocupa coloca-se em
momento logicamente anterior àquele a que a mesma norma se reporta, pois a
parte dos rendimentos do insolvente que é objecto de cessão só fica determinada
após a aplicação do critério que buscamos. Ou seja, primeiro, por aplicação
deste critério, calcula-se a parte dos rendimentos do insolvente que fica
excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b),
ponto i). Só após esta operação será possível saber se sobra alguma parte dos
rendimentos do insolvente que possa ser integrada no rendimento disponível e
entregue ao fiduciário, nos termos do n.º 2 daquele artigo, e, na hipótese
afirmativa, o respectivo valor. Então sim, terá chegado o momento da aplicação
do n.º 4, al. c), devendo o insolvente entregar imediatamente ao fiduciário a
parte dos seus rendimentos que são objecto da cessão. Portanto, o regime
estabelecido nesta última norma é compatível com qualquer dos critérios em
discussão: mensal, anual ou outro.
À
interpretação que acabamos de fazer do artigo 239.º, n.º 4, al. c), poderá
objectar-se que a mesma ignora o segmento “quando por si recebida”. Numa
primeira leitura, a referida norma parece impor a obrigação de, sempre que o
insolvente receba algum rendimento, deverá, acto contínuo, proceder à sua
entrega ao fiduciário.
Não
é assim, fundamentalmente por duas razões.
Em
primeiro lugar porque é impossível. É impossível, desde logo, na hipótese de o
insolvente exercer uma actividade profissional que lhe proporcione rendimentos
diários, ou quase diários (o que é vulgar quando se exerce uma actividade
profissional por conta própria). Seria impraticável obrigá-lo a entregar
imediatamente uma parte dessas quantias ao fiduciário, fosse ela qual fosse. E
é, por outro lado, impossível, em qualquer hipótese, porque, antes da entrega,
há que fazer contas, em função de um critério. Como a norma refere, a obrigação
de entrega reporta-se apenas a uma parte dos rendimentos do insolvente, quando
exista. Feito o cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que constitui
objecto da cessão, então sim, a sua entrega ao fiduciário deverá ser imediata.
Em
segundo lugar porque, se o segmento “quando por si recebida” tivesse uma
conotação temporal, seria redundante relativamente à primeira parte da norma. A
obrigação de entrega imediata ao fiduciário, se entendida em sentido
naturalístico, só poderia reportar-se àquilo que o insolvente tivesse acabado
de receber, como é óbvio.
A
única interpretação possível do segmento “quando por si recebida” é destituída
de qualquer conotação temporal. Estabelece-se, antes, uma condição. Há
obrigação de entrega imediata, nos termos acima expostos, se o insolvente tiver
recebido rendimentos de montante suficiente para que uma parte deles seja
objecto de cessão.
Assim
interpretado, o artigo 239.º, n.º 4, al. c), é, como anteriormente concluímos,
compatível com qualquer dos critérios temporais de aferição do montante dos
rendimentos do insolvente para o efeito de determinar a parte destes que fica
excluída do rendimento disponível nos termos do n.º 3, al. b), do mesmo artigo.
Podemos,
portanto, assentar numa primeira conclusão: o CIRE não impõe que o critério em
causa seja mensal. Não o fazendo, abre a porta a que o juiz estabeleça, no
despacho inicial, o critério que melhor se ajuste às particularidades de cada
caso concreto, tendo especialmente em vista o objectivo estabelecido pelo
artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i) (garantia, através da exclusão do
rendimento disponível, do que seja razoavelmente necessário para o sustento
minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar), emanação da
consagração, logo no artigo 1.º da Constituição, do princípio fundamental
segundo o qual Portugal é uma república soberana baseada na dignidade da pessoa
humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre,
justa e solidária.
Por
razões de segurança e certeza jurídicas, a fixação do referido critério no
despacho inicial, aliás alterável em qualquer momento do período da cessão em
função de alterações relevantes de circunstâncias que no decurso dele se
verifiquem, seria, no nosso entendimento, conveniente.
Quando
tal fixação seja feita (assim aconteceu numa situação apreciada num colectivo
em que o relator foi o mesmo deste acórdão e o então 2.º adjunto é agora o 1.º
adjunto, através de acórdão proferido em 25.02.2021, no processo n.º
90/16.4T8ORQ.E1, publicado em http://www.dgsi.pt/), há que respeitá-la,
como é evidente.
