quarta-feira, 7 de julho de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 17.06.2021

Processo n.º 2334/18.9T8STR-F.E1

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Sumário:

O insolvente encontra-se obrigado a prestar toda a informação que lhe seja solicitada pelo tribunal e pelo administrador da insolvência acerca do paradeiro de veículos que tenha adquirido com reserva de propriedade.

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A insolvente, EF, LDA., interpôs recurso de apelação do despacho, proferido no apenso de liquidação em 19.10.2020, mediante o qual o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Comércio de Santarém determinou a prestação, por si, de informação relativa ao paradeiro de três veículos automóveis, sob pena de condenação em multa.

As conclusões do recurso são as seguintes:

1. Nos presentes autos de liquidação, a senhora administradora de insolvência solicitou informações sobre o paradeiro das viaturas com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX.

2. A recorrente, quer por email datado de 18/03/2019, quer por requerimentos datados de 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020, respondeu à solicitação da senhora administradora de insolvência.

3. Não obstante, o tribunal a quo, à margem das informações prestadas pela recorrente, ordenou, novamente, a respectiva notificação para prestar as informações solicitadas pela senhora administradora.

4. O despacho recorrido padece, por isso, de nulidade e, subsidiariamente, consubstancia uma errada interpretação e aplicação da lei:

DA NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA

5. O tribunal a quo não analisou o mérito dos requerimentos da recorrente de 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020, nos termos do qual, veio, entre outros, responder às informações solicitadas pela senhora administradora de insolvência.

6. De notar que, em relação à viatura da marca Opel de 5 lugares (matrícula XX-XX-XX), a recorrente informou que a mesma padecia de graves problemas mecânicos que a impossibilitavam de circular, o que teria conduzido à sua entrega, em Dezembro de 2017, num centro de abate para cancelamento da respectiva matrícula e desmantelamento.

7. A recorrente juntou aos autos declaração nos termos da qual consta que o referido centro de abate recebeu a referida viatura no dia 13/12/2017.

8. A recorrente informou, ainda, que, por apresentar graves problemas mecânicos, a viatura foi entregue para abate sem contrapartida financeira.

9. Pois bem, os requerimentos da recorrente foram objecto de contraditório, tendo a senhora administradora de insolvência tido a oportunidade de responder aos mesmos, o que fez por requerimentos de 07/06/2019, 30/07/2019, 25/01/2020 e 22/06/2020.

10. O tribunal a quo, ao afirmar, no despacho recorrido, que a “apreensão de bens/liquidação não ficará indefinidamente a aguardar a sua prossecução de uma resposta da insolvente”, demonstra não ter verificado que essa resposta já tinha sido remetida aos autos por via dos referidos requerimentos que, portanto, não conheceu, nem apreciou.

11. O tribunal a quo não só não analisou o mérito dos referidos requerimentos da recorrente, como omitiu qualquer decisão relativamente ao seu deferimento e/ou indeferimento, uma vez que a recorrente, num deles, também tinha expressamente requerido a notificação da senhora administradora para prosseguir com a liquidação do património da propriedade da recorrente.

12. Ora, estabelece a lei que o tribunal deve decidir todas as questões que as partes submetam à sua apreciação (cfr. art.º 2.º, n.º 1 e art.º 608.º, n.º 2, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE e art.º 20.º da Constituição).

13. Por conseguinte, tendo o juiz a quo deixado de se pronunciar sobre questões que devia ter apreciado - neste caso, os requerimentos da recorrente de 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020 – é o despacho ora recorrido nulo, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que desde já se argui.

Subsidiariamente,

DA NULIDADE POR VIOLAÇÃO DO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO

14. Ainda que este douto tribunal entendesse não se verificar a nulidade do despacho ora recorrido por omissão de pronúncia – o que só se admite por mero dever de patrocínio –, tal despacho não teria ainda assim, nesse caso, indicado os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão,

15. Porquanto o tribunal a quo não revela as premissas em que assentou, nem o raciocínio lógico que seguiu para chegar à sua decisão (de considerar que nenhuma resposta teria sido, até à data, fornecida pela recorrente).

16. Além disso, o tribunal a quo afirma, no despacho recorrido, que não cabe à recorrente “tecer qualquer tipo de considerações laterais sobre matéria de direito do que deve ou não ser apreendido para a massa insolvente”, sem, contudo, identificar as concretas “considerações” da recorrente em causa (nem identifica a peça e/ou acto processual que comportariam tais “considerações laterais”).

