sábado, 3 de julho de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 17.06.2021

Processo n.º 1169/20.3T8STR-B.E1

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Sumário:

O valor a excluir do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, não tem de coincidir com o das despesas que o devedor suportava antes de ser declarado insolvente ou, sequer, antes do início do período da cessão, antes devendo cingir-se ao que for razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.

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AR apresentou-se à insolvência, nos termos dos artigos 18.º e seguintes do CIRE, tendo, então, requerido a exoneração do passivo restante nos termos dos artigos 235.º e seguintes do mesmo código.

Por sentença proferida em 21.05.2020, foi declarada a insolvência.

Em 21.01.2021, foi proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, no qual se decidiu, na parte que interessa para o conhecimento do recurso, que “durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo, o rendimento disponível (conforme artigo 239.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) que venha a ser auferido se considera cedido, com exclusão do razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do agregado familiar (sem exceder três vezes o salário mínimo nacional), que, neste momento, se fixa no valor equivalente a 1,50 do salário mínimo nacional.”

O insolvente não se conformou com o segmento do despacho inicial de exoneração do passivo restante a cuja transcrição procedemos, tendo interposto o presente recurso, com as seguintes conclusões:

1 – Salvo o devido respeito, o segmento do despacho recorrido que determinou a fixação do rendimento disponível em 1,5 vezes o salário mínimo nacional viola o disposto no artº 239º do CIRE, pelo que o despacho recorrido incorreu em erro de julgamento.

Senão vejamos.

2 – Considerando todas as despesas (que não as expressamente afastadas pelo despacho recorrido) indicadas pelo recorrente como “aceites” pelo tribunal a quo, um raciocínio meramente aritmético permite concluir que a soma das mesmas ascende a € 1.234,66.

3 – Não existindo qualquer outra explicação vislumbrável na fundamentação do despacho recorrido para a desconsideração de outras despesas, é manifesto que o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento, pelo que o despacho recorrido deve ser revogado neste segmento, fixando-se o rendimento disponível do recorrente em € 1.234,66.

Acresce que,

4 – Posto que não existe justificação para desconsiderar certos factos alegados e provados documentalmente pelo recorrente, e tendo o tribunal a quo indicado expressamente as despesas que não havia considerado para efeitos de fixação do rendimento disponível, só se pode concluir que, ao fixar o rendimento disponível sem atender ao somatório das despesas que não excluiu, este excedeu manifestamente a margem de discricionariedade de que dispõe, pelo que o despacho recorrido incorreu em erro de julgamento.

5 – É facto público, pacífico e notório que as habitações em Portugal padecem de uma série deficiência na conservação de energia, o que causa um problema acrescido à população quando as temperaturas descem (em particular no Inverno) (...).

6 – A título de mero exemplo num dos artigos noticiosos supra indicados, indica-se como custo médio de uma forma de aquecimento de uma casa € 8/dia, e tomando tal custo como referência, o custo médio de aquecer uma casa ascende a € 240 mensais.

7 – As despesas de aquecimento integram o universo daquelas necessárias ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, pelo que o despacho recorrido, ao não considerar as despesas indicadas pelo recorrente nessa rubrica (€ 300) incorreu em erro de julgamento.

E, em qualquer caso,

8 – Mesmo que não se considerasse o valor de € 300 mensais indicados pelo recorrente, sempre teria de se considerar o valor de € 60 mensais como o montante mínimo a acrescentar ao rendimento disponível, o que não foi feito pelo tribunal a quo.

9 – Considerando os valores indicados nas conclusões supra, o rendimento disponível a fixar ascende a € 1.534,66 (€ 1.234,66 + € 300 de despesas de aquecimento) ou, caso assim não se entenda, em € 1.294,66 (€ 1.234,66 + €60 de despesas de aquecimento), pelo que, deve ser revogado o segmento do despacho recorrido que fixou o rendimento disponível do recorrente em 1,5 vezes o salário mínimo nacional, fixando-se um dos valores acima referidos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

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A única questão a resolver consiste em saber se o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, deverá ser aumentado até ao valor de € 1.534,66 por mês.

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O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

1 – Por sentença datada de 21.05.2020, transitada em julgado, foi declarada a insolvência do recorrente, no seguimento de apresentação à insolvência;

2 – O agregado familiar é composto exclusivamente pelo recorrente;

3 – O recorrente aufere uma remuneração mensal ilíquida de € 3.172,91, enquanto professor dos 2.º e 3.º ciclos e secundário;

4 – O recorrente despende € 500,00 com a prestação da renda da habitação, possui gastos com o fornecimento de energia eléctrica, água, gás e telecomunicações, que se computam em sensivelmente € 200,00, a que acrescem as despesas com alimentação, vestuário, saúde, transporte e veterinário;

5 – O recorrente nunca beneficiou de exoneração do passivo restante;

6 – O recorrente não tem antecedentes criminais;

7 – Foram reconhecidos créditos da responsabilidade do recorrente que ascendem a € 216.123,94.