Quando
tal fixação não é feita, como aconteceu no caso dos autos, a dúvida persiste. O
CIRE não estabelece qualquer critério e o juiz também o não fez. Como resolver
o problema?
Terão
de intervir, neste ponto, os princípios constitucionais do respeito pela
dignidade da pessoa humana e da igualdade.
Vimos
anteriormente que o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana,
consagrado no artigo 1.º da Constituição, impõe a salvaguarda constante do
artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i): Fica excluído do rendimento disponível o
que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor
e do seu agregado familiar. Na concretização deste regime legal, iluminado por
aquele princípio constitucional, o juiz não pode fixar uma quantia exígua, que
não garanta aquele sustento minimamente digno. A jurisprudência tem entendido,
pacificamente, que o montante do salário mínimo nacional constitui um mínimo
inultrapassável nesta matéria.
Do
princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, decorre,
nomeadamente, aquilo que, sem exagero, pode considerar-se a essência do
conceito de justiça: deve tratar-se igualmente aquilo que é igual e
diferenciadamente aquilo que é diferente, de acordo com a medida da diferença.
Subjaz a este princípio uma ideia de proibição do arbítrio, concretizável,
nomeadamente, na inadmissibilidade de diferenciação de tratamento sem
fundamento material bastante, isto é, sem justificação razoável à luz dos
valores que enformam a nossa ordem jurídica, encimados por aqueles que emanam
da Constituição.
Tendo
em conta os princípios enunciados, analisemos a concreta questão que se nos
coloca começando por imaginar duas situações em que, para simplificar, os
insolventes são os únicos membros dos seus agregados familiares e o montante
excluído do rendimento disponível ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3,
al. b), ponto i), é de € 750 mensais. Para evitar as especificidades
decorrentes da legislação laboral, suponhamos que ambos exercem actividades
económicas por conta própria. Num determinado ano civil, um dos insolventes
auferiu um rendimento mensal de € 750 durante os 12 meses do ano e o outro
auferiu € 300 em Janeiro, € 900 em Fevereiro, € 700 em Março, € 2.000 em Abril,
€ 1.500 em Maio, € 600 em Junho, € 0 em Julho e Agosto, € 500 em Setembro, €
500 em Outubro, € 1.000 em Novembro e 1.000 em Dezembro. No ano em causa,
qualquer destes dois insolventes auferiu, no total, € 9.000. Todavia, a
seguir-se o critério mensal de aferição do montante dos rendimentos para o
efeito de determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível
nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), o primeiro não terá de entregar
qualquer quantia ao fiduciário, a título de cessão de rendimento disponível, ao
passo que o segundo terá de entregar € 2.650. O exercício a que vimos
procedendo poderá ficar ainda mais expressivo imaginando um insolvente que
tenha auferido € 4.500 em Janeiro e € 4.500 em Setembro (ainda que como
contrapartida por trabalho desenvolvido ao longo dos meses anteriores, em que
nada recebeu), o qual, de acordo com o critério mensal, teria de entregar ao
fiduciário € 7.500. A desigualdade de tratamento destes três insolventes é
patente e, dado terem auferido, no período de 1 ano, rendimentos idênticos, tem
de considerar-se inadmissível. Não há, com efeito, fundamento material para a
exposta desigualdade de tratamento.
Analisando
as situações expostas sob o ponto de vista do princípio do respeito pela
dignidade da pessoa humana, a conclusão a que chegamos é idêntica. Enquanto o
primeiro insolvente pôde afectar ao seu sustento a quantia mensal de € 750 e
anual de € 9.000, superior ao salário mínimo nacional, o segundo e o terceiro
apenas puderam afectar ao mesmo fim, respectivamente, as quantias mensais de €
519,17 e € 125 e anuais de € 6.350 e € 1.500. Ou seja, os segundo e terceiro
insolventes ficaram abaixo daquilo que é razoavelmente necessário para o seu
sustento minimamente digno e isso aconteceu, sublinhamos, por efeito do
funcionamento do critério mensal de cálculo da parte
dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos
termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). O segundo e, de forma ainda
mais evidente, o terceiro insolvente, ficaram, em consequência da rigidez do
critério mensal, impedidos de fazer aquilo que qualquer pessoa diligente faz
para assegurar o seu sustento minimamente digno nas circunstâncias descritas:
poupar quando ganha mais com vista a poder gastar quando ganha menos, ou nada
ganha.