17. E mesmo que este douto tribunal vislumbrasse algum fundamento de facto e/ou de direito no âmbito do despacho ora recorrido – o que só se admite por mero dever de patrocínio – sempre tal pretensa fundamentação seria terrivelmente medíocre e insuficiente, em termos tais que inviabilizariam a possibilidade da recorrente em compreender as razões que levaram o tribunal a quo a decidir de uma maneira e não de outra, o que é igualmente passível de gerar nulidade da decisão.

18. Ora, impõe a lei o dever de fundamentação das decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo (dever de motivação) (cfr. art.º 154.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE e art.º 205.º da Constituição).

19. Por conseguinte, faltando os fundamentos de facto e de direito da decisão sempre seria o despacho ora recorrido nulo, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b) ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que desde já, também, se argui.

Subsidiariamente,

DA NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA

20. Ainda que este douto tribunal entendesse não se verificar a nulidade do despacho ora recorrido por omissão de pronúncia, nem por violação do dever de fundamentação da decisão – o que só se admite por mero dever de patrocínio –, sempre o juiz a quo teria conhecido questões de que não podia ter tomado conhecimento.

21. O tribunal a quo, no despacho recorrido, ordenou a notificação da recorrente para informar do paradeiro dos veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX, e XX-XX-XX.

22. Sucede que sobre cada uma das referidas viaturas recai uma reserva de propriedade a favor de terceiros,

23. O que afasta a integração de tais viaturas na massa insolvente da recorrente, que apenas pode abranger o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (cfr. art.º 46.º, n.º 1 do CIRE).

24. Logo, a apreensão de tais viaturas extravasaria o objecto dos presentes autos de liquidação, assim como o pedido de informação referente às mesmas.

25. Por conseguinte, tendo o juiz a quo se pronunciado sobre questões de que não podia ter tomado conhecimento, sempre seria o despacho ora recorrido nulo, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte ex vi art.º 613.º, n.º 3, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que desde já, também, se argui.

Subsidiariamente,

DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI

26. Ainda que este douto tribunal entendesse não se verificar a nulidade do despacho ora recorrido – o que só se admite por mero dever de patrocínio –, sempre consubstanciaria uma errada interpretação e aplicação da lei.

27. É que, em relação às viaturas com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX, e XX-XX-XX, a recorrente informou que as mesmas eram objecto de reserva de propriedade a favor de terceiros (Banco Credibom e Cofidis).

28. Como as viaturas objecto de reserva de propriedade não integram a massa insolvente da recorrente, o pedido de informação da senhora administradora de insolvência, bem como do tribunal no âmbito do despacho recorrido, sobre o correspondente paradeiro, extravasou o objecto dos autos de liquidação, carecendo de base legal.

29. Tanto assim é, que o próprio tribunal a quo chegou a indeferir o pedido da credora Cofidis para ordenar a notificação da recorrente para vir aos autos informar o paradeiro da uma viatura sobre a qual detinha reserva de propriedade, precisamente por entender haver um extravasamento do objecto dos autos.

30. A lei estabelece, para os casos de reserva de propriedade, uma excepção ao princípio geral do efeito translativo da propriedade (cfr. art.º 409.º, n.º 1 e art.º 408.º, n.º 1, ambos do Código Civil) (cfr. ensinamentos de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, bem como de GALVÃO TELLES transcritos supra).

31. Por sua vez, a lei estabelece também que a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (cfr. art.º 46.º, n.º 1 do CIRE).

32. Ora, tendo em conta que a reserva de propriedade existente sobre os referidos três veículos, por parte de terceiros, afasta a propriedade da recorrente sobre os mesmos, uma vez que, por força da cláusula de reserva de propriedade, a propriedade dos veículos automóveis apenas se transferiria para a recorrente (compradora) mediante o cumprimento de todas as suas obrigações,

33. Nunca poderiam tais veículos tornar-se objecto de apreensão para a massa insolvente (cfr. transcrição supra de excertos do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/04/2017).

34. Caso contrário, a apreensão dos veículos da propriedade dos credores Banco Credibom e Cofidis para a massa insolvente da recorrente conduziria ao esvaziamento do correspondente direito de propriedade daqueles credores pois impedi-los-ia de fruir plenamente do seu direito de propriedade.

35. Por isso, a lei concede aos credores, titulares da reserva de propriedade, o direito à separação da coisa da massa insolvente e consequente entrega da mesma (art.º 102.º, n.º 3 do CIRE),

36. Sendo certo que, no âmbito dos seus diversos requerimentos apresentados, a senhora administradora de insolvência nunca indicou ter optado pelo cumprimento do contrato.