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O recorrente insurge-se contra o despacho recorrido na parte em que este determinou que o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, coincida com o de um salário mínimo nacional e meio. Pretende o recorrente que tal valor passe a ser de € 1.534,66 ou, quando menos, de € 1.294,66 por mês.

A argumentação sintetizada nas conclusões 1.ª a 3.ª assenta numa errada interpretação do despacho recorrido. Neste, o tribunal a quo não “aceitou” as despesas que o recorrente afirma terem-no sido, no sentido de considerar que o montante excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, deverá ser suficiente para que o recorrente possa continuar a suportá-las durante o período da cessão. O tribunal a quo considerou, logo à partida, que algumas das despesas invocadas não ocorrem todos os meses e outras são supérfluas, mas não deixando de salientar, numa abordagem genérica da questão, que a cessão do rendimento disponível deve representar um verdadeiro sacrifício, não podendo resvalar para indulgentemente beneficiar o recorrente em desfavor dos credores, que não é legítimo pedir perdões de dívida do mesmo passo que se não oferecem os sacrifícios necessários e proporcionais para tanto e que se exige ao recorrente que diminua globalmente o seu padrão de vida de molde a adequar-se ao procedimento de exoneração do passivo restante.

Portanto, o raciocínio, feito pelo recorrente, segundo o qual, ao fixar em menos de € 1.234,66 o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento, carece de fundamento. Aquilo que resulta da fundamentação do despacho recorrido é que é exigível, ao recorrente, um esforço no sentido de reduzir o conjunto das suas despesas, nomeadamente eliminando algumas delas, de forma a conseguir subsistir com um valor mensal equivalente a um salário mínimo nacional e meio. Daí o tribunal a quo ter fixado este valor como sendo o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do recorrente.

Na argumentação sintetizada nas conclusões 4.ª a 9.ª, o recorrente continua a partir de um pressuposto errado: o de que, durante o período da cessão, deverá ser salvaguardado o nível de vida que o devedor tinha anteriormente, fixando-se o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, no necessário para manter esse nível de vida (ou seja, para suportar o mesmo nível de despesas) e destinando-se ao pagamento aos credores apenas a parte do rendimento do devedor eventualmente sobrante.

Importa considerar que na hipótese de, no final do período da cessão, ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 245.º do CIRE, as dívidas de que ele assim se liberta ficarão por pagar, total ou parcialmente, com o inerente prejuízo para os credores. Sendo assim, é exigível ao devedor que faça sacrifícios, com vista a minorar, na medida do possível, aqueles que são impostos aos titulares dos direitos de crédito atingidos pela exoneração do passivo restante. Os sacrifícios têm de ser feitos por ambos os lados.

É esta a razão de ser do critério estabelecido pelo artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE. O valor excluído do rendimento disponível não deverá coincidir com o das despesas que o devedor suportava antes de ser declarado insolvente ou, sequer, antes do início do período da cessão. Esse valor deverá cingir-se ao que for razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, sendo normal que tal implique um esforço, por parte do devedor, de reorganização da sua vida no sentido de reduzir as suas despesas até àquele mínimo.

A ponderação do que seja, em cada caso concreto, o montante necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar deve, pois, ter em conta, não só as necessidades do devedor e do seu agregado familiar, mas também a legítima expectativa dos credores de verem os seus direitos satisfeitos, em toda a medida do possível, durante o período da cessão. A exoneração do passivo restante não pode redundar num perdão generalizado das dívidas do insolvente sem esforço para este. O equilíbrio entre os interesses dos credores e do devedor impõe que, ao sacrifício que o processo de insolvência e a exoneração do passivo restante acarretam para os primeiros, corresponda um efectivo esforço, por parte do segundo, no sentido de reduzir as suas despesas e as do seu agregado familiar em toda a medida do possível, até atingir o limite mínimo imposto pela salvaguarda da dignidade da pessoa humana. Nomeadamente, o devedor não pode ter a expectativa de, durante o período da cessão, manter o nível de vida a que ele e o seu agregado familiar estavam habituados antes da declaração de insolvência.

No caso dos autos, tendo em conta que o agregado familiar do recorrente é constituído exclusivamente por si próprio e que, em contraponto e como justamente se salientou no despacho recorrido, há que salvaguardar as despesas inerentes à actividade profissional daquele, consideramos, secundando o tribunal a quo, que o valor de um salário mínimo nacional e meio corresponde ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do recorrente, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE. Consequentemente, o despacho recorrido deverá ser confirmado, improcedendo o recurso.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

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Évora, 17.06.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto

 

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