quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

Processo n.º 8327/23.7T8STB-A.E1

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Sumário:

1 – A sentença declaratória de insolvência pode ser impugnada por dois meios processuais, alternativa ou cumulativamente: recurso e embargos. O recurso é o meio próprio quando se pretenda a revogação da sentença sem se pôr em causa os factos em que esta se baseou. Já serão os embargos o meio próprio para impugnar a sentença quando, tendo em vista a revogação desta, sejam alegados factos ou requeridos meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência.

2 – Na sentença de embargos, podem ser julgados provados factos novos e factos que foram julgados não provados na sentença declaratória da insolvência. Podem, igualmente, ser julgados não provados factos que foram julgados provados nesta última.

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Requerentes da insolvência/recorridas:

AAA;

BBB.

Insolvente:

CCC.

Embargantes/recorrentes:

DDD;

EEE.

Pedido:

Revogação da sentença que declarou a insolvência de CCC.

Decisão recorrida:

«Compulsados os autos constatamos que se mostra já proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora (apenso D) que confirmou integralmente a decisão proferida nesta primeira instância, mantendo a declaração de insolvência e integralmente a matéria de facto ali considerada provada.

Considerando o Tribunal que o prosseguimento dos embargos poderia conduzir à violação do caso julgado determinou a notificação às partes para, querendo, se pronunciarem quanto à impossibilidade superveniente da lide.

Os embargantes e insolvente defenderam o prosseguimento dos autos, nos termos constantes dos requerimentos que antecedem.

Já as embargadas concluíram pela extinção da presente instância por impossibilidade superveniente da lide, sob pena de se violar o caso julgado, nos termos e com os fundamentos plasmados no requerimento antecedente e cujos termos aqui se dão integralmente por reproduzidos.

Apreciando.

Os presentes embargos visam a reapreciação da matéria de facto, designadamente, no excerto que respeita à existência de diversas ações e execuções pendentes contra o requerido e respetivos valores, argumentando, que as mesmas inexistem e não deviam ter-se como provadas.

Sucede que, tal matéria consta provada em sede de sentença e tal sentença, apesar de objeto de recurso quanto à decisão da matéria de facto foi integralmente mantida, ou seja, os factos provados não foram objeto de alteração e mostram-se assentes a título definitivo.

Assim, consideramos que, mostrando-se transitado o Acórdão em causa, se poderá verificar a impossibilidade superveniente da presente lide, sob pena de ferir o caso julgado já produzido.

Com efeito, a matéria de facto que constitui fundamento dos presentes embargos foi já apreciada e decidida a título definitivo pelo Tribunal da Relação, não podendo este tribunal, em sede de embargos, considerar, quanto à mesma matéria, provados factos referentes às ações e execuções pendentes diversos dos ali considerados assentes.

Na verdade, a exceção de caso julgado exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir.

Se é indiscutível que a excepção do caso julgado exige a identidade do pedido, da causa de pedir e de sujeitos – art 581º CPC, por sua vez, a autoridade do caso julgado tem-se entendido de forma dominante no sentido de não se impor aquela tríplice identidade, embora a não identidade total das partes ofereça reservas e a não identidade dos objectos postule entre eles necessárias relações de conexão.

No presente caso, estamos perante um apenso em que os embargantes serão credores do insolvente e nessa medida partes interessadas e participantes nos autos principais.

Cumpre ponderar o que se decidiu no Douto Acórdão do STJ de 12/01/2021, proferido nos autos de processo n.º 2030/11.8TBFLG-C.P1.S1, onde se decidiu:

“I. A função positiva do caso julgado, designada por autoridade do caso julgado, tem a ver com a existência de prejudicialidade entre objectos processuais, tendo como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, como se depreende dos art.ºs 619.º e 621.º, ambos do CPC, e implica o acatamento da decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.

II. A autoridade do caso julgado não requer a tríplice identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam o antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.

III. Relativamente à eficácia subjectiva do caso julgado, embora a regra geral seja a de que ele só produz efeitos em relação às partes, também se estende àqueles que, não sendo partes, se encontrem legalmente abrangidos por via da sua eficácia directa ou reflexa, beneficiando do efeito favorável, como sucede, designadamente, nas situações de solidariedade entre devedores, de solidariedade entre credores e de pluralidade de credores de prestação indivisível, respetivamente nos termos dos artigos 522.º, 2.ª parte, 531.º, 2.ª parte, e 538.º, n.º 2, do CC.

IV. O caso julgado material formado com o trânsito em julgado de decisão anteriormente proferida numa acção tem eficácia relativamente à embargante que não teve nela intervenção quando se discute nos embargos de executado as mesmas questões já discutidas entre a exequente e o executado, por alegadas dívidas comuns e solidárias dos executados e embargantes, casados entre si.”

Com efeito a prova da existência de ações e execuções pendentes que resultou da falta de impugnação do requerido e do incumprimento do seu dever de provar a sua solvabilidade, que se mostra assente nos autos principais por via da decisão do Douto Tribunal da Relação, transitada em julgado, tem que produzir reflexos nos embargos à insolvência deduzidos pelos credores, dado que o objeto destes consiste justamente em afastar aquela matéria de facto.

A apreciação e decisão dos embargos poderia conduzir à consideração de factos provados contrários aos constantes da decisão proferida nos autos principais, o que constituiria uma violação flagrante do caso julgado, que indubitavelmente tem efeitos reflexos da esfera jurídica dos credores.

Em face do exposto, e atento o efeito do caso julgado material da decisão proferida nos autos principais verifica-se a impossibilidade superveniente da presente lide, o que constitui uma exceção dilatória e consequentemente impõe a extinção da instância, nos termos do art. 277º al. e); 278º, n.º 1, al. e); 577º, al. i); 578º, do CPC.

Nesta conformidade, e em face do efeito externo do caso julgado, julga-se procedente a exceção de caso julgado e consequentemente, extingue-se a presente instância por impossibilidade superveniente da lide, absolvendo-se os embargados (réus) da instância.

Registe e notifique.»

Conclusões dos recursos:

A) O recorrente elencou os seus embargos de insolvência, alegando factos e meios de prova novos que não foram considerados pelo tribunal e que podem afastar os fundamentos da declaração de insolvência - cfr. n.º 2 do artigo 40.º do CIRE.