37. Além disso, resulta da lei que os poderes de administração e de disposição que passam a competir ao administrador de insolvência na sequência da declaração de insolvência do devedor estão limitados, única e exclusivamente, aos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art.º 81.º, n.º 1 do CIRE).

38. Donde decorre que o pedido de informação, por parte da senhora administradora de insolvência, sobre o paradeiro das referidas viaturas, que não integram a massa insolvente, extravasa as suas próprias competências atribuídas por lei.

39. Pois, a administração e disposição dos bens que não integram a massa insolvente encontra-se subtraída aos poderes do administrador de insolvência (cfr. ensinamento de LUÍS M. MARTINS transcrito supra).

Em suma,

40. Ao ordenar a notificação da recorrente para informar sobre o paradeiro das viaturas objecto de reserva de propriedade a favor de terceiro, o tribunal a quo violou as disposições conjugadas dos art.º 409.º, n.º 1 do Código Civil, do art.º 46.º, n.º 1, do art.º 102.º, n.º 3 e do art.º 81.º, n.º 1, todos do CIRE,

41. Porquanto deveriam as normas jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas pelo tribunal a quo no sentido de julgar prestadas as devidas informações por parte da recorrente, ordenando, consequentemente, a prossecução da liquidação do património da recorrente,

42. Razão pela qual deverá o despacho, objecto do presente recurso, ser substituído por outro que assim decida, conforme à correcta interpretação das acima referidas normas.

Nestes termos, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser o despacho recorrido, revogado, sendo substituído por outro que ordene a notificação da senhora administradora de insolvência para prosseguir com a liquidação do património.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Na sequência de reclamação dirigida a esta relação, o recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia;

2 – Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação;

3 – Nulidade do despacho recorrido por excesso de pronúncia;

4 – Pertinência da questão da existência de reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre os veículos.

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Os factos relevantes para a decisão do recurso, evidenciados pelos autos de liquidação, são os seguintes:

1 – Desde, pelo menos, o mês de Março de 2019, a administradora da insolvência vem solicitando, à recorrente, informação sobre o paradeiro dos veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX.

2 – A recorrente nunca informou a administradora da insolvência sobre o paradeiro dos veículos identificados em 1.

3 – Em face disso, o tribunal a quo ordenou, através de despachos proferidos em 05.04.2019, 09.12.2019 e 09.03.2020, a notificação da recorrente para informar sobre o paradeiro dos veículos identificados em 1.

4 – Na sequência de cada uma das notificações ordenadas através dos despachos referidos em 3, a recorrente apresentou uma peça processual na qual nunca especificou o local em que se encontravam os veículos identificados em 1 e, em vez disso, invocou, em síntese, que, estando estes últimos sujeitos a reserva de propriedade a favor de terceiros, não integram a massa insolvente.

5 – Por fim, em 19.10.2020, o tribunal a quo proferiu o despacho recorrido, cujo teor é o seguinte:

“A apreensão de bens/liquidação não ficará indefinidamente a aguardar a sua prossecução de uma resposta da Insolvente, pelo que deve esta ser notificada para informar de todos os dados que possua sobre o paradeiro dos veículos, não lhe cabendo tecer qualquer tipo de considerações laterais sobre matéria de direito do que deve ou não ser apreendido para a massa insolvente.

Assim, o Tribunal pretende que a Insolvente responda ao seguinte:

1) Sabe do paradeiro dos veículos?

2) Caso a resposta seja negativa, esclarecer por que razão desconhece?

3) Em qualquer circunstância, explicar qual a última vez que soube do paradeiro dos veículos e onde estavam, aduzindo tudo quanto saiba a respeito?

Fica, de imediato, advertida que a falta de resposta ou resposta insuficiente poderá importa a sua condenação em multa por falta de colaboração com o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 417.º, do Código de Processo Civil, e sem prejuízo da aplicação dos institutos vigentes no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, designadamente o incidente de qualificação da insolvência.

Prazo: 10 dias.

Alarme o processo em conformidade e dê conhecimento ao Ministério Público.”

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1 – Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia:

A recorrente sustenta, em síntese, que o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, porquanto não apreciou o mérito dos requerimentos por si apresentados em 18/04/2019, 18/12/2019 e 20/03/2020, mediante os quais, no seu entendimento, prestou as informações solicitadas pela administradora de insolvência. Segundo a recorrente, o tribunal a quo, ao afirmar, no despacho recorrido, que a “apreensão de bens/liquidação não ficará indefinidamente a aguardar a sua prossecução de uma resposta da insolvente”, demonstra não ter verificado que essa resposta já tinha sido remetida aos autos por via dos referidos requerimentos que, portanto, não conheceu, nem apreciou.