Isto
demonstra a inadequação do critério mensal. A sua rigidez torna-o cego em
relação a situações em que, como as descritas, os rendimentos do insolvente são
variáveis, impedindo este último de fazer uma coisa tão simples como poupar em
meses melhores para poder gastar em meses piores e assim pondo em causa o
sustento minimamente digno daquele e do seu agregado familiar.
Não
se pense que o critério mensal apenas produz resultados inadmissíveis quando os
rendimentos do insolvente provenham de trabalho por conta própria. Também o
rendimento mensal de um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode
variar. Mesmo pondo de lado a questão resultante da percepção dos subsídios de
Natal e de férias (cuja análise, tendo em conta a abundante jurisprudência
existente sobre a matéria, nos levaria longe demais, tendo em conta o objecto
deste recurso), um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode ver o seu
salário variar de mês para mês em função de situações como, por exemplo,
períodos de desemprego ou de baixa por doença, a prestação de trabalho
suplementar ou salários em atraso. Imaginemos, por exemplo, um insolvente a
quem não são pagos os salários durante 3 meses seguidos, sendo esse pagamento
efectuado no mês seguinte, juntamente com o salário que a esse mês respeita. Em
consequência de um facto que, em si mesmo, é altamente penalizador para um
trabalhador como é ter salários em atraso, a situação do insolvente poderia ser
agravada pela circunstância, a que ele é alheio e que em nada o beneficiou, de
receber 4 salários num só mês e ver uma parte desse rendimento integrada no rendimento
disponível.
Analisando
o problema pelo lado dos credores da insolvência, resulta do artigo 241.º que
estes em nada são prejudicados se se adoptar o critério anual ou,
eventualmente, outro que não exceda o período de 1 ano. O n.º 1 daquele artigo
estabelece que o fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor
àqueles de quem ele tenha direito a havê-los e afecta os montantes recebidos no
final de cada ano em que dure a cessão, nomeadamente, nos termos da al. d), à
distribuição pelos credores da insolvência. Logo, a circunstância de o critério
ser mensal, anual ou outro inferior a 1 ano é indiferente do ponto de vista do
interesse destes últimos: em qualquer hipótese, só anualmente receberão as
quantias a que tiverem direito.
Concluindo,
na ausência de fixação de critério diverso pelo juiz, no despacho inicial ou,
na hipótese de alteração relevante das circunstâncias, em despacho posterior, o
critério anual deverá ser adoptado para o cálculo do montante dos rendimentos
do insolvente com vista a determinar a parte destes que fica excluída do
rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). Em
casos como o dos autos, apenas esse critério permite soluções conformes com os
princípios constitucionais acima referidos.
Na jurisprudência, já
encontramos acórdãos que admitem a adopção do
critério anual: Relação de Évora de 17.01.2019 (Maria João Sousa e Faro), Relação de Lisboa de
22.09.2020 (Amélia Sofia Rebelo) e Relação
de Guimarães de 22.04.2021 (António Sobrinho).»
Concluímos, assim, que a recorrente tem
razão. Para o efeito previsto no artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), o seu
rendimento deverá ser calculado de acordo com um critério anual e não mensal.
Independentemente do que tiver acontecido relativamente ao período de cessão
anterior, que não foi objecto do requerimento indeferido pelo despacho
recorrido nem, logicamente, do presente recurso, assim deverá ser relativamente
ao período de prorrogação do prazo da cessão. Deverá, pois, o fiduciário
reformular o cálculo, a que procedeu, relativo ao primeiro dos três anos em que
o período de cessão foi prorrogado, em conformidade com o referido critério
anual.
O recurso deverá, pois, ser julgado
procedente, revogando-se o despacho recorrido e deferindo-se o requerimento
apresentado pela recorrida sobre o qual aquele foi proferido.
*
Sumário:
1
– O CIRE não impõe que o critério temporal para o cálculo da parte dos
rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos
do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, seja mensal.
2 – Esse cálculo deverá ser feito em
conformidade com o critério temporal que tenha sido fixado pelo juiz.
3 – Na falta dessa fixação, deverá o
mesmo cálculo ser feito segundo um critério anual, tendo como referência cada
um dos anos do período da cessão.