B) Na verdade, atenta a análise dos fundamentos da sentença e dos documentos, ou melhor, da falta deles, sustentam erradamente a situação de insolvência do requerido.

C) Considera o recorrente que apresentou factos e documentos que não foram relevados e sequer considerados na sentença objecto dos presentes embargos recorridos, que impunham uma decisão de improcedência.

D) Pois o tribunal, por sua iniciativa, sem que alguma das partes o alegasse ou provasse, dá por pendentes processos que se encontram extintos há anos.

E) E outros que nem dizem sequer respeito ao insolvente ou sequer demandado, conforme documentos ora juntos.

F) Não foram juntos pelas requerentes uma única certidão desses famigerados processos que possam imputar ao insolvente o incumprimento de responsabilidades financeiras, à excepção das responsabilidades com o seu credito hipotecário e com o credor DDD que se encontra sub-rogado dos créditos inicialmente detidos pelo Banco 1.

G) Pior!

H) Parte desses processos e dívidas então existentes e mencionadas pelas requerentes foram liquidadas com o produto das vendas das fracções autónomas às requerentes.

I) A embargante EEE esteve presente no pagamento aos credores, os quais se encontram presentes na escritura pública de compra e venda das aludidas fracções autónomas adquiridas pelas requerentes e arrendadas à sociedade Andreia Policlínica.

J) O recorrente junta documentos que provam que é ele o credor no lugar do Banco 1, ao contrário do que consta da douta sentença, por via da aquisição posterior desse crédito, do qual se encontra sub-rogado, conforme a prova junta aos autos.

K) Salvo o devido respeito, que é muito, o tribunal, sem qualquer certidão judicial, dá por provado que se encontram «pendentes» os processos elencados pelas requerentes.

L) Não obstante o tribunal os créditos considerar «pendentes» (??), acaba por os reconhecer como devidos, no valor total de € 1.559,705,00.

M) Ora, ou os considerava «pendentes» (apesar de não ter qualquer informação judicial nesse sentido), e não os podia reconhecer até decisão judicial com trânsito sobre o respectivo mérito.

N) Ou não os poderia considerar «pendentes», uma vez que «reconhece» que o insolvente é devedor de tais montantes.

O) Substituindo-se aos respectivos senhores juízes titulares dos processos «pendentes», uma vez que decreta a insolvência com base na insuficiência de património que assegure a sua liquidação.

P) Estes processos encontram-se extintos e as quantias foram liquidadas na própria escritura publica com o produto da venda das aludidas fracções autónomas, celebrada com as requerentes.

Q) Na verdade, foram expostos pelo recorrente factos novos e apresentados meios de prova que colocam em crise a sentença decretou a insolvência de CCC.

R) Como decorre do disposto nos artigos 40.º e 42.º do CIRE, a impugnação da sentença declaratória da insolvência pode ser feita através de embargos e/ou de recurso.

S) No caso da dedução de embargos, cf. n.º 2 do citado artigo 40.º, os mesmos baseiam-se na alegação de factos ou se requeiram meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência.

T) Exactamente o que o recorrente elencou na dedução dos seus embargos.

U) Os fundamentos para a dedução de embargos e de recurso à sentença declaratória de insolvência são: os embargos destinam-se à alegação de factos novos ou para requerer novos meios de prova, ao passo que o recurso se destina à discussão de razões de direito, com referência aos elementos já apurados e considerados na sentença.

V) Exactamente o que o recorrente elencou na dedução dos seus embargos, razão por que improcede, salvo o devido respeito, os fundamentos da sentença proferida.

W) Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3.ª Edição, a pág. 279 «os embargos serão necessariamente fundados em razões de facto – novos factos alegados ou novas provas requeridas (…). Em contrapartida, o recurso deve basear-se em razões de direito – inadequação da decisão à factualidade apurada por má aplicação da lei …».

X) Acrescentando, a pág. 283, que a petição de embargos desencadeia a reapreciação da declaração de insolvência, que será feita pelo tribunal que a proferiu, baseada sempre «em razões de facto que afectem a sua regularidade ou real fundamentação».

Y) Estamos perante um erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e a lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsidade.

Z) Duvidas não subsistem ao recorrente que estamos perante um erro de interpretação dos factos e do direito e a sua aplicação, o que constitui erro de julgamento, pelo que se impõe que o Tribunal da Relação de Évora altere a decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito, revogando a sentença, ordenando a realização da audiência de discussão dos embargos de insolvência.

Questão a decidir:

Se o trânsito em julgado da decisão desta Relação que confirmou a sentença declaratória de insolvência gera a impossibilidade superveniente da lide nos presentes embargos.

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Em face do teor das alegações de recurso, nas quais os recorrentes se perdem em considerandos acerca do mérito dos embargos, importa começar por lembrar que não é este o objecto da decisão recorrida. Esta não julgou os embargos improcedentes, como a leitura das alegações de recurso poderia levar a supor. Em vez disso, declarou extinta a instância com fundamento numa suposta impossibilidade superveniente da lide. É unicamente a existência de fundamento legal para tal decisão de extinção da instância sem julgamento do objecto dos embargos que se encontra em discussão nos presentes recursos.

Os fundamentos da decisão recorrida são, em síntese, os seguintes:

- Os presentes embargos visam a reapreciação de factos julgados provados na sentença que declarou a insolvência;

- Essa sentença foi objecto de recurso e confirmada pela 2.ª instância, encontrando-se a decisão desta transitada em julgado;

- Ou seja, a matéria de facto que constitui fundamento dos presentes embargos foi apreciada e decidida a título definitivo pela 2.ª instância;

- Consequentemente, ficou vedado à 1.ª instância, em sede de embargos, julgar provados factos diversos daqueles que, por via do trânsito em julgado da decisão da 2.ª instância, ficaram definitivamente fixados;

- Pelo que se verifica a impossibilidade superveniente da lide;

- Com efeito, a apreciação e decisão dos embargos poderia conduzir à consideração de factos provados contrários aos constantes da decisão proferida nos autos principais, o que constituiria uma violação flagrante do caso julgado.

A esta fundamentação, os recorrentes contrapõem, na parte relevante (atendendo ao que referimos no 1.º parágrafo da presente fundamentação) das suas alegações, que, nos embargos, alegaram factos e apresentaram meios de prova novos, que colocam em crise a sentença declaratória da insolvência, pelo que, nos termos dos artigos 40.º e 42.º do CIRE, tais embargos são admissíveis e podem afastar os fundamentos da declaração de insolvência.

Analisemos a questão.

O n.º 2 do artigo 40.º do CIRE (diploma ao qual pertencem as normas legais doravante referenciadas sem menção da sua origem) estabelece, na parte que nos interessa, que os embargos são admissíveis desde que o embargante alegue factos ou requeira meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência. O n.º 1 do artigo 42.º estabelece que as pessoas referidas no n.º 1 do artigo 40.º podem, alternativamente à dedução dos embargos ou cumulativamente com estes, interpor recurso da sentença de declaração de insolvência, quando entendam que, face aos elementos apurados, esta não devia ter sido proferida.

Do confronto entre estas duas normas, resulta que a sentença declaratória de insolvência pode ser impugnada por dois meios processuais, alternativa ou cumulativamente: recurso e embargos. O recurso é o meio próprio quando se pretenda a revogação da sentença sem se pôr em causa os factos em que esta se baseou. Já serão os embargos o meio próprio para impugnar a sentença quando, tendo em vista a revogação desta, sejam alegados factos ou requeridos meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência.

Ensinam, a este propósito, LUÍS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA:

«A petição de embargos desencadeia a reapreciação da razoabilidade da declaração de insolvência que será feita pelo tribunal que a proferiu.

Em razão do que se dispõe no n.º 2 do art. 40.º, ela deve sempre ser baseada em razões de facto que afectem a sua regularidade ou real fundamentação.

Tratar-se-á normalmente de avaliar novos factos trazidos ao processo pelo embargante. Mas poderá também ser o caso de deverem ser levados em conta factos que os autos documentam e que não foram considerados na sentença embargada, ou, como a lei declaradamente afirma, de serem produzidas provas que não foram tidas em conta pelo tribunal e que, precisamente por permitirem inquinar factos dados como provados ou apurar outros factos, sejam susceptíveis de “afastar os fundamentos da declaração de insolvência”.

Se, pelo contrário, a pretensão do oponente se funda na incorrecta aplicação do Direito aos factos – e só a eles – ponderados na sentença, seja por sua inadequada valoração ou por subsunção a norma indevida, então a via de ataque não é já a petição de embargos mas antes o recurso (ex vi do art. 42.º, n.º 1).»[1]

Portanto, ao prever a possibilidade de impugnação da sentença declaratória de insolvência por meio de embargos, nos termos descritos, a lei admite que, nestes, sejam julgados provados factos diversos daqueles que o foram naquela sentença. Esse resultado probatório diverso do da sentença impugnada poderá determinar a revogação desta pelo próprio tribunal que a proferiu, sem que daí resulte qualquer violação, nem do princípio do esgotamento do poder jurisdicional (artigo 613.º, n.º 1, do CPC), nem do caso julgado (artigo 619.º, n.º 1, do CPC).

Insistimos, é o próprio CIRE que prevê a possibilidade de alegação e prova de factos diversos daqueles que foram julgados provados na sentença impugnada. Por isso restringe a legitimidade para a dedução de embargos nos termos estabelecidos no n.º 1 do artigo 40.º. Nomeadamente, o devedor que teve oportunidade para deduzir oposição à insolvência contra si requerida, por ter sido pessoalmente citado, carece de legitimidade para a dedução de embargos, nos termos da al. a). Só se justifica admitir a dedução de embargos, com a latitude descrita, ou ao devedor em situação de revelia absoluta que não tenha sido pessoalmente citado, ou aos terceiros previstos nas als. b) a f).

Decorre do exposto que a tese do tribunal a quo é legalmente insustentável.

Acrescente-se que a decisão recorrida não se coaduna com o próprio processado anterior.

Os embargos foram admitidos e correram termos até à descida do recurso da sentença declaratória da insolvência ao tribunal a quo. Só então este declarou a instância extinta por impossibilidade superveniente da lide, a pretexto de só assim se evitar a possibilidade de prolação de sentença que, ao julgar provados factos diversos daqueles que, por via do trânsito em julgado da decisão da 2.ª instância, teriam ficado definitivamente fixados, violasse o caso julgado decorrente desse trânsito.

Isto não faz sentido. Se entendia que a eventual prolação, em sede de embargos, de sentença que, ao julgar factos diversos daqueles que, por via do trânsito em julgado da sentença declaratória da insolvência, teriam ficado definitivamente fixados, violaria o caso julgado decorrente desse trânsito, a atitude coerente (embora, ainda assim, errada, por violação da lei) do tribunal a quo teria sido a de julgar os embargos inadmissíveis logo no despacho liminar (artigo 41.º, n.º 1). Sendo a alteração da matéria de facto julgada provada na sentença que decretou a insolvência aquilo que os embargantes declaradamente pretendiam, era, logo perante as duas petições iniciais e a ser correcto o entendimento do tribunal a quo, evidente a inviabilidade dos embargos. Para quê deixar estes prosseguirem até ao trânsito em julgado da decisão da 2.ª instância?

Mais, imaginemos que a decisão da 2.ª instância só transitava em julgado após a prolação da sentença proferida nos embargos. Que acontecia a esta? Na lógica do entendimento perfilhado pelo tribunal a quo, teria de ceder perante o decidido pela 2.ª instância. Sendo assim, novamente se pergunta: Que sentido teria feito deixar os embargos prosseguirem até ao trânsito em julgado da decisão da 2.ª instância? Se a sentença a proferir em sede de embargos não podia contrariar o decidido na sentença declaratória da insolvência sobre a matéria de facto, que sentido teriam tido a admissão liminar dos embargos e o seu ulterior processamento?

Concluindo, inscreve-se na própria natureza dos embargos, tal como estes se encontram configurados no CIRE, a possibilidade de a matéria de facto neles julgada provada divergir daquela que o foi na sentença declaratória da insolvência. É precisamente para isso que os embargos servem. Na sentença de embargos, podem ser julgados provados factos novos e factos que foram julgados não provados na sentença declaratória da insolvência. Podem, igualmente, ser julgados não provados factos que foram julgados provados nesta última.

Daí que a decisão recorrida não possa subsistir, devendo ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos embargos.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar os recursos procedentes, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos embargos.

Custas a cargo das recorridas.

Notifique.

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Évora, 30.01.2025

Vítor Sequinho dos Santos (relator por vencimento)

José Saruga Martins (1.º adjunto – voto de vencido)

Isabel de Matos Peixoto Imaginário (2.ª adjunta)

 

Votei vencido por entender, tal como se afirma na decisão em crise e objecto de recurso  que “… a prova da existência de ações e execuções pendentes que resultou da falta de impugnação do requerido e do incumprimento do seu dever de provar a sua solvabilidade, que se mostra assente nos autos principais por via da decisão, transitada em julgado, tem que produzir reflexos nos embargos à insolvência deduzidos pelos credores, dado que o objeto destes consiste justamente em afastar aquela matéria de facto.

A apreciação e decisão dos embargos poderia conduzir à consideração de factos provados contrários aos constantes da decisão proferida nos autos principais, o que constituiria uma violação flagrante do caso julgado, que indubitavelmente tem efeitos reflexos da esfera jurídica dos credores …”.

Acresce que “… a eficácia do caso julgado material formado com o trânsito em julgado de decisão anteriormente proferida numa acção tem eficácia relativamente à embargante que não teve nela intervenção quando se discute nos embargos de executado as mesmas questões já discutidas entre a exequente e o executado, por alegadas dívidas comuns e solidárias dos executados e embargantes, casados entre si …”, (in Acórdão do STJ de 12. 01. 2021 processo nº 2030/11.8TBFLG-C.P1.S1 in www.dgsi.pt).

(José Saruga Martins) 



[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume I, 1.ª edição, p. 212, anotação 4 ao artigo 41.º.


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 05.12.2024

Processo n.º 1317/22.9T8OLH-B.E1

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Sumário:

1 – O interessado que pretenda impugnar a lista de credores reconhecidos com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos, tem o ónus de o fazer nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo 129.º do CIRE.

2 – Decorrido tal prazo, estabelecido no n.º 1 do artigo 130.º do CIRE, fica precludido o referido direito de impugnação.

3 – Os recursos ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas, excepto se estas forem de conhecimento oficioso.

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AAA impugnou a lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência, pedindo a sua inclusão, nela, como credor reconhecido, e a verificação e graduação do crédito que invocou como garantido, no valor total de € 219.000, acrescido dos respectivos juros vincendos, calculados sobre o capital, à taxa em vigor, demais despesas e acréscimos legais.

BBB, credora reclamante, e Massa Insolvente de CCC e DDD, responderam à impugnação, pugnando pela sua improcedência.

Posteriormente, AAA e Massa Insolvente de CCC e DDD celebraram uma transacção mediante a qual o crédito invocado pelo primeiro foi incluído na lista dos créditos reconhecidos, com o montante de € 219.000 e a natureza de subordinado. Notificada para se pronunciar, a credora BBB nada disse.

Em seguida, o tribunal a quo proferiu sentença mediante a qual homologou:

- A transacção;

- A lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência, julgando tais créditos verificados e reconhecidos e reconhecendo o crédito de AAA sobre os insolventes, com o montante de € 219.000 e a natureza de subordinado;

- A proposta de graduação de créditos elaborada pelo administrador da insolvência.

AAA interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

I. O valor do crédito alegado pela credora BBB é manifestamente inferior àquele a que efectivamente terá direito.

II. Considerando que o crédito da BBB já foi reconhecido judicialmente, por sentença, no processo n.º 1336/19.2T8SLV, quer o tribunal, quer o administrador de insolvência, podem oficiosamente verificar e calcular o valor do crédito daquela sociedade em relação aos insolventes.

III. Em resultado dos créditos obtidos, ou a obter, no processo n.º 1336/19.2T8SLV, a BBB não pode ter um crédito sobre os insolventes superior a € 19.536,25, acrescido de juros, considerando os limites constantes nos termos da sentença.

IV. A verificação do crédito de um credor, em quantia superior àquele que efectivamente deve ser reconhecido, prejudica, para além dos insolventes, os demais credores, nomeadamente o recorrente.

V. A credora BBB litigou de má-fé, devendo ser condenada em multa e indemnização.

Termos em que se requer a V. Exas. que se dignem a julgar procedente o presente recurso e revogar a decisão na parte em que verifica o crédito da BBB, no valor de € 215.572,07, devendo o crédito da credora BBB ser calculado nos termos da decisão judicial executiva proferida no processo n.º 1336/19.2T8SLV, subtraindo as quantias por ela recebidas ou a receber no âmbito daquele processo, e condenar a credora BBB em litigância de má-fé, e numa multa e indemnização a liquidar por V. Exas., numa quantia não inferior a € 5.000.

O recurso foi admitido.

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Suscita-se a questão de saber se é legalmente admissível a discussão, no presente recurso, do valor do crédito reclamado por BBB como o recorrente pretende.

O n.º 1 do artigo 130.º do CIRE (diploma ao qual pertencem as normas legais doravante referenciadas sem menção da sua origem) estabelece que, nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos. O n.º 3 do mesmo artigo estabelece que, se não houver impugnações, será, de imediato, proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, o juiz homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista, podendo o juiz, caso concorde com a proposta de graduação elaborada pelo administrador da insolvência, homologar a mencionada proposta.

O recorrente impugnou a lista dos credores reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência, mas unicamente para pedir a sua própria inclusão nessa lista e a verificação e graduação do seu crédito como garantido, no valor total de € 219.000, acrescido dos respectivos juros vincendos, calculados sobre o capital, à taxa em vigor, demais despesas e acréscimos legais. O recorrente não impugnou a referida lista com fundamento na incorrecção do montante do crédito reclamado por BBB, ou seja, não questionou a existência deste crédito, nem o montante que lhe foi atribuído na mesma lista.

O tribunal a quo não proferiu imediatamente a sentença de verificação e graduação dos créditos, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 130.º, devido à impugnação deduzida pelo recorrente, com o fundamento acima referido. Não obstante, ao não questionar, dentro do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 130.º, a existência e/ou o montante do crédito reclamado por BBB ficou precludido o direito de o recorrente o fazer. Decorre do n.º 1 daquele artigo que, querendo impugnar a lista de credores reconhecidos nos termos e com os fundamentos aí previstos, o interessado tem o ónus de o fazer nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo 129.º. Decorrido tal prazo, ocorre aquela preclusão[1]. O recorrente perdeu a possibilidade de questionar a existência e/ou o montante do crédito reclamado pela BBB.

Celebrada e homologada a transacção, ficou sanada a única divergência que se verificava sobre o conteúdo da lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência. Ou seja, ficou-se numa situação equivalente àquele que teria existido se não tivesse existido impugnação: todo o conteúdo da referida lista era consensual. Daí que o tribunal a quo tenha proferido a sentença de verificação e graduação dos créditos nos termos previstos no n.º 3 do artigo 130.º.

Resulta do exposto que a invocação, pelo recorrente, da questão do valor do crédito reclamado por BBB, que pretende ver reduzido para quantia não superior a € 19.536,25, mais juros, posteriormente ao decurso do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 130.º, ainda que houvesse tido lugar perante o tribunal a quo, seria extemporânea e, consequentemente, inadmissível.

No caso dos autos, a invocação daquela questão esbarra num segundo limite: o de ter ocorrido apenas na fase de recurso. Perante o tribunal a quo, o recorrente não pôs em causa o valor do crédito reclamado por BBB, nem no prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 130.º, nem sequer, ainda que extemporaneamente, em momento posterior. Daí que essa questão não tenha sido abordada na sentença recorrida.

Resulta dos artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2, e 640.º do CPC que os recursos ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas, ou seja, suscitadas pela primeira vez perante o tribunal ad quem. Apenas assim não será se se tratar de questões de conhecimento oficioso.

Ao longo das suas alegações, o recorrente insiste que a questão do valor do crédito reclamado por BBB é de conhecimento oficioso, uma vez que «o crédito da BBB já foi reconhecido judicialmente, por sentença, no processo n.º 1336/19.2T8SLV» (conclusão II). Porém, o recorrente não indica o fundamento jurídico de tal afirmação. De que norma ou normas jurídicas resulta que o facto de aquele crédito ter sido reconhecido por sentença proferida noutro processo torna a questão do seu montante de conhecimento oficioso neste processo? O recorrente não diz. E, na realidade, uma coisa nada tem a ver com a outra.

Concluindo, está vedado, ao tribunal ad quem, conhecer a questão do montante do crédito reclamado por BBB. Por um lado, porque, ao não impugnar, dentro do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 130.º, a lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência na parte respeitante àquele crédito, ficou precludido o direito de o recorrente o fazer em momento processual posterior. Por outro lado, porque se trata de uma questão suscitada pela primeira vez em sede de recurso e não resulta da lei que a mesma seja de conhecimento oficioso. Por si só, qualquer destas duas razões é suficiente para vedar aquele conhecimento pelo tribunal ad quem.

A condenação da credora BBB em multa e indemnização por litigância de má-fé pressupõe a conclusão de que se verifica a divergência de valores alegada pelo recorrente. Ajuizar sobre se essa divergência se verifica implicaria conhecer a questão do montante do crédito por aquela reclamado, conhecimento esse que, como acabamos de ver, se encontra vedado ao tribunal ad quem. Consequentemente, aquela condenação não poderá ter lugar.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

*

Évora, 05.12.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)

 


[1] Cfr. acórdãos do STJ de 20.05.2010 (Alberto Sobrinho), da RP de 06.11.2012 (Maria João Areias) e da RE de 19.12.2013 (Maria Cristina Cerdeira).


sábado, 23 de novembro de 2024

Decisão singular de 08.11.2024

Processo n.º 2824/22.9T8STR-G.E1

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Sumário:

1 – Inexiste fundamento legal para a condenação do credor que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 193.º do CIRE, apresente uma proposta de plano de insolvência, no pagamento das custas do processo de insolvência, ainda que esse plano não seja homologado.

2 – A tramitação a que dá lugar a apresentação, por quem para o efeito tenha legitimidade, de uma proposta de plano de insolvência, insere-se na marcha normal de um processo de insolvência, de forma alguma podendo ser considerada uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal da lide que deva ser tributada segundo os princípios que regem a condenação em custas.

*

AAA e BBB, casados entre si, foram declarados insolventes.

Os credores CCC e DDD apresentaram uma proposta de plano de insolvência, admitida e aprovada nos termos dos artigos 207.º, 211.º e 212.º do CIRE.

Requereram a não homologação do plano de insolvência o credor Sociedade 1, o Ministério Público em representação da Autoridade Tributária e Aduaneira e os insolventes. O credor Instituto da Segurança Social, I.P., requereu que o plano de insolvência fosse declarado ineficaz em relação a si.

Os credores CCC e DDD exerceram o contraditório.

O tribunal a quo recusou oficiosamente a homologação do plano de insolvência, nos termos do artigo 215.º do CIRE. Nessa decisão, o tribunal a quo condenou os credores CCC e DDD no pagamento das custas, nos termos do artigo 527.º do CPC.

Os credores CCC e DDD interpuseram recurso de apelação da decisão mediante a qual o tribunal a quo recusou oficiosamente a homologação do plano de insolvência, restrito ao segmento relativo à condenação em custas, tendo formulado conclusões que assim se sintetizam:

1 – Carece de fundamento legal a atribuição de responsabilidade por custas a um credor que exerça o seu direito de apresentar uma proposta de plano de insolvência;

2 – Ainda que tal responsabilidade existisse, nunca poderia ter por objecto as custas da totalidade do processo, desde logo porque violaria o princípio constitucional da proporcionalidade;

3 – O exercício, por um credor, do direito de apresentar uma proposta de plano de insolvência, não dá origem a um incidente processual.

Atenta a simplicidade das questões suscitadas, o recurso será decidido nos termos previstos nos artigos 652.º, n.º 1, al. c), e 656.º do CPC.

*

A primeira questão que se coloca é a da interpretação do trecho da decisão recorrida relativa à condenação dos recorrentes no pagamento de custas. É ele o seguinte: «Custas pelos credores CCC e DDD (art. 527.º, do CPC).» O tribunal a quo teve em vista as custas globais do processo, ou, em vez disso, considerou que a apresentação de um plano de insolvência, pelos recorridos, deu origem a um incidente processual tributável?

Os recorrentes baseiam as suas alegações no pressuposto de que o tribunal a quo teve em vista as custas globais do processo. A referência, no citado segmento da decisão recorrida, às «custas», sem mais, inculca que esse pressuposto é correcto. Confirmam-no, quer a ausência de referência ao disposto no n.º 2 do artigo 1.º e nos n.ºs 4 e 8 do artigo 7.º do Regulamento das Custas Processuais, quer o teor do parágrafo anterior da mesma decisão, que é o seguinte: «Valor da acção para efeitos de custas: valor do activo, nos termos do disposto no artigo 301.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa».

Tal como os recorrentes sustentam, com a concordância do Ministério Público nas suas doutas contra-alegações, inexiste fundamento legal para a condenação do credor que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 193.º do CIRE, apresente uma proposta de plano de insolvência, no pagamento das custas do processo, ainda que o plano não seja homologado. O artigo 527.º do CPC, invocado na decisão recorrida, não suporta tal condenação, pois o credor que se encontre naquelas circunstâncias não pode ser considerado parte vencida no processo de insolvência. Em vez dessa norma, deverá aplicar-se o disposto no artigo 304.º do CIRE, de acordo com o qual as custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado.

Portanto, se, como tudo indicia, o tribunal a quo pretendeu condenar os recorrentes no pagamento das custas globais do processo, a decisão recorrida terá de ser revogada nessa parte.

Se, em vez disso, o tribunal a quo pretendeu condenar os recorrentes no pagamento das custas de um suposto incidente processual gerado pela apresentação de uma proposta de plano de insolvência, também tal condenação carece de fundamento legal.

Importa ter em consideração os já citados n.ºs 2 do artigo 1.º e 8 do artigo 7.º do Regulamento das Custas Processuais, que estabelecem, respectivamente, que, para os efeitos nele previstos, se considera como processo autónomo cada acção, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corra ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação própria, e que se consideram procedimentos ou incidentes anómalos as ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide que devam ser tributados segundo os princípios que regem a condenação em custas.

Decorre dos artigos 192.º a 222.º do CIRE que a tramitação a que dá lugar a apresentação, por quem para o efeito tenha legitimidade, de uma proposta de plano de insolvência, se insere na marcha normal de um processo de insolvência, de forma alguma podendo ser considerada uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal da lide que deva ser tributada segundo os princípios que regem a condenação em custas. Está em causa, simplesmente, uma regulação específica do pagamento dos créditos sobre a insolvência, da liquidação da massa insolvente e sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor e da responsabilidade deste depois de findo o processo de insolvência, diversa daquela que é prevista no CIRE. Em vez de se proceder nos exactos termos estabelecidos no CIRE, estabelece-se, naquelas matérias, um regime específico para a insolvência em questão. Nada mais que isso.

Sendo assim, a apresentação, por quem para o efeito tenha legitimidade, de uma proposta de plano de insolvência, não constitui um incidente tributável.

Concluindo, qualquer que seja a interpretação que se faça do segmento da decisão recorrida mediante a qual o tribunal a quo condenou os recorrentes no pagamento das custas, tal condenação carece de fundamento legal. Consequentemente, o recurso deverá ser julgado procedente, revogando-se aquele segmento da decisão recorrida.

*

Dispositivo:

Pelo exposto, julgo o recurso procedente, revogando a decisão recorrida na parte em que condenou os recorrentes no pagamento das custas.

Custas a cargo da massa insolvente (artigo 304.º do CIRE).

Notifique.

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08.11.2024

Vítor Sequinho dos Santos


sábado, 16 de novembro de 2024

Critério temporal para o cálculo da parte do rendimento do insolvente excluída do rendimento disponível

Declaração de voto, como primeiro relator vencido, exarada no acórdão da Relação de Évora de 25.10.2024 (processo n.º 12/14.7T8GLG-F.E1):

Julgaria o recurso procedente, pelas razões constantes da fundamentação do projecto de acórdão por mim elaborado, que em seguida transcrevo. Igualmente transcrevo o respectivo sumário.

No despacho recorrido, o tribunal a quo começa por salientar que, «ao longo de todo o período de cessão (sendo que estamos já no período de prorrogação), o cálculo foi realizado mensalmente», pelo que estranha «que só agora a insolvente pugne pelo cálculo anual», «estando, pois, em causa um novo entendimento da insolvente quanto à forma de cálculo que, não obstante nos 4 anos anteriores ter sido realizado de forma mensal, entende agora a insolvente (findo o 1º ano de prorrogação da fidúcia) dever ser feito de forma anual.»

A recorrente contrapõe que o despacho recorrido menospreza a circunstância de o processo ter estado «sem fiduciário durante largo período (…), que os relatórios da fidúcia foram entregues “em bloco” nos autos em 12/08/2021 e que a insolvente, logo após, requereu a prorrogação desse período, tendo também impugnado (em Setembro de 2022) o modo de cálculo efectuado no relatório anual respectivo».

A discussão desta questão é inútil para a decisão a proferir. Até apresentar o requerimento sobre o qual recaiu o despacho recorrido, a recorrente nunca suscitou a questão do critério temporal de cálculo da parte dos seus rendimentos que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). Por seu turno, o tribunal a quo nunca se pronunciou, oficiosamente ou a requerimento de outro sujeito processual, sobre essa questão. Logo, inexiste decisão anterior à recorrida que se imponha com força de caso julgado formal. Daí que nada impedisse a recorrente de, a qualquer momento, suscitar a questão, como efectivamente suscitou, independentemente da forma como, bem ou mal, o seu rendimento tivesse sido anteriormente calculado pelo fiduciário. O requerimento sobre o qual o despacho recorrido se pronunciou é admissível e oportuno.

Resolvida esta questão prévia, avancemos.

A questão de saber qual deverá ser o critério temporal de cálculo da parte dos rendimentos do devedor que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), vem dividindo a jurisprudência. Sobre ela, o relator deste acórdão tomou anteriormente posição no sentido que a recorrente sustenta, em acórdão desta Relação, também por si relatado, proferido em 07.04.2022 (processo n.º 78/13.7TBMAC.E1). Daí que passemos a fundamentar o presente acórdão transcrevendo a parte pertinente da fundamentação daquele:

«O CIRE não impõe que o critério temporal de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), seja mensal.

Desde logo, inexiste norma expressa nesse sentido.

Pretender-se retirar implicitamente tal norma da referência, na parte final do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), ao triplo do salário mínimo nacional como constituindo, em regra, o limite máximo daquilo que é necessário para o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar, é errado. Tal referência visa exclusivamente a fixação de um limite quantitativo máximo (que admite excepções), não a consagração de um critério temporal de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i).

Tampouco o artigo 239.º, n.º 4, al. c), impõe que tal critério seja mensal. Esta norma estabelece que, durante o período da cessão, o insolvente fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão. Ora, a questão que nos ocupa coloca-se em momento logicamente anterior àquele a que a mesma norma se reporta, pois a parte dos rendimentos do insolvente que é objecto de cessão só fica determinada após a aplicação do critério que buscamos. Ou seja, primeiro, por aplicação deste critério, calcula-se a parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). Só após esta operação será possível saber se sobra alguma parte dos rendimentos do insolvente que possa ser integrada no rendimento disponível e entregue ao fiduciário, nos termos do n.º 2 daquele artigo, e, na hipótese afirmativa, o respectivo valor. Então sim, terá chegado o momento da aplicação do n.º 4, al. c), devendo o insolvente entregar imediatamente ao fiduciário a parte dos seus rendimentos que são objecto da cessão. Portanto, o regime estabelecido nesta última norma é compatível com qualquer dos critérios em discussão: mensal, anual ou outro.

À interpretação que acabamos de fazer do artigo 239.º, n.º 4, al. c), poderá objectar-se que a mesma ignora o segmento “quando por si recebida”. Numa primeira leitura, a referida norma parece impor a obrigação de, sempre que o insolvente receba algum rendimento, deverá, acto contínuo, proceder à sua entrega ao fiduciário.

Não é assim, fundamentalmente por duas razões.

Em primeiro lugar porque é impossível. É impossível, desde logo, na hipótese de o insolvente exercer uma actividade profissional que lhe proporcione rendimentos diários, ou quase diários (o que é vulgar quando se exerce uma actividade profissional por conta própria). Seria impraticável obrigá-lo a entregar imediatamente uma parte dessas quantias ao fiduciário, fosse ela qual fosse. E é, por outro lado, impossível, em qualquer hipótese, porque, antes da entrega, há que fazer contas, em função de um critério. Como a norma refere, a obrigação de entrega reporta-se apenas a uma parte dos rendimentos do insolvente, quando exista. Feito o cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que constitui objecto da cessão, então sim, a sua entrega ao fiduciário deverá ser imediata.

Em segundo lugar porque, se o segmento “quando por si recebida” tivesse uma conotação temporal, seria redundante relativamente à primeira parte da norma. A obrigação de entrega imediata ao fiduciário, se entendida em sentido naturalístico, só poderia reportar-se àquilo que o insolvente tivesse acabado de receber, como é óbvio.

A única interpretação possível do segmento “quando por si recebida” é destituída de qualquer conotação temporal. Estabelece-se, antes, uma condição. Há obrigação de entrega imediata, nos termos acima expostos, se o insolvente tiver recebido rendimentos de montante suficiente para que uma parte deles seja objecto de cessão.

Assim interpretado, o artigo 239.º, n.º 4, al. c), é, como anteriormente concluímos, compatível com qualquer dos critérios temporais de aferição do montante dos rendimentos do insolvente para o efeito de determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do n.º 3, al. b), do mesmo artigo.

Podemos, portanto, assentar numa primeira conclusão: o CIRE não impõe que o critério em causa seja mensal. Não o fazendo, abre a porta a que o juiz estabeleça, no despacho inicial, o critério que melhor se ajuste às particularidades de cada caso concreto, tendo especialmente em vista o objectivo estabelecido pelo artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i) (garantia, através da exclusão do rendimento disponível, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar), emanação da consagração, logo no artigo 1.º da Constituição, do princípio fundamental segundo o qual Portugal é uma república soberana baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Por razões de segurança e certeza jurídicas, a fixação do referido critério no despacho inicial, aliás alterável em qualquer momento do período da cessão em função de alterações relevantes de circunstâncias que no decurso dele se verifiquem, seria, no nosso entendimento, conveniente.

Quando tal fixação seja feita (assim aconteceu numa situação apreciada num colectivo em que o relator foi o mesmo deste acórdão e o então 2.º adjunto é agora o 1.º adjunto, através de acórdão proferido em 25.02.2021, no processo n.º 90/16.4T8ORQ.E1, publicado em http://www.dgsi.pt/), há que respeitá-la, como é evidente.

Quando tal fixação não é feita, como aconteceu no caso dos autos, a dúvida persiste. O CIRE não estabelece qualquer critério e o juiz também o não fez. Como resolver o problema?

Terão de intervir, neste ponto, os princípios constitucionais do respeito pela dignidade da pessoa humana e da igualdade.

Vimos anteriormente que o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição, impõe a salvaguarda constante do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i): Fica excluído do rendimento disponível o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. Na concretização deste regime legal, iluminado por aquele princípio constitucional, o juiz não pode fixar uma quantia exígua, que não garanta aquele sustento minimamente digno. A jurisprudência tem entendido, pacificamente, que o montante do salário mínimo nacional constitui um mínimo inultrapassável nesta matéria.

Do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, decorre, nomeadamente, aquilo que, sem exagero, pode considerar-se a essência do conceito de justiça: deve tratar-se igualmente aquilo que é igual e diferenciadamente aquilo que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Subjaz a este princípio uma ideia de proibição do arbítrio, concretizável, nomeadamente, na inadmissibilidade de diferenciação de tratamento sem fundamento material bastante, isto é, sem justificação razoável à luz dos valores que enformam a nossa ordem jurídica, encimados por aqueles que emanam da Constituição.

Tendo em conta os princípios enunciados, analisemos a concreta questão que se nos coloca começando por imaginar duas situações em que, para simplificar, os insolventes são os únicos membros dos seus agregados familiares e o montante excluído do rendimento disponível ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), é de € 750 mensais. Para evitar as especificidades decorrentes da legislação laboral, suponhamos que ambos exercem actividades económicas por conta própria. Num determinado ano civil, um dos insolventes auferiu um rendimento mensal de € 750 durante os 12 meses do ano e o outro auferiu € 300 em Janeiro, € 900 em Fevereiro, € 700 em Março, € 2.000 em Abril, € 1.500 em Maio, € 600 em Junho, € 0 em Julho e Agosto, € 500 em Setembro, € 500 em Outubro, € 1.000 em Novembro e 1.000 em Dezembro. No ano em causa, qualquer destes dois insolventes auferiu, no total, € 9.000. Todavia, a seguir-se o critério mensal de aferição do montante dos rendimentos para o efeito de determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), o primeiro não terá de entregar qualquer quantia ao fiduciário, a título de cessão de rendimento disponível, ao passo que o segundo terá de entregar € 2.650. O exercício a que vimos procedendo poderá ficar ainda mais expressivo imaginando um insolvente que tenha auferido € 4.500 em Janeiro e € 4.500 em Setembro (ainda que como contrapartida por trabalho desenvolvido ao longo dos meses anteriores, em que nada recebeu), o qual, de acordo com o critério mensal, teria de entregar ao fiduciário € 7.500. A desigualdade de tratamento destes três insolventes é patente e, dado terem auferido, no período de 1 ano, rendimentos idênticos, tem de considerar-se inadmissível. Não há, com efeito, fundamento material para a exposta desigualdade de tratamento.

Analisando as situações expostas sob o ponto de vista do princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana, a conclusão a que chegamos é idêntica. Enquanto o primeiro insolvente pôde afectar ao seu sustento a quantia mensal de € 750 e anual de € 9.000, superior ao salário mínimo nacional, o segundo e o terceiro apenas puderam afectar ao mesmo fim, respectivamente, as quantias mensais de € 519,17 e € 125 e anuais de € 6.350 e € 1.500. Ou seja, os segundo e terceiro insolventes ficaram abaixo daquilo que é razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno e isso aconteceu, sublinhamos, por efeito do funcionamento do critério mensal de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). O segundo e, de forma ainda mais evidente, o terceiro insolvente, ficaram, em consequência da rigidez do critério mensal, impedidos de fazer aquilo que qualquer pessoa diligente faz para assegurar o seu sustento minimamente digno nas circunstâncias descritas: poupar quando ganha mais com vista a poder gastar quando ganha menos, ou nada ganha. 

Isto demonstra a inadequação do critério mensal. A sua rigidez torna-o cego em relação a situações em que, como as descritas, os rendimentos do insolvente são variáveis, impedindo este último de fazer uma coisa tão simples como poupar em meses melhores para poder gastar em meses piores e assim pondo em causa o sustento minimamente digno daquele e do seu agregado familiar.

Não se pense que o critério mensal apenas produz resultados inadmissíveis quando os rendimentos do insolvente provenham de trabalho por conta própria. Também o rendimento mensal de um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode variar. Mesmo pondo de lado a questão resultante da percepção dos subsídios de Natal e de férias (cuja análise, tendo em conta a abundante jurisprudência existente sobre a matéria, nos levaria longe demais, tendo em conta o objecto deste recurso), um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode ver o seu salário variar de mês para mês em função de situações como, por exemplo, períodos de desemprego ou de baixa por doença, a prestação de trabalho suplementar ou salários em atraso. Imaginemos, por exemplo, um insolvente a quem não são pagos os salários durante 3 meses seguidos, sendo esse pagamento efectuado no mês seguinte, juntamente com o salário que a esse mês respeita. Em consequência de um facto que, em si mesmo, é altamente penalizador para um trabalhador como é ter salários em atraso, a situação do insolvente poderia ser agravada pela circunstância, a que ele é alheio e que em nada o beneficiou, de receber 4 salários num só mês e ver uma parte desse rendimento integrada no rendimento disponível.

Analisando o problema pelo lado dos credores da insolvência, resulta do artigo 241.º que estes em nada são prejudicados se se adoptar o critério anual ou, eventualmente, outro que não exceda o período de 1 ano. O n.º 1 daquele artigo estabelece que o fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los e afecta os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão, nomeadamente, nos termos da al. d), à distribuição pelos credores da insolvência. Logo, a circunstância de o critério ser mensal, anual ou outro inferior a 1 ano é indiferente do ponto de vista do interesse destes últimos: em qualquer hipótese, só anualmente receberão as quantias a que tiverem direito.

Concluindo, na ausência de fixação de critério diverso pelo juiz, no despacho inicial ou, na hipótese de alteração relevante das circunstâncias, em despacho posterior, o critério anual deverá ser adoptado para o cálculo do montante dos rendimentos do insolvente com vista a determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i). Em casos como o dos autos, apenas esse critério permite soluções conformes com os princípios constitucionais acima referidos.

Na jurisprudência, já encontramos acórdãos que admitem a adopção do critério anual: Relação de Évora de 17.01.2019 (Maria João Sousa e Faro), Relação de Lisboa de 22.09.2020 (Amélia Sofia Rebelo) e Relação de Guimarães de 22.04.2021 (António Sobrinho).»

Concluímos, assim, que a recorrente tem razão. Para o efeito previsto no artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), o seu rendimento deverá ser calculado de acordo com um critério anual e não mensal. Independentemente do que tiver acontecido relativamente ao período de cessão anterior, que não foi objecto do requerimento indeferido pelo despacho recorrido nem, logicamente, do presente recurso, assim deverá ser relativamente ao período de prorrogação do prazo da cessão. Deverá, pois, o fiduciário reformular o cálculo, a que procedeu, relativo ao primeiro dos três anos em que o período de cessão foi prorrogado, em conformidade com o referido critério anual.

O recurso deverá, pois, ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e deferindo-se o requerimento apresentado pela recorrida sobre o qual aquele foi proferido.

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Sumário:

1 – O CIRE não impõe que o critério temporal para o cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, seja mensal.

2 – Esse cálculo deverá ser feito em conformidade com o critério temporal que tenha sido fixado pelo juiz.

3 – Na falta dessa fixação, deverá o mesmo cálculo ser feito segundo um critério anual, tendo como referência cada um dos anos do período da cessão.


Acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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