A recorrente não tem razão.

O artigo 83.º, n.º 1, do CIRE, estabelece que o devedor insolvente fica obrigado a: a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal; (…) c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.

Importa ter ainda em consideração a norma geral constante do artigo 417.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 17.º, n.º 1, do CIRE, segundo a qual todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados. Trata-se do dever de cooperação para a descoberta da verdade, que recai, nomeadamente, sobre o devedor insolvente.

O tribunal a quo solicitou à recorrente, por três vezes (não contando com o despacho recorrido), a prestação de uma singela informação: o paradeiro dos veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX. Não é passível de dúvida aquilo que o tribunal a quo pretendia: saber em que local se encontrava cada um dos referidos veículos.

A recorrente nunca prestou tal informação, não obstante ter o dever processual de o fazer, nos termos dos citados artigos 83.º, n.º 1, als. a) e c), do CIRE, e 417.º, n.º 1, do CPC. Daí o despacho recorrido ter plena justificação para insistir pela prestação da informação três vezes já solicitada e nunca prestada.

O despacho recorrido não tinha que se pronunciar sobre a questão jurídica invocada pela recorrente como pretexto para não prestar a informação repetidamente solicitada pelo tribunal a quo. Perante o reiterado e ostensivo incumprimento, pela recorrente, dos seus deveres processuais de colaboração e de prestação de informação, o tribunal a quo só tinha de fazer aquilo que fez: insistir pela prestação da informação solicitada sob pena de condenação em multa.  

A questão jurídica que a recorrente suscitou nas respostas às notificações do tribunal a quo que incumpriu poderá vir a ser discutida em função daquilo que vier a acontecer no processo após se conhecer, neste, onde os veículos se encontram. Porém, no momento em que o despacho recorrido foi proferido, não estava em causa. Tratava-se então, simplesmente, de o tribunal a quo e a administradora da insolvência saberem onde os veículos em questão se encontravam. O tribunal a quo decidiu em conformidade e a recorrente só tinha de cumprir o que aquele lhe ordenou.

Concluindo, o tribunal a quo, através do despacho recorrido, apreciou o conteúdo das respostas dadas pela recorrente aos pedidos de informação que lhe dirigiu na parte que interessava: a sistemática recusa de prestação dessa informação. Não omitiu pronúncia sobre esta questão, que era a única que, no momento, relevava. Pelo que o despacho recorrido não padece da nulidade em questão.

2 – Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação:

A recorrente sustenta que o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, por falta de indicação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Segundo a recorrente, o despacho recorrido não revela as premissas em que assenta, nem o raciocínio lógico que conduziu à decisão de considerar que ela não forneceu a informação solicitada. Mais, o despacho recorrido não identifica as concretas considerações da recorrente sobre matéria de direito que qualifica como laterais, nem identifica a peça e/ou acto processual de que as mesmas constam. Queixa-se a recorrente de que tudo isto inviabiliza a possibilidade de ela compreender as razões da decisão.

O despacho recorrido não enferma dos vícios que a recorrente lhe aponta.

As premissas em que o despacho recorrido assenta e o raciocínio lógico que conduziu à decisão de considerar que a recorrente não forneceu a informação solicitada são evidentes. Por três vezes, o tribunal a quo ordenou à recorrente que informasse qual era o paradeiro dos veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX e outras tantas a recorrente não prestou tal informação. Na sequência de cada uma das notificações que nesse sentido lhe foram dirigidas pelo tribunal a quo, a recorrente, em vez de cumprir o que lhe fora ordenado, suscitou a questão da existência de reserva de propriedade sobre estes últimos e escusou-se a especificar o local onde se encontrava cada um dos referidos veículos. É elementar e evidente o raciocínio lógico que determinou o despacho recorrido: a recorrente foi repetidamente notificada para indicar o paradeiro dos veículos, nunca o fez e vai ter de o fazer porque a lei lhe impõe esse dever. Não há dúvida possível acerca disto.

As concretas considerações da recorrente sobre matéria de direito a que o despacho recorrido alude são, obviamente, aquelas que constam das suas respostas às notificações que lhe foram dirigidas pelo tribunal a quo, respostas essas em que, repetimos, em vez de dizer em que local os veículos se encontravam, a recorrente invocou a existência de reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre os mesmos veículos, para concluir que os mesmos não integram a massa insolvente e, por isso, o tribunal a quo não tem que conhecer aquele local.

Tudo isto é de tal forma evidente em face do processado anterior, que o tribunal a quo, e bem, não fundamentou abundantemente o despacho recorrido a esse propósito. A fundamentação tem de existir, mas deve cingir-se àquilo que for necessário à compreensão da decisão pelos seus destinatários. É inútil e, por isso, dispensável uma fundamentação que se limite a afirmar e justificar o óbvio.

Em face da leitura do despacho recorrido e tendo em conta o contexto processual em que o mesmo foi proferido, anteriormente descrito, não há lugar para a menor dúvida sobre as razões da decisão e o alcance da sua fundamentação.

Concluindo, o despacho recorrido não é nulo por falta de fundamentação.

3 – Nulidade do despacho recorrido por excesso de pronúncia:

A recorrente sustenta que o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC, porque conheceu questões de que não podia ter tomado conhecimento. Segundo a recorrente, uma vez que recai uma reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre os veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX, estes não integram a massa insolvente, nos termos do artigo 46.º, n.º 1, do CIRE, pelo que a sua apreensão extravasaria o objecto dos presentes autos de liquidação, assim como o pedido de informação referente às mesmas.

Mais uma vez, a recorrente carece de razão, não passando a invocação desta pretensa nulidade de mais uma tentativa de introduzir a questão da reserva de propriedade sobre os veículos cuja localização o tribunal pretende com o intuito de obstar a essa mesma localização.

O despacho recorrido foi proferido na sequência de três notificações da recorrente para dizer onde os veículos se encontram e de outras tantas recusas desta em prestar tal informação. Independentemente da discussão jurídica que possa vir a ter lugar em momento processual ulterior acerca da reserva de propriedade que recai sobre os veículos e das suas consequências, era a questão da localização dos veículos que estava em causa no momento em que o despacho recorrido foi proferido e que este último tinha de decidir.

Como vimos anteriormente, a recorrente estava e está obrigada a informar o tribunal sobre o paradeiro dos veículos, nos termos dos artigos 83.º, n.º 1, als. a) e c), do CIRE, e 417.º, n.º 1, do CPC. Logo em face da primeira solicitação do tribunal nesse sentido, a recorrente tinha o dever de prestar tal informação. Perante o reiterado incumprimento desse dever por parte da recorrente, o despacho recorrido pronunciou-se precisamente sobre a questão que tinha de resolver, que era o referido incumprimento. Logo, o despacho recorrido não se pronunciou sobre questão cujo conhecimento lhe estivesse vedado.

4 – Pertinência da questão da existência de reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre os veículos:

Nas conclusões 26.ª e seguintes, a recorrente insiste que os veículos com as matrículas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX não integram a massa insolvente porquanto existe reserva de propriedade, a favor de terceiros, sobre eles. Daí que os pedidos de informação, quer da administradora da insolvência, quer do tribunal a quo, sobre o paradeiro dos veículos, tenham extravasado do objecto da liquidação, carecendo de base legal. Invoca, em abono desta tese, nomeadamente, o disposto nos artigos 409.º, n.º 1, do Código Civil, e 46.º, n.º 1, do CIRE.

Como repetidamente afirmámos, o despacho recorrido, à semelhança daqueles que o antecederam, tem por conteúdo um simples pedido de informação, à recorrente, sobre o paradeiro de três veículos que esta comprou com reserva de propriedade e, consequentemente, estavam em seu poder e se destinavam a ser por si utilizados na sua actividade empresarial, fazendo parte do seu activo. Também concluímos anteriormente que a recorrente tem o dever de prestar essa informação.

Insistimos: é do cumprimento do dever de prestar esta informação que se trata no despacho recorrido e, logo, no recurso dele interposto. Questões jurídicas como aquela que a recorrente vem persistentemente tentando introduzir desde que começou a ser-lhe solicitada informação sobre o paradeiro dos veículos com o claro objectivo de se eximir à prestação desta última poderão eventualmente vir a ter cabimento em momento processual ulterior. Por ora, estamos perante um simples pedido de informação dirigido à recorrente, que esta terá de satisfazer. Não pode admitir-se que a recorrente antecipe questões jurídicas que poderão eventualmente colocar-se em momento processual ulterior com o objectivo de se furtar ao cumprimento do seu dever de prestar, agora, a informação solicitada pelo tribunal a quo.

Concluindo, o recurso não merece provimento, devendo o despacho recorrido ser confirmado.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo da massa insolvente.

Notifique.

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Évora, 17.06.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto

 